Começa a recessão do Coronavírus
A caminho de uma profunda crise
A pandemia do coronavírus infectou centenas de milhares e ceifou a vida de milhares. A maioria dos especialistas científicos e médicos advertem que a situação está fadada a piorar muito, com milhões de pessoas com probabilidade de perderem a vida globalmente. Esta crise demonstrou tanto a total inabilidade do sistema capitalista para lidar com uma crise de saúde desta proporção, como os esforços heróicos de trabalhadores da saúde, cientistas, professores, bombeiros e muitos outros, muitas vezes voluntários, que arriscam a própria vida, trabalhando longas horas para conter e combater o vírus.
Essas pessoas têm de fazer isso numa situação de angústia permanente, agravada pela escassez de testes, equipamento sanitário, camas e mão de obra hospitalar. Isto é, em grande medida, um resultado da ofensiva neoliberal que tem sido travada contra a saúde pública e outros serviços públicos nas últimas décadas, que envolveu a introdução gradual de princípios de gestão neoliberal, incluindo a “produção enxuta” (reduzindo tudo ao mínimo), bem como a privatização completa, nos antigos serviços públicos e sistemas nacionais de saúde.
A Itália, por exemplo, tinha 10,6 camas hospitalares a cada 1.000 habitantes em 1975, em comparação com as atuais 2,6. Havia 6,9 enfermeiras e parteiras a cada 1.000 pessoas em 2011, em comparação com 5,8 em 2017. Na França, as camas hospitalares por 1.000 habitantes passaram de 11,1 em 1981 para 6,5 em 2013.
Apesar de alguns comentaristas e políticos da mídia ocidental se consolarem com a esperança de que o início do verão amenize o surto, eles muitas vezes esquecem que seu verão é inverno no hemisfério sul! As enormes desigualdades, as más condições sanitárias e de saúde, e a elevada densidade populacional que prevalecem em muitas partes do mundo neocolonial podem resultar num novo ciclo de sofrimento humano numa escala ainda maior, caso o vírus se enraíze nessas regiões.
Após um período de negação e encobrimento, governos, instituições internacionais e políticos “aderiram” à luta. Em muitos países atingidos pelo vírus, escolas, bares e restaurantes estão fechados. O esporte e as atividades culturais foram proibidos. Aglomerações com muitas pessoas estão sendo proibidas.
A França declarou um confinamento parcial. Os bares e restaurantes foram fechados e uma manifestação de centenas de manifestantes de coletes amarelos, alguns com máscaras de proteção, foi desfeita pela polícia em Paris no sábado, retratada como irresponsável pelas autoridades, no contexto da epidemia. No entanto, Macron insistiu que as eleições locais iriam prosseguir no dia seguinte.
A Itália está totalmente fechada, mas como em quase todos os outros países, a maioria das empresas continua operando impunemente, o que torna as outras medidas adotadas inúteis e ilustra a servilidade dos governos em relação aos patrões. Este é o contexto para uma nova onda de paralisações e greves não oficiais que irromperam internacionalmente contra a tentativa irresponsável da classe capitalista de preservar suas margens de lucro em total desrespeito às vidas humanas e à saúde dos trabalhadores. Greves foram empreendidas por trabalhadores industriais em toda a Itália, trabalhadores dos correios na Grã-Bretanha, motoristas de ônibus na França e na Bélgica, trabalhadores da indústria automobilística no Canadá, etc. Enquanto isso, ao que a Comissão Europeia é atropelada pelos acontecimentos, a muito louvada “livre circulação” da União Europeia (UE), bem como o mercado único, estão em farrapos.
As epidemias e pandemias são uma característica crescente do capitalismo global
As epidemias e pandemias não são excepcionais, a história está repleta delas. Estima-se que a população europeia foi reduzida à metade pela peste Justiniana (550-700AD). As pragas não fazem parte da nossa cultura, mas são causadas por ela. A Peste Negra espalhou-se pela Europa em meados do século XIV, facilitada pelo crescimento do comércio ao longo da Rota da Seda, antes de dizimar 30% da população europeia. As pessoas infectadas tiveram que ficar dentro de casa durante quarenta dias e um feixe de palha foi pendurado na fachada da sua casa, para que as pessoas pudessem ver que os residentes estavam infectados. Os navios que chegavam a Veneza vindos de portos infectados eram obrigados a ficar ancorados durante 40 dias antes do desembarque. A gripe espanhola (1918-1920) infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo e resultou em 50-100 milhões de mortes. De acordo com o estudo do Banco Mundial publicado no ano passado, uma epidemia semelhante hoje causaria um colapso no PIB mundial de aproximadamente 5%, uma recessão muito mais profunda do que a de 2009 (-2%).
Desde esses exemplos históricos, a construção de estradas, o desmatamento, a limpeza de terras e o desenvolvimento agrícola, assim como as viagens e o comércio global, todos em escala sem precedentes, tornaram a humanidade ainda mais suscetível a patógenos como o coronavírus. Estudos demonstraram que tais doenças emergentes quadruplicaram no último meio século, em grande parte devido à perturbação dos ecossistemas pela atividade humana. Entre 2011 e 2018 a Organização Mundial da Saúde contabilizou nada menos que 1.483 epidemias em 172 países. Mais recentemente, o HIV (que causa a AIDS) e a epidemia de Ebola fizeram manchetes por matarem centenas de milhares de pessoas, principalmente na África Subsaariana.
Devido à sua semelhança com o Covid-19, muitas referências estão sendo feitas ao surto da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), também ocorrido no sul da China entre novembro de 2002 e julho de 2003, que causou 8.098 infecções e levou a 774 mortes relatadas em 17 países. Esta epidemia, tal como o HIV e o Ebola, teve um impacto muito limitado na economia mundial (-0,1%).
Desta vez será diferente
Durante a epidemia da SARS, a China, representando 4% da economia global, ainda não era o peso pesado que é hoje na economia global (representando 17% do PIB mundial). Ela tem impulsionado grande parte do crescimento mundial desde a crise de 2008, e se tornou um importante comprador e fornecedor para todos os continentes. Absorve 14% das exportações da UE, 6% menos do que há 20 anos, e fornece 20% das importações da UE, o dobro do valor de há 20 anos. Por exemplo, a indústria automobilística alemã é fortemente dependente do mercado chinês: um em cada quatro carros da BMW é vendido lá, e um terço dos lucros anuais da VW são obtidos na China. Os vizinhos asiáticos da China e muitos produtores globais de commodities (como o Brasil) são fortemente dependentes do ritmo de produção chinês. Além disso, cerca de 8 milhões de turistas chineses visitam a Europa todos os anos, e muitos mais visitam destinos turísticos importantes na Ásia, incluindo o Japão.
Embora tenha havido uma inversão parcial da globalização e do crescimento do comércio mundial desde 2008, a natureza altamente integrada da economia mundial e das cadeias de fornecimento, com a produção de bens e seus componentes fragmentados em muitos países e continentes, significa que a interrupção da produção em um país se traduz facilmente em uma desaceleração ou paralisação da produção em outros países. A Apple, que tem uma fábrica em Wuhan, já anunciou que estava à procura de outros fornecedores.
A indústria farmacêutica depende fortemente da indústria química chinesa para produzir uma parte importante dos medicamentos genéricos e substâncias ativas. Em 27 de fevereiro, a FDA (agência de fiscalização e regulamentação de remédios dos EUA) já relatou a primeira escassez de medicamentos relacionada ao surto, e com a interrupção trazida para a cadeia de fornecimento de medicamentos; outras faltas semelhantes são possíveis. A China também é uma importante parte constituinte de muitos outros setores. Esta interdependência é uma importante linha de transmissão dos impactos em todo o mundo.
A recessão mundial que está começando provavelmente terá o nome de COVID-19 para sempre. Contudo, a verdade é que o vírus foi o gatilho da recessão, não a sua causa fundamental. O coronavírus apareceu numa altura em que a economia mundial já estava à beira do abismo. O crescimento mundial em 2019 foi de apenas 2,9%, comparado com 3,4% em 2018 e 3,6% em 2017, consistentemente menor do que antes da Grande Recessão. Uma das principais fontes de preocupação é a falta de crescimento da produtividade. A sua estagnação e declínio na última década significa que o modesto crescimento da produtividade do trabalho é principalmente impulsionado pela acumulação de capital físico (máquinas, edifícios, material de escritório ou armazém, veículos, computadores, etc. que uma empresa possui), e não pelo aumento da eficiência ou inovação.
A economia mundial nunca superou de verdade as debilidades fundamentais que levaram à Grande Recessão de 2008-2009. Os níveis de produtividade continuaram a cair, as bolhas deflacionadas foram substituídas por outras ainda maiores e, embora as taxas de juros foram reduzidas e toneladas de dinheiro tenham sido impressas, o investimento produtivo na economia real nunca decolou. Os salários mantiveram-se baixos, os preços das casas elevados e as mensalidades, os planos de saúde, etc., continuaram a subir. Os poucos benefícios que a “recuperação” trouxe foram esmagadoramente para a elite capitalista, aprofundando a desigualdade. As vastas somas de dinheiro bombeadas para o setor financeiro dos principais países capitalistas, através de medidas como o Afrouxamento Quantitativo foram usadas esmagadoramente para a especulação, ao invés do investimento produtivo. Em essência, a política dos principais países capitalistas consistiu em empurrar a crise mais pra frente, despejando mais e mais dinheiro.
Presos na armadilha do endividamento
Em 2008-2009, os capitalistas confiaram fortemente nos países “emergentes” do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), que eram então, ao contrário de hoje, relativamente dinâmicos. Foi o caso, em particular, da China, que investiu em grandes projetos de infraestrutura e importou grandes quantidades de matéria-prima. Hoje, a China não é capaz de desempenhar este papel por uma série de razões. Para além dos efeitos do coronavírus (expandido abaixo), do aumento das tensões interimperialistas e da paralisação parcial do seu programa “Cinturão e Rota”, a China também ainda carrega consigo os efeitos da sua gigantesca política de recuperação alimentada pelo crédito, aplicada em resposta à crise de 2008 e desde então.
Sua dívida total é estimada em mais de 300% do PIB, que pode ser de cerca de 40 trilhões de dólares, ou cerca da metade do PIB global! Além disso, o banco central chinês pode não controlar totalmente o que gigantes tecnológicos como Tencent ou Alibaba fazem com o seu dinheiro. Se o crescimento desacelerasse e as empresas estatais, as autoridades provinciais ou locais falhassem no pagamento de suas dívidas, isso poderia se transformar em uma espiral de multiplicação de falências e no contágio do setor bancário. Devido à peculiar estrutura de capitalismo de estado da China, isto poderia tornar-se uma grande crise sistêmica.
A dívida é protegida por medidas administrativas que controlam o livre fluxo de capitais para dentro e para fora do país. Isto tem um impacto maciço nos investimentos e políticas chinesas no estrangeiro. Para alimentar esta dívida e impulsionar a economia, a China precisa da poupança do seu povo e dos ganhos das suas exportações. Sem crescimento, as pessoas poderiam colocar menos dinheiro nos bancos e desenvolver uma desconfiança ainda maior em relação ao governo. Para suas exportações, os planos de investimentos da China no exterior podem garantir o acesso cativo a um mercado externo local.
Além disso, Hong Kong também desempenha um papel crucial. Ela funciona como um canal para o fluxo financeiro entre a economia ainda não totalmente aberta chinesa e a economia global aberta. Com Hong Kong, todas as trocas com o mundo financeiro aberto do exterior são relativamente fáceis. Sem ela, e com controles administrativos chineses rígidos, tudo seria mais difícil. Isso traz uma necessidade estratégica para a atual situação econômica e política da China. Pequim precisa manter Hong Kong sob controle, mantendo-a também relativamente livre, para evitar seu isolamento.
A China está longe de estar sozinha na sua crise de dívida. Uma década de taxas de juros baixas, ou negativas, acumulou uma quantidade recorde de dívida mundial, atingindo mais de 322% do PIB global! Isso significa que qualquer fragilidade no sistema financeiro tem o potencial de desencadear uma nova crise de dívida. Durante a última década, as empresas têm contraído empréstimos em excesso. O enorme aumento da dívida corporativa não-financeira dos EUA é particularmente marcante. Isto tem permitido às grandes empresas globais de tecnologia comprar suas próprias ações e emitir enormes dividendos aos acionistas, enquanto acumulam dinheiro no exterior para evitar impostos. Também permitiu às pequenas e médias empresas dos EUA, Europa e Japão, que não têm conseguido lucros substanciais, sobreviverem num “estado zumbi”.
No final de dezembro de 2019, o estoque global de títulos corporativos não-financeiros atingiu um máximo histórico de US$ 13,5 trilhões, o dobro do nível de dezembro de 2008, especialmente nos EUA, onde a dívida corporativa quase dobrou desde a crise financeira. A maior parte dessa dívida é classificada como “BBB”, o que significa que seria rebaixada para níveis de lixo se a economia vacilar. O último relatório de estabilidade financeira global do FMI sublinha este ponto com uma simulação que mostra que uma recessão tão grave como a de 2009 resultaria em inúmeras empresas endividadas sendo incapazes de pagar essa dívida. Se as vendas caírem, as cadeias de fornecimento forem interrompidas e a rentabilidade cair ainda mais, estas empresas fortemente endividadas poderão entrar em colapso. Isso atingiria os mercados de crédito e os bancos e poderia desencadear um colapso financeiro global.
O comércio mundial é uma fonte de preocupação em meio à aceleração da desglobalização
Uma das características mais pronunciadas da próxima recessão é a aceleração da inversão da globalização e o aumento do nacionalismo econômico e político. Isto tem se refletido em fenômenos políticos em todo o mundo, com os governos das principais potências mundiais tomados por uma onda de populismo de direita. Enquanto a cooperação internacional limitada, mas muito significativa, foi fundamental para que os capitalistas pudessem conter a Grande Recessão de 2008/9, hoje é a ausência dessa cooperação e, em vez disso, o aumento dos antagonismos interimperialistas globais que domina e empurra a economia mundial para o precipício. O comércio mundial tem sido um importante reflexo disso.
Se o volume do comércio mundial no ano 2000 for tomado como 100, então ele subiu para 117 em 2007, mas caiu de volta para 105 em 2017. A OMC reportou um aumento do comércio mundial de 1,2% no ano passado, menos da metade dos 2,6% previstos a partir de abril de 2019. Em comparação, o comércio global cresceu em média 6,9% a cada ano de 1990 a 2007, estimulando o crescimento da economia global.
Além disso, Trump iniciou sua guerra comercial em 2018, que pôs fim à crescente interdependência das economias chinesa e norte-americana como a relação econômica central do capitalismo mundial e deu lugar a uma relação cada vez mais contraditória. Mesmo após o acordo da “primeira fase”, assinado pelos EUA e pela China em 15 de janeiro, as tarifas médias entre os dois países são agora de 19,3%, contra 3% antes do início da guerra comercial. O acordo da “primeira fase” não representa qualquer desescalada significativa. É um acordo entre representantes de um sistema capitalista em tumulto e declínio. É provável que nenhum dos lados obtenha quaisquer ganhos duradouros, assim como os trabalhadores e os pobres também não o terão.
O acordo surgiu porque ambos os lados estavam cada vez mais desesperados por uma forma de aliviar temporariamente o conflito, com os EUA em ano eleitoral e o regime chinês enfrentando múltiplos problemas internos. Mas é apenas uma questão de quando, e sobre quais questões, o combate será retomado.
Mesmo no momento em que os EUA e a China assinavam o acordo na Casa Branca, os departamentos do governo dos EUA estavam preparando novas medidas contra a gigante chinês das telecomunicações, Huawei, que foi apontada pelo establishment estadunidense, particularmente por causa de seu papel dominante na tecnologia 5G, a próxima geração de redes sem fio. Os EUA também estão aumentando a pressão sobre os governos da Grã-Bretanha e da Alemanha para banir a Huawei de sua infraestrutura 5G. Outros problemas estão surgindo no relacionamento EUA-China sobre Taiwan, Hong Kong e Xinjiang, o aumento da atividade militar de ambos os lados no Mar do Sul da China e a crescente tendência ao protecionismo financeiro.
Uma pausa na guerra tarifária EUA-China também pode abrir o caminho para novos conflitos comerciais, colocando a administração de Trump contra a Europa, Japão e outros. Em duas rodadas, em 2018 e novamente no ano passado, Trump aplicou tarifas ao alumínio e ao aço vindo da UE, e US$ 7,5 bilhões em outros produtos, após uma decisão da Organização Mundial do Comércio (OMC) a favor dos EUA em relação aos subsídios europeus à fabricante de aeronaves Airbus. Trump também está ameaçando estabelecer tarifas contra a Itália e Grã-Bretanha por causa de planos para tributar empresas digitais como Google e Facebook. O governo francês cedeu às ameaças de Trump sobre uma proposta fiscal semelhante.
A UE e outras potências comerciais, embora aliviadas porque os EUA e a China parecem estar recuando de uma nova escalada, reclamam que o acordo da “primeira fase” equivale a “comércio controlado”, violando os princípios do “livre comércio”. Este é outro prego no caixão da OMC, que já foi paralisada pela decisão de Trump no ano passado de bloquear a nomeação de juízes para o sistema de resolução de disputas da OMC. Este sistema de arbitragem, que recebeu o crédito de manter os conflitos comerciais sob controle, está agora quebrado. Sob Trump, o governo dos EUA abandonou decisivamente o multilateralismo em favor de uma estratégia bilateral para alcançar acordos comerciais numa base de Estado para Estado. Como a maior economia, isto dá aos EUA uma vantagem, até que novas crises e choques mudem o equilíbrio de poder, ao mesmo tempo em que o impacto mais amplo é uma economia global mais fragmentada e instável.
Coronavírus desencadeia contração econômica na China
A resposta inicial das autoridades chinesas quando o coronavírus apareceu pela primeira vez em Wuhan no início de dezembro do ano passado, e depois quando a nova estirpe Covid-19 foi identificada em 7 de janeiro, foi de negligência criminosa. Apesar de Pequim receber relatórios da situação, e mesmo informando a OMS em 31 de dezembro do surgimento de um novo tipo de coronavírus, o governo central concordou com o encobrimento do governo regional e não fez soar o alarme público até 20 de janeiro. Três dias depois Pequim impôs o seu confinamento draconiano à província de Wuhan e Hubei, tendo falhado em agir durante mais de seis semanas. O regime chinês já estava em apuros antes. Durante os seis anos de reinado de Xi, seus números oficiais de crescimento inflacionados caíram para 7% após 30 anos de um crescimento de, em média, 10%.
Observadores dentro da China e internacionalmente reconhecem agora o que os nossos camaradas chinaworker.info explicaram anteriormente, que o poder de Xi é muito mais limitado do que eles pensavam. As múltiplas crises nas relações EUA-China, a economia e a rebelião popular de Hong Kong aumentaram dramaticamente a pressão sobre Xi e reacenderam a luta pelo poder dentro da elite dominante. Como resultado, as autoridades locais, temendo qualquer coisa que pudesse prejudicar ou constranger a ditadura Xi, ficaram totalmente paralisadas diante da crise da Corona, e não ousaram se mover a menos que fossem instruídas por Pequim. A notícia do surto foi reprimida. A informação online foi bloqueada. A manutenção da “estabilidade” era a prioridade máxima. O tempo crucial para conter o vírus foi perdido e, quando se tornou incontrolável, a liderança do regime foi forçada a assumir o controle direto da crise.
Três dias depois, a cidade de Wuhan (com 11 milhões de habitantes) foi sitiada, com todas as viagens para fora proibidas. Nos três dias seguintes, esta quarentena e proibição de viajar foi alargada a mais 20 cidades, afetando cerca de 60 milhões de pessoas. Trens, aviões, balsas e ônibus foram suspensos e as estações e estradas com pedágio foram bloqueadas por polícia armada. As cidades em quarentena assemelharam-se a condições de guerra, com a população enfrentando graves dificuldades, escassez aguda de material médico e longas filas de espera para consultar um médico num sistema hospitalar subfinanciado e sobrecarregado.
Dezenas de milhões de trabalhadores ficaram sem salário quando as fábricas e escritórios foram fechados. O feriado do Ano Novo Lunar foi prolongado por dez dias na maior parte do país, e por ainda mais tempo em algumas regiões. Os professores ficaram sem remuneração, pois as escolas foram obrigadas a permanecer fechadas até segunda ordem. Milhões de trabalhadores migrantes das províncias do interior do país viram-se à mercê de novas regras de quarentena e restrições de viagem que se espalharam pelo país. A maior parte da China ficou paralisada.
Pequim entrou então numa fase aguda de redução de danos, tentando proteger o personagem do “Imperador” Xi e desviando todas as culpas para o governo e a polícia de Wuhan. O PCCh (Partido Comunista Chinês) implantou todo o seu arsenal de medidas de “manutenção da estabilidade” com uma propaganda maciça e uma campanha de relações públicas, proclamando uma “guerra popular” contra a epidemia. A construção de dois novos hospitais em Wuhan em velocidade recorde, somando mais 13 mil leitos, tinha como objetivo fortalecer a autoridade do regime, mas, na realidade, foi muito menor do que as necessidades, com estimativas de até 190 mil pessoas infectadas em Wuhan, especialmente tendo sido construídas por trabalhadores migrantes sem contrato de trabalho, sem seguro saúde nem acesso a tratamento médico em condições de trabalho terríveis e inseguras.
Jamil Anderlini, do Financial Times, argumentou que “se o vírus não puder ser contido rapidamente, este pode ser o momento equivalente a um Chernobyl chinês, quando as mentiras e absurdos da autocracia são postos a nu para todos verem”.
Em termos de medidas econômicas, Pequim anunciou US$ 12 bilhões em fundos de emergência para combater a epidemia. Mas, na mesma semana, injetou US$ 174 bilhões para o setor bancário e as bolsas, para evitar o colapso do mercado. Além de seu medo do desmoronamento do mercado, isso também mostra que o regime chinês, assim como as potências capitalistas ocidentais, tem uma clara lealdade de classe às grandes empresas e aos lucros sobre a vida humana.
Apesar da propaganda de que a China está “fora de perigo” em termos da crise da Corona, as coisas estão longe de voltar ao normal. No início de março, a “taxa de retomada do trabalho” oficialmente relatada na China era de cerca de 60% para as pequenas e médias empresas, e significativamente maior para as grandes empresas. No entanto, reabrir um negócio não significa que ele esteja operando na mesma capacidade em que normalmente funcionaria. Além disso, a provocação imprudente de um novo surto na China é uma possibilidade inerente à situação, uma vez que o regime ávido de lucro se apressa a pôr as rodas da economia em movimento novamente.
Dan Wang, da The Economist Intelligence Unit, estima que 9 milhões de pessoas nas cidades da China percam seus empregos este ano, como resultado do impacto do vírus. De acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas chinês, a produção industrial da China caiu 13,5% nos dois primeiros meses deste ano e os serviços diminuíram 13%. A combinação sugere que o PIB da China contraiu 13% e que o 1º trimestre deste ano será o primeiro trimestre de crescimento negativo desde 1976. Estes números estão bem abaixo das expectativas dos analistas, com muitos especialistas chineses expressando surpresa simplesmente pelo fato de que os funcionários do governo estão dispostos a relatar números tão devastadores.
No entanto, o choque real pode ser ainda maior, já que as quarentenas, em grande parte, só começaram em 23 de janeiro. Outros números parecem confirmar isso. Durante o surto do vírus em janeiro e fevereiro, cerca de 5 milhões de pessoas na China teriam perdido seus empregos. A taxa de desemprego urbano subiu para 6,2% em fevereiro. Estes números oficiais são apenas um indicador aproximado, uma vez que consideram apenas o emprego urbano. A maioria dos trabalhadores industriais na China são os 300 milhões de migrantes das zonas rurais que trabalham sem contrato e são discriminados. Estima-se que 30-40% deles ainda estejam desempregados e que isso permanecerá assim por um período prolongado.
As vendas no varejo caíram 20,5% comparadas ao ano passado em janeiro e fevereiro, e o investimento em ativos fixos caiu 24,5%, abaixo dos 5,4% de crescimento quando os dados foram reportados pela última vez. Estes dados divulgados em 16 de março mostram o quão severamente o vírus atingiu o crescimento na segunda maior economia do mundo.
A luta pelo poder dentro do PCCh e a elite governante quase certamente se reacenderá, alimentada por divisões crescentes sobre a administração de Xi, mas também refletindo, em última instância, uma nova raiva e radicalização que agita a base da sociedade. A pandemia expôs as falhas do regime e infligiu enormes danos econômicos. Isto poderia desencadear um novo nível de crise com implicações potencialmente revolucionárias. A tarefa dos marxistas, em particular dos apoiadores da ASI na China, é ajudar os setores mais conscientes da classe trabalhadora e da juventude a se prepararem politicamente para isso. A crise humanitária, econômica e política da China clama pela construção de uma alternativa socialista e genuinamente democrática dos trabalhadores ao capitalismo autoritário do PCCh.
As bolsas de valores passam do otimismo ao pânico total
Até o final de fevereiro, o “mundo econômico” permaneceu surpreendentemente otimista. Nessa altura, a epidemia assolou principalmente a província de Hubei, que representava 4,5% do PIB chinês. Como geralmente superestimaram a força da ditadura de Xi Jinping, sua capacidade de mobilizar recursos aparentemente infinitos e seu controle sobre a população, provavelmente pensaram que o regime seria capaz de lidar com ela. Mesmo após o isolamento da província de Hubei e outras medidas, ou talvez até por causa delas, eles pensaram que o Covid-19 não seria capaz de descarrilar a economia mundial.
Já em 2 de março, no seu relatório “Coronavírus: a economia mundial em risco”, a OCDE escreveu “partindo do pressuposto de que os picos epidêmicos na China no primeiro trimestre de 2020 e os surtos noutros países se revelaram suaves e contidos, o crescimento global pode ser reduzido em cerca de 0,5% este ano em relação ao esperado nas Perspectivas Econômicas de novembro de 2019”. E depois “as perspectivas para a China foram revistas acentuadamente, com o crescimento caindo abaixo dos 5% este ano antes de se recuperar para mais de 6% em 2021”.
Até então, o epicentro do que foi tardiamente reconhecido como uma pandemia já se tinha deslocado para a Europa. Na última semana de fevereiro, isso fez com que as bolsas europeias caíssem entre 12 e 15% em média, e várias bolsas no mercado acionário estadunidense registraram suas quedas mais acentuadas desde 2008. Em 28 de fevereiro, as bolsas de valores de todo o mundo relataram suas maiores quedas em uma única semana desde a crise financeira de 2008. Isto levou os ministros das finanças e os executivos dos bancos centrais dos países do G7 a divulgarem uma declaração conjunta para acalmar os mercados, comprometendo-se a utilizar todas as ferramentas apropriadas para lidar com o impacto socioeconômico do surto.
Nos dias seguintes, vários bancos centrais da Malásia, Austrália, Indonésia e México e outros ou reduziram seus juros ou tomaram outras medidas de estímulo, mas a principal surpresa veio do Fed dos EUA. Reduziu a sua taxa em 50 pontos [0,5%]. Em resposta, ao contrário dos mercados europeus e do Pacífico Asiático que, na sua maioria, tinham subido brevemente, os mercados dos EUA caíram todos e o rendimento dos títulos do tesouro dos EUA a 10 e 30 anos caiu para níveis historicamente baixos.
A contribuição dos preços do petróleo para a crise
Dizem que um acidente nunca vem sozinho. A redução das viagens e a menor procura por petróleo na China, em virtude do confinamento do coronavírus, causou uma queda no preço do petróleo. Isso levou o cartel de produtores de petróleo, OPEP, a discutir um potencial corte na produção para contrariar isso. Foram feitos planos para cortar a produção de petróleo em 1,5 milhões de barris por dia para o nível de produção mais baixo desde a guerra do Iraque. No entanto, numa reunião em Viena no dia 5 de março de 2020, a OPEP e a Rússia não conseguiram chegar a um acordo.
Envolvidas numa feroz guerra econômica por mercados reduzidos, tanto a Arábia Saudita como a Rússia anunciaram então aumentos competitivos na produção de petróleo em 7 de março, o que fez com que os preços caíssem mais 25%. Em 8 de março, a Arábia Saudita anunciou inesperadamente que iria aumentar ainda mais a produção de petróleo bruto e vendê-lo com um desconto (de 6-8 dólares por barril) a clientes na Ásia, EUA e Europa. A extração de petróleo bruto na Arábia Saudita é muito mais barata (18 dólares por barril) do que na Rússia (42 dólares), e ainda mais que a produção de óleo de xisto nos EUA. Se a Arábia Saudita continuar a inundar o mercado, pode tirar muitos extratores de petróleo russos, estadunidenses e outros do mercado.
A guerra dos preços do petróleo entre a Rússia e a Arábia Saudita, combinada com o crescente pânico do Coronavírus, desencadeou o que ficou conhecido como a segunda-feira “Negra”. Esta viu a maior queda da história do Dow Jones em um único dia e muitos outros mercados de ações quebrando todos os tipos de recordes de mercado de “urso” (ou seja, quando os preços das ações caem pelo menos 20% após uma alta anterior) ao redor do mundo. Seguiu-se mais uma avalanche de anúncios de intervenções do Banco Central e do governo.
Nos EUA, Trump propôs um estímulo fiscal sob a forma de um imposto zero sobre a folha de pagamento. Depois, em 11 de março, ele anunciou uma proibição temporária das viagens dos 26 membros do Espaço Schengen na Europa, por 30 dias. O dia seguinte tornou-se “quinta-feira negra”, com uma queda percentual ainda maior num único dia nas bolsas dos EUA e mais um dia de caos no mercado internacional. O Dow Jones registrou a sua mudança mais rápida para um mercado de “urso” nos seus 124 anos de história. Entre 17 de fevereiro e 13 de março, o S&P 500 de Wall Street perdeu 27% de seu valor, o FTSE 100 de Londres perdeu 30% e o Dax de Frankfurt 33%.
A caminho de uma profunda recessão
As bolsas de valores estão longe de ser um reflexo correto do estado exato da economia. No entanto, indicam de forma distorcida a direção que a economia está tomando. A partir do final de fevereiro, os economistas e comentaristas começaram a levantar abertamente a possibilidade de recessão. A sua principal questão, porém, era saber qual seria a sua forma e qual seria a sua profundidade. Seria uma recessão em forma de V, começando com uma queda acentuada como resultado das restrições introduzidas durante o pico do vírus, seguindo rapidamente para o fundo e abrindo caminho para uma reviravolta reforçada?
Ou seriam as indicações iniciais de recuperação prematuras e levariam a um segundo mergulho, uma recessão em forma de W? Normalmente, ao levantar esta questão, os economistas pediriam às autoridades que ajudassem, especialmente, as pequenas e médias empresas, sob a forma de abatimentos fiscais, empréstimos baratos ou ajuda financeira aos funcionários repentinamente sem trabalho. Caso contrário, estas empresas poderiam falir ou começar a demitir trabalhadores, o que prejudicaria a possibilidade de recuperação, levando a uma recessão mais longa em forma de U, ou mesmo a uma recessão em forma de L, sem possibilidade de recuperação a curto ou médio prazo.
As possibilidades de evitar tal cenário diminuem a cada dia que passa. No dia 13 de março, JP Morgan anunciou que sua visão sobre o surto de coronavírus tinha “evoluído dramaticamente nas últimas semanas”. A súbita interrupção da atividade econômica através de quarentenas, cancelamentos de eventos e distanciamento social ao lado de semanas de caos nos mercados financeiros fez com que se concluísse que as economias americana e europeia serão atingidas por uma profunda recessão até julho.
O que se estima é que o PIB dos EUA diminuirá 2% no primeiro trimestre e 3% no segundo, enquanto a Zona Euro contrairá 1,8% e 3,3%, respectivamente. Isso seria desastroso. Durante a Grande Recessão de 2008-2009, o declínio da produção nos EUA foi de cerca de 4,5%. Estima-se agora que seja de cerca de 6,5% para a China e Itália, para começar, podendo chegar aos 10%. No auge da grande recessão, a economia estadunidense perdia postos de trabalho a uma taxa de 800 mil por mês, e a taxa de desemprego atingiu um pico de 10%. Desta vez vai ser muito pior. Já na China milhões de pessoas foram expulsas do mercado de trabalho e muitas mais virão a seguir em todo o mundo. As classes dominantes estão aterrorizadas com a raiva que isto pode provocar e que pode reavivar e expandir as revoltas e lutas de classe testemunhadas na segunda metade de 2019 que atingiram todos os continentes.
Uma série de outras instituições, incluindo o Goldman Sachs, e outros economistas também estão revendo suas estimativas, e nenhuma parece muito mais otimista. Kenneth Rogoff, da Universidade de Harvard, disse que “uma recessão global parece pronta e inevitável neste ponto, com chances acima de 90%”. Olivier Blanchard, do Instituto Peterson, disse que “não tenho dúvidas de que o crescimento econômico global será negativo” para os primeiros seis meses de 2020. O segundo semestre dependeria de quando o pico da infecção fosse atingido, disse ele, acrescentando que o seu “palpite” era que este período também seria provavelmente negativo.
O FMI define uma recessão global como sendo quando o crescimento, normalmente cerca de 3,5 a 4% ao ano, cai abaixo dos 2,5%. Nem todo o alunato do FMI acredita que esta definição seja sensata nas circunstâncias atuais, mas todos disseram que as condições para uma recessão global estão sendo cumpridas, independentemente da definição precisa. Em 2009, o PIB mundial caiu 0,1%. Neste momento, o cenário da OCDE no caso da propagação da pandemia fora da China é de um crescimento de 1,5%, no entanto isso terá de ser revisto em breve, possivelmente para baixo, bem abaixo do nível de 2009.
Gita Gopinath, economista-chefe do FMI, disse que embora fosse difícil de prever, isto não parecia uma recessão normal. Ela apontou para dados da China mostrando uma queda muito mais acentuada nos serviços do que uma retração normal poderia prever. Ela também disse: “Isto deve ser um choque transitório, se houver uma resposta política agressiva que possa impedi-lo de se transformar numa grande crise financeira.” Em muitos aspectos, ela conseguiu a política agressiva pela qual pediu…
Em 3 de março, a FED aplicou um corte de 0,5% na taxa de juros em função dos “riscos evolutivos para a atividade econômica” do coronavírus. Depois, no dia 12 de março, anunciou planos de expandir o afrouxamento quantitativo em 1,5 trilhões de dólares para injetar dinheiro no sistema bancário. Então, em 15 de março, o Fed cortou novamente sua taxa de juros em um ponto percentual completo, para uma faixa de 0 a 0,25%, acompanhado de outros 700 bilhões de dólares em afrouxamento quantitativo. No entanto, em 16 de março, as bolsas de valores mergulharam novamente, o Dow Jones caiu em quase 3 mil pontos, ou mais de 12%, sua maior perda de pontos intradiários da história. A bazuca da FED tinha como objetivo amortecer uma quebra financeira persistente, mas do ponto de vista da flexibilização dos mercados, teve o efeito oposto e agravou a crise.
O que deveria ter sido feito, mas em muito maior medida do que os capitalistas estão dispostos a fazer, é abordado por Chris Zaccarelli, diretor executivo de investimentos da Independent Advisor Alliance: “se políticas fiscais e de saúde pública credíveis e específicas forem postas em prática para conter os riscos econômicos e de saúde pública, aí você começará a ver um fundo no mercado de ações.” Isso foi confirmado quando a fortemente criticada administração de Trump finalmente anunciou uma série de medidas limitadas que melhoram o acesso aos testes. E novamente quando Trump declarou que a pandemia do coronavírus era uma emergência de saúde pública nacional e liberou US$ 50 bilhões em gastos governamentais direcionados para contramedidas pandêmicas, ou quando Nancy Pelosi declarou que a Câmara dos Deputados dos EUA aprovaria um projeto de lei subsequente, incluindo a expansão das licenças por doença, frente ao qual Trump reverteu sua oposição inicial, e resolveu endossar. Essas ações estavam por trás dos breves momentos em que os mercados de ações interromperam sua espiral descendente.
Isso não se deu porque os mercados ou o estabelecimento repentinamente sentiram compaixão pelas famílias da classe trabalhadora. Alguns dos mais cínicos vêem mesmo oportunidades na pandemia do coronavírus, como os especuladores de “vendas a descoberto”, que fizeram apostas na queda dos preços das ações na bolsa. Outros calculam que quando muitas pessoas velhas e improdutivas morrem, isso vai aumentar a produtividade porque os jovens e produtivos vão sobreviver em maior número.
Isso se dá parcialmente porque o vírus ameaça suas próprias vidas e riquezas, mas principalmente porque estão aterrorizados com as convulsões sociais que podem ser provocadas caso sejam vistos como insensíveis ou gananciosos demais. Mesmo a OCDE agora argumenta em favor de apoio financeiro aos serviços de saúdes, inclusive recursos suficientes para garantir equipes e estruturas adequadas para a testagem e atendimento. Eles também propõem assistência temporária, em forma de transferências monetárias ou seguros-desemprego, para trabalhadores colocados em regime de licença não-remunerada, e também da garantia de cobrir os custos de saúde relacionados ao vírus para todos, retrospectivamente se necessário. Pelas mesmas razões, alguns bancos têm permitido que pessoas adiem pagamentos de hipotecas e empréstimos e mesmo governos de extrema-direita tem tomado medidas especiais como conceder afastamento por doença extraordinário, ou permitir “desemprego técnico” com compensação parcial pela perda de salário.
Representantes das classes dominantes argumentam que estamos numa situação “como a de uma guerra” e que isso requer medidas excepcionais, mais e mais restringindo nossas liberdades. Eles introduzem os tipos de medidas econômicas que teriam prontamente rejeitado apenas algumas semanas atrás, e consideram usar até mesmo a arma da estatização, que até o primeiro ministro de direita francês anunciou, e que vem sendo tema recorrente. Notavelmente, ele fez essa proposta não somente para salvar empresas da falência, mas também como ameaça àqueles que vinham desrespeitando as regras sanitárias.
É claro que as classes dominantes combinam quaisquer medidas com um apelo à unidade nacional, que, infelizmente, muitos líderes sindicais e lideranças políticas, incluindo as da esquerda, têm engolido com demasiada facilidade. Embora a ideia de que este é um inimigo externo, uma “invasão” hostil que todos nós temos que parar através da unidade nacional deva ter um impacto em amplas camadas da sociedade, um número crescente de trabalhadores e jovens já enxergam além dessa hipocrisia. Este tem sido especialmente o caso entre os trabalhadores industriais que aceitam o distanciamento social como necessário e responsável, mas se perguntam por que eles têm que continuar trabalhando e sem proteção adequada.
Esta situação de “guerra” será um ponto de inflexão. As classes dominantes tentarão aproveitar nesta crise qualquer possibilidade de retirar os direitos democráticos. Os trabalhadores e os pobres, por outro lado, terão aprendido, através de algumas das medidas que estão sendo implementadas, que os conceitos econômicos neoliberais podem ser superados.
Embora os socialistas aceitem todas as medidas que limitam o poder dos especuladores e fortalecem os serviços públicos e o nível de vida, explicamos que, com base em um sistema capitalista voltado para o lucro, quaisquer medidas desse tipo serão insuficientes para corresponder à gravidade da situação. Somente substituindo o sistema de lucro por um planejamento socialista democrático e pela propriedade pública democrática como motor de uma economia transformada, é que os recursos do mundo poderão ser mobilizados de forma eficaz para satisfazer as necessidades da humanidade. Enquanto os governos capitalistas podem recorrer ao “socialismo para os ricos” – políticas que, na verdade, saqueiam o setor público para proteger os lucros de uma minoria – eles são incapazes de efetivar a escala de investimento público, coordenação e planejamento que a situação exige.
A Europa no olho da tempestade
A Comissão Européia também revisou seus números de crescimento de 1,4% em fevereiro de 2020 para -1% até a segunda semana de março, e depois entre -2 e -2,5% na metade do mês de março, A economia italiana está em estado de sítio há semanas e seu centro industrial há ainda mais tempo. Isto depois de anos de crescimento muito lento, com a Itália ainda muito abaixo dos seus níveis anteriores a 2008. A Itália já tinha a terceira maior dívida soberana do mundo em termos relativos (135% do PIB), estreitamente entrelaçada com o seu sistema bancário tóxico. O valor das suas ações bancárias caiu pela metade desde meados de fevereiro. Uma crise de crédito parece quase certa e o espectro de um “ciclo de ruínas” de bancos ameaça entrar em jogo. Um “ciclo de ruínas” é o dilema que os reguladores enfrentam ao permitir que os bancos domésticos sejam liquidados quando estes bancos são também os maiores compradores da dívida do seu país. Sem instituições para comprar a dívida de um país, ele entra em inadimplência junto com seus bancos.
A economia italiana é suficientemente grande para desencadear uma crise mundial, se mal gerida. De acordo com Ashoka Mody, ex-diretor adjunto do FMI na Europa, é necessário um muro de contenção urgente de cerca de 500 bilhões a 700 bilhões de euros para evitar o risco de uma reação em cadeia financeira através do sistema internacional. Embora o BCE (Banco Central Europeu), a Comissão Europeia e os Estados-membros da UE pareçam perceber a profundidade da crise que se avizinha, ainda há um longo caminho a percorrer antes de estarem preparados e concordarem em financiar esse tipo de intervenção. O FMI, por outro lado, simplesmente carece dos recursos necessários para uma operação tão massiva.
No contexto da referida tendência global para o nacionalismo político e econômico, que tem varrido a Europa nos últimos anos, os obstáculos políticos à disponibilização de “botes salva-vidas” ao estilo de 2010 para os Estados-membros periféricos em dificuldades não devem ser sobrestimados.
Os países europeus, especialmente na Zona Euro, viram um fraco crescimento durante alguns anos, que deteriorou acentuadamente desde o ano passado. Sua locomotiva, a economia alemã, diminuiu o ritmo para um crescimento de 0,6% no ano passado. Seu setor industrial está em recessão desde o segundo semestre de 2018. Está fortemente exposto à desaceleração do comércio mundial. Em 2019, a indústria alemã encolheu 5,3%, com a fabricação de automóveis caindo 25%. Enquanto a Alemanha está na parte inferior do crescimento da zona do euro, o crescimento de toda a área para 2019 foi de apenas 1,2% e já estava prevista uma queda para 0,8% antes da chegada da pandemia.
Agora vai ser muito pior. Além disso, ainda poderá ocorrer um Brexit sem acordo até o final do ano. Embora isso esteja longe de ser a principal preocupação no momento, teria um impacto negativo considerável no crescimento e levaria a uma maior volatilidade. Neste momento, no entanto, a pandemia do coronavírus está no centro das atenções. Cada Estado-membro está tomando as suas próprias iniciativas, as fronteiras estão sendo reerguidas, a liberdade de circulação restringida e o mercado único colocado sob grande pressão. País após país declara a sua própria versão de quarentenas e bloqueios.
O BCE não pode deixar de reconhecer a sua impotência. Perante os efeitos económicos do Covid-19, admite que são os Estados-nação e as autoridades orçamentais europeias que detêm as chaves da situação. A taxa de juros do BCE já está em zero há quatro anos. A taxa sob a qual os bancos comerciais podem depositar dinheiro no BCE já é negativa (-0,5%). Reduzi-la ainda mais teria apenas um impacto marginal. O BCE e os bancos centrais nacionais só podem inundar os bancos comerciais com liquidez o suficiente para evitar uma redução do crédito para empresas e famílias. Para tal, o BCE aumentará os seus empréstimos a longo prazo aos bancos comerciais, a uma taxa negativa de 0,75%. Em outras palavras, os bancos comerciais serão subsidiados. O BCE irá também aumentar o afrouxamento quantitativo em 120 bilhões de euros.
Isto não será suficiente para tranquilizar os investidores; nem os bancos comerciais, mesmo quando subsidiados por taxas de juro negativas, estarão prontos para emprestar dinheiro a empresas tão enfraquecidas pelo colapso das suas vendas. Assim, o BCE apela aos Estados-nação para que ofereçam garantias públicas às empresas privadas quando contraem empréstimos. Apela aos Estados-nação para uma ação orçamentária ambiciosa e coordenada. Os pesquisadores do Instituto Bruegel esboçaram as principais medidas que devem ser implementadas: recursos suplementares significativos para os sistemas de saúde nacionais; várias medidas de apoio às famílias, profissões liberais, empresas e comunidades locais; e medidas macroeconômicas na ordem dos 2,5% do PIB, financiadas pelo aumento de déficits orçamentários. Pierre Wunch, governador do banco nacional belga, explicou: “Hoje somos confrontados com um grande choque, que deve ser temporário, devemos usar todas as margens possíveis através de medidas seletivas e temporárias para limitar ao máximo a falência de empresas e a perda de empregos. Devemos fazê-lo com franqueza e sem hesitação”.
O Comissário europeu de Economia, Gentiloni, destacou que o estímulo da Comissão oferece aos Estados-membros a possibilidade de utilizar centenas de bilhões de euros para combater o Coronavírus. Isso será mais do que necessário. As regras orçamentárias europeias serão flexibilizadas, incluindo as sacrossantas normas de Maastricht, e todas as exceções ao pacto de estabilidade serão plenamente aplicadas. Isto, segundo Gentiloni, é necessário para dar ao mercado financeiro a confiança de que, desta vez, os países da UE farão de tudo para evitar uma recessão profunda. O ministro alemão das Finanças, Scholz, prometeu apoio ilimitado às empresas alemãs, que aparentemente poderia chegar a 500 bilhões de euros. A França, Suécia, Espanha, Dinamarca e outros países europeus também anunciaram estímulos consideráveis.
A Itália anunciou um gasto adicional de 25 bilhões de euros no orçamento para suspender o pagamento da dívida das empresas e ajudá-las a pagar os trabalhadores temporariamente demitidos por causa dos isolamentos. A comissão da UE também liberou mais 37 bilhões de euros do seu orçamento para ajudar as empresas e deu 1 bilhão de euros para ajudar o Banco Europeu de Investimento. As regras de apoio público às empresas estão sendo flexibilizadas, bem como a possibilidade de baixar temporariamente o IVA [imposto sobre consumo, equivalente ao ICMS] e adiar a cobrança de impostos. O governo espanhol decidiu inclusive requisitar as instalações de prestadores privados de saúde para enfrentar a pandemia. Como em toda grande crise, após ter glorificado os chamados méritos do mercado livre, o capitalismo precisa ser resgatado pelo Estado para cuidar de suas feridas e evitar novos colapsos.
Para muitos ficará claro que estas concessões “de guerra” limitadas do BCE e da Comissão Europeia não os tornam menos antitrabalhadores ou antipobres. A hostilidade popular contra eles continua a crescer. A população italiana ficou escandalizada pela recusa original das autoridades francesas e alemãs em deixar passar das fronteiras ajuda sanitária e médica cruciais para a Itália. Isto foi explorado pelo regime chinês, que prometeu enviar ajuda adicional e profissionais médicos à Itália (que já vinha sendo utilizada pela China como uma base na zona do euro através da sua participação na iniciativa “Cinturão e Rota”).
A União Europeia, um projeto neoliberal, anti-classe trabalhadora, apresentado sob um verniz “progressivo” de livre circulação e “europeanismo”, tem sido testado repetidas vezes. No entanto, a profunda recessão em andamento, que provocará uma avalanche de empresas em falência, levará milhões de pessoas ao desemprego e a dificuldades econômicas, prejudicará o nível de vida, suprimindo assim a demanda e dificultando a recuperação, provará ser o seu teste final. A UE nunca foi capaz de superar de forma decisiva as contradições nacionais do continente, e o contexto econômico e geopolítico global reforça as já fortes tendências centrífugas dentro dele. É muito pouco provável que a UE sobreviva a este teste na sua forma atual.
O cenário está preparado para grandes batalhas da classe
Uma recessão profunda, possivelmente até uma depressão, pode por um tempo ter um efeito paralisante na luta de classes, na medida que os trabalhadores e suas famílias assumem uma posição “defensiva”, tomados pelo medo de perder o pouco que têm. Além disso, não é inevitável que a massa da população compreenda imediatamente a ligação entre os crimes do capitalismo e a propagação do Coronavírus. A classe dominante apresentará a próxima catástrofe como um “ato de Deus”, algum desastre natural que ninguém poderia ter evitado ou previsto e que todos temos de engolir, juntamente com os necessários “sacrifícios”.
Eles também acenderão as chamas da reação nacionalista e xenófoba, culpando os problemas de um vírus “estrangeiro”, e projetando isso em migrantes, refugiados, etc. Isto pode ganhar um eco entre uma parte da população, por um período.
No entanto, em última análise, esta não será a resposta dominante dos trabalhadores, mulheres, jovens e oprimidos em todo o mundo. Mesmo a curto prazo, o desemprego em massa e os ataques ao nível de vida irão alimentar a raiva das massas. Combinado com a má gestão criminosa do Coronavírus por parte da classe dominante e a sua busca de lucro à custa da saúde e bem-estar dos trabalhadores, isto produzirá explosões sociais na era do Covid-19.
Esta geração é diferente. Embora lhe faltem as organizações de massas, e a experiência política e as perspectivas das gerações anteriores, é uma geração incubada por condições de vida e de trabalho extremas, sem qualquer segurança. Que já há algum tempo odeia o establishment e a desigualdade do sistema.
Esta geração, ou pelo menos parte dela, passou pela experiência da Grande Recessão, e viveu uma política contínua de liberalização, cortes e privatizações, cujo fracasso foi dramaticamente exposto. É também uma geração com experiência de luta, mais recentemente na magnífica e contínua revolta climática global, caracterizada por uma compreensão incipiente de que o sistema é incompatível com as necessidades do planeta, e por uma postura generalizada de abertura às ideias revolucionárias. Uma nova crise econômica global proporcionará mais uma escola na falência do sistema capitalista e lançará as sementes de conclusões socialistas revolucionárias a serem tiradas por milhões.
A experiência desta crise também não se perderá para a classe trabalhadora. Por exemplo, é muito improvável que os trabalhadores da saúde aceitem simplesmente voltar ao normal, uma vez que a curva da pandemia tenha mudado. Além disso, ao entrar em luta, estes e todos os trabalhadores essenciais desfrutarão de um enorme apoio popular. Embora o isolamento social tenha sido aceito por muitos como uma atitude responsável durante a pandemia, também criou um inegável sentimento de solidariedade, especialmente com aqueles que foram vítimas de doenças e dificuldades, ou que estão em maior risco. Esta solidariedade pode tornar-se uma arma de resistência da classe trabalhadora no próximo período – também caracterizada por uma poderosa batalha sobre quem pagará a conta desta crise: será a classe trabalhadora novamente?
Esta crise tem sido um ponto de inflexão crucial em muitos aspectos. Passaremos por diferentes fases à medida que a crise evoluir, mas, em geral, a situação será muito aberta. As exigências anteriormente consideradas mais difíceis serão aceitas como realistas e exequíveis, tais como uma redução geral das horas de trabalho sem perda de remuneração, a organização do local de trabalho e a democracia comunitária. Um programa socialista, baseado na estatização e no planejamento democrático de sectores-chave da economia, encontrará um eco muito maior do que no passado. A crise do Coronavírus, tal como a crise climática, mostra vividamente a necessidade ardente de um planejamento socialista internacional, com base num novo regime de parceria e cooperação global, o que é impossível no sistema capitalista movido pela ganância.
Entretanto, como em qualquer outra crise da história capitalista, o sistema encontrará maneiras de se preservar, sobre os ossos da classe trabalhadora e dos pobres, se não for construída uma alternativa. A construção de uma força socialista revolucionária internacional, que cresce e se desenvolve como parte das lutas vindouras, que intervém energicamente defendendo uma luta unida pela transformação socialista da sociedade em escala internacional, é primordial, se a classe trabalhadora global quiser evitar pagar o preço de mais uma crise.