Relato de um sistema de saúde despreparado

No momento em que países ao redor do mundo estão realizando medidas drásticas para conter a pandemia do novo Coronavírus, no Brasil, o suposto líder do país brinca com o perigo que isso pode representar. Nosso militante relata a experiência de como é estar com sintomas do vírus e usar o sistema público de saúde. 

Desde de sexta-feira (13/3), estou com febre muito alta, dores no corpo e outros sintomas que podem indicar que estou com Coronavírus. Minha namorada também apresentou sintomas parecidos, porém mais leves do que os meus. Decidimos ficar em casa e tentar ter o mínimo de contatos sociais desnecessários, seguindo as orientações sobre a pandemia em várias partes do mundo. 

Pelo menos, esse era o nosso plano, mas na realidade do sistema capitalista as coisas não são tão simples. O meu trabalho aceitou que eu estou com sintomas e me orientou a ficar em casa, mas o trabalho dela insistiu que ela pegasse um atestado médico. Isso significou uma saída de casa para um posto de saúde ou hospital público, já que nenhum dos dois tem plano de saúde. 

Para tentar tomar providências no sentido de prevenir disseminação, procuramos máscaras e álcool em gel nas farmácias do bairro, mas em todas as quatro por que passamos esses produtos tinham acabado. No caminho, passamos em frente a um CRT (Centro de Referência e Treinamento), que estava cheio, com filas até do lado de fora, e que só estava atendendo pacientes já acompanhados pelo serviço. Seguimos para o AMA (Assistência Médica Ambulatorial) mais perto, tentando evitar o máximo de contato na rua. 

Até o momento em que escrevi este texto, havia um registro de morte por causa do novo Coronavírus e 300 casos confirmados no Brasil inteiro. Mas, após chegarmos na AMA, ficou evidente que esse número não está correto. Quando chegamos nesta pequena AMA, havia pelo menos 30 pessoas esperando para fazer a triagem, mais de 30 no lado de dentro esperando serem atendidas por um médico, e mais pessoas chegando. A grande maioria delas estavam relatando sintomas do vírus. 

Lá dentro não havia espaço para fazer a triagem de todos os pacientes, então metade das pessoas estavam sendo atendidas no lado de fora e muitas eram dispensadas no atendimento. Todos os funcionários estavam com máscaras e trabalhavam o mais rápido possível, para tentar controlar a situação. De vez em quando, enfermeiras anunciavam para os pacientes lavarem as mãos e usarem a espuma antisséptica, que já tinha acabado em 2 dos 3 dispensadores fixos da parede da clínica. Anunciaram também que estamos em “estado de pandemia”, que os acompanhantes tem que esperar do lado de fora, e que as pessoas com mais de 65 anos evitassem ir para os postos de saúde se não fosse por motivo de emergência. 

Quando fui atendido pelo médico, ele confirmou que estava com sintomas de gripe. Em nenhum momento usou as palavras “coronavírus” ou “covid-19”, mas falou para eu me isolar no meu quarto e só falar com pessoas usando máscara. Atestou um afastamento do trabalho de no mínimo 5 dias. Para minha namorada, ele só disse que ela estava resfriada e que ela pode voltar ao trabalho, isso mesmo depois de explicar que estamos na mesma casa. 

Não fizeram o teste para verificar se a gente realmente está com o vírus. No estado de São Paulo os testes só são utilizados se o paciente estiver em uma situação grave, com problemas respiratórios, que só ocorrem em 19% dos casos (Fonte: OMS casos confirmados por laboratórios). Isso significa que não temos a certeza se estamos ou não com coronavírus. Significa que não tem nenhum jeito dos números colocados refletirem a verdadeira quantidade de pessoas já infectadas. O fato de que na maioria dos casos os sintomas são relativamente leves significa que ou algumas pessoas não vão nem se preocupar se ficarem com alguns sintomas leves ou não vão ser testadas se buscarem ajuda médica.  

Se pararmos para pensar sobre o que isso significa, concluiremos que nesse momento ainda relativamente cedo da pandemia no país, não temos uma ideia real de quantas pessoas estão infectadas andando por aí. Isso segue o mesmo caminho do que vimos em outros países que reagiram tardiamente aos danos deste caos. Isto, combinado com a irresponsabilidade do Bolsonaro em diminuir os perigos dessa pandemia só pode agravar a situação. Um exemplo dessa gravidade foi expresso pelas enfermeiras que disseram que “se a gente conseguir ter a situação controlada até agosto ou setembro, aí podemos dizer que sobrevivemos”. 

Nada disso é para falar contra os trabalhadores da saúde pública. Todos ali estavam trabalhando o máximo possível em condições muito difíceis. A questão é que a situação vai piorar e ficou evidente que a nossa rede de saúde pública não está preparada para isso. Em algumas UBS não tem máscara para os trabalhadores, isso sem nem falar das estruturas inadequadas, falta de equipamentos, funcionários e etc. 

Esses são os resultados concretos das políticas neoliberais dos últimos governos, dos cortes e congelamentos de orçamento. O SUS como está agora não funciona, e deve piorar em tempos de crise. Precisamos ir além de defender o SUS sem explicar; defendemos um SUS melhor, com suficiente orçamento para que todos, em qualquer lugar do país, possam ser atendidos com eficiência e dignidade. Para que todos os trabalhadores da saúde pública possam trabalhar em condições de trabalho seguras e adequadas. 

Ao final do atendimento, deram dipirona para os dois e fomos embora. Até agora parece que os nossos sintomas estão melhorando, mas a situação do país está só começando. Todos nós precisamos agir para prevenir a propagação desse vírus. Mas não podemos deixar de organizar a luta por um SUS que funcione para todos e para combater um sistema que valoriza lucro acima das vidas das pessoas.

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