Coronavírus precipita crise mundial

A quarentena que está sendo imposta cada vez mais ao redor do mundo para frear a disseminação do vírus, está afetando rapidamente a economia mundial que já caminhava para uma nova crise. Em vários aspectos, a economia mundial entra em uma situação mais frágil do que quando estourou na crise anterior de 2007-2008.

A última semana tem sido um ponto de inflexão dramático, quando as tentativas dos governos de minimizar a crise de saúde pública e econômica a algo que teria impacto limitado fora da China caíram por terra.

Semana dramática

A segunda-feira, 9 de março, começou com o colapso de 30% do preço do petróleo, causado por uma declaração de guerra de preços entre Arábia Saudita e Rússia. No mesmo dia, a Itália, com 60 milhões de habitantes, e a oitava maior economia do mundo, declarou quarentena em todo o país para deter o avanço do vírus. Esses fatores levaram a uma queda nas bolsas de valores ao redor do mundo, com a bolsa de São Paulo caindo 12,2%.

Na quarta-feira, a Organização Mundial da Saúde finalmente declarou que a doença causada pelo novo coronavírus, a COVID-19, se caracteriza como uma pandemia. Donald Trump, que até então minimizava os riscos do vírus, anunciou a proibição de entrada de viajantes vindo da Europa, que agora é o principal foco da doença. As bolsas europeias tiveram o pior dia da história com grandes quedas.

Ao redor do mundo governos declararam medidas emergenciais, como sempre com as maiores quantias direcionadas para manter os mercados financeiros. O banco central dos EUA, o Fed, anunciou na quinta-feira que iria injetar US$ 1,5 trilhões no mercado de títulos do governo. Isso conseguiu frear o derretimento total da bolsa brasileira, que no momento estava em queda de 19,6%, mas terminou o dia com uma queda de 13,94%, uma mas maiores da história.

País após país começam a implementar restrições a viagens, atingindo já mais de 80 países. Muitas delas mais como uma maneira dos governos mostrarem iniciativa do que uma medida verdadeiramente eficaz. Como no caso dos EUA, onde a epidemia já se propagava dentro do país.

Seguindo o exemplo da Itália, Espanha e França também declararam quarentena nacional, onde toda a população deve se manter em suas casas, menos para ir ao trabalho, se não for possível trabalhar de casa, comprar comida ou ir à farmácia.

A segunda-feira, dia 16 de março, foi um novo dia dramático. No dia anterior, o Fed tinha declarado um corte emergencial de juros nos EUA maior do que esperado, para entre 0% e 0,25%. Isso serviu mais para criar pânico no mercado do que acalma-lo. Também foi anunciado dados oficiais da China, mostrando que a queda econômica foi muito maior do que se esperava. Na segunda-feira, também foi anunciado que a União Europeia irá fechar suas fronteiras, algo que grande parte dos países que compõe a união já tinham feito.

O resultado foi novas quedas nas bolsas. O Dow Jones (um dos principais índices da bolsa de Nova York), despencou 12,93%, a terceira maior queda da história do país, superando as maiores quedas da crise de 1929. O Bovespa caiu 13,92%, totalizando uma queda de 38,5% desde o início do ano. O dólar atingiu o maior nível nominal da história cotado a 5,047 reais. Com a queda geral na economia, mas principalmente no transporte aéreo, o petróleo continuou a cair, chegando a valer menos de 30 dólares o barril, acumulando uma queda de 55% neste ano.

China: pane no motor da economia mundial

A propagação do vírus começou na cidade de Wuhan, na província Hubei, um importante polo industrial. A primeira reação do governo foi de tentar abafar a informação sobre o vírus. Quando isso não era mais possível e havia o risco do vírus se espalhar rapidamente no país durante o feriado do ano novo lunar, quando centenas de milhões de trabalhadores migrantes viajam para visitar suas famílias, o governo impôs medidas draconianas. Mais da metade da população do país chegou a estar em alguma forma de quarentena e a produção foi diretamente afetada. 

Sendo a China produtora não só de produtos finais, mas também de peças e insumos para o mundo inteiro, a produção foi afetada ao redor do mundo. Os efeitos eram visíveis até dos céus, com a diminuição da poluição.

No dia 16 de março foram publicados os dados oficiais da atividade econômica de janeiro-fevereiro. Nesses dois meses, a produção industrial caiu 13,5%, as vendas no varejo caíram 20,5% e os investimentos 24,5%. As quedas no consumo e investimento foram as primeiras desde que os registros começaram a ser feitos em 1990 e ficaram bem abaixo das previsões. Isso aponta para a possibilidade de uma queda no PIB para o ano inteiro pela primeira vez desde a morte de Mao em 1976.

Cerca de 5 milhões de pessoas perderam seus empregos, com a taxa oficial de desemprego subindo para 6,3% em fevereiro, comparado com 5,2% em dezembro. Mas esses dados não incluem os trabalhadores migrantes, que são os mais afetados pela crise. 

A produção está sendo retomada, mas ainda está longe de estar em pleno vapor. Na semana passada, 95% das grandes empresas fora de Hubei tinham retomado as produções, mas só 60% das pequenas e médias empresas.

O vírus não causou a doença econômica

O coronavírus está agindo como um gatilho, mesmo se bem dramático, para uma crise que já estava sendo gestada. A grande maioria das economias mundiais já estava desacelerando. A economia chinesa, quem tem sido o principal motor do crescimento mundial desde 2008, cresceu oficialmente 6,1% no ano passado, o menor nível em 29 anos.

A União Europeia tem tido um crescimento anêmico, com a maior economia do bloco, Alemanha (quarta maior do mundo), tendo um crescimento zero no quarto trimestre de 2019. No mesmo trimestre, o Japão (terceira maior do mundo), teve um tombo de 1,6%, como resultado dos efeitos de tufões e aumento no imposto sobre consumo.

A medicina principal usada para superar a grande crise de 2007-2008 foi uma grande injeção de dinheiro nos mercados para salvar os bancos, enquanto o povo trabalhador foi tratado com políticas de austeridade e retirada de direitos.

O resultado depois de mais de uma década mostra como isso não serviu para gerar uma base econômica saudável. Se o detonador da crise foi um acúmulo de dívidas “podres” no setor bancário, essas dívidas diminuíram, como também as dívidas das famílias. Mas as dívidas públicas cresceram, já que os governos a bancaram com o resgate dos bancos. O endividamento total no mundo continuou a crescer dramaticamente desde 2008, chegando a equivalente 322% do PIB mundial. A maioria dessas dívidas são acumuladas na China e nos EUA.

A tendência é da economia se tornar viciada em crédito barato, com os juros sendo extremamente baixos nas principais economias (e negativos no Japão e União Europeia).

Essa montanha de dinheiro serviu para insuflar as bolsas e mercados imobiliários ao redor do mundo e para um histórico crescimento das maiores fortunas no mundo, levando o nível de desigualdade entre ricos e pobres a níveis estratosféricos.

Um setor onde ouve um grande crescimento de dívidas, e que agora preocupam os mercados são as dívidas de empresas. A quantia de títulos emitidos por empresas dobraram desde 2008. A maioria desses títulos emitidos nos últimos anos tem nota baixa (BBB, a nota mais baixa para obter “grau de investimento”) e vencem em curto prazo. Com a crise atual, esses títulos podem ter suas notas rebaixadas, o que forçará fundos de pensão a venderem os títulos, e muitas empresas não vão conseguir vender novos títulos quando eles vencerem. 

Como na crise do subprime, é possível que uma crise financeira das empresas acabem afetando também os bancos novamente, já que muitas vezes são eles que compram esses títulos, que rendem mais que títulos dos governos.

Mundo menos preparado que em 2007

Em vários sentidos, o mundo capitalista está menos preparado para enfrentar essa nova crise. Primeiramente, porque não dá para simplesmente repetir as mesmas medidas da crise anterior e esperar que continuem tendo o mesmo efeito.

Se os governos continuam a injetar trilhões de dólares nos mercados, os efeitos negativos tendem a se acumular, resultando em novas bolhas especulativas, sem ter muito efeito na economia real. Um risco difícil de calcular é até quando você pode imprimir dinheiro, mesmo se virtualmente, antes disso começar a levar a uma perda no valor desse dinheiro e elevando a inflação. Uma crise inflacionária hoje seria devastadora. Só um aumento dos juros de alguns porcentos já seria catastrófico em uma situação de superendividamento.

Uma outra medida que já não terá o mesmo efeito é a redução de juros. Em 2008-2010, os juros oficiais no mundo foram reduzidos em 3%. Agora não há mais esse espaço. Como dito, a União Europeia e o Japão já tem juros negativos. Os EUA reduziram os juros em 5% na crise anterior. Agora reduziram 1,5% e já chegaram a zero. Reduzir os juros bem abaixo de zero pode rapidamente gerar grandes distorções.

Desglobalização e protecionismo

Uma mudança significativa comparado com 2007-2008 é o crescimento do protecionismo, com os governos sendo menos propensos a coordenar sua medidas. Essa tendência não começou com Trump, mas a guerra comercial entre os EUA e China acentuou o problema. Apesar de muito alarde sobre o “acordo” entre os EUA e China, isso só foi uma trégua temporária, mas a maioria das tarifas permanecem. O comércio mundial já tinha deixado de ser um motor para o crescimento mundial.

O fator principal por trás disso é o crescimento da economia chinesa, que ameaça a dominância dos EUA, incluindo em tecnologia de ponta.

A crise atual reforça uma tendência de “desglobalização”. Trump tem declarado abertamente que as empresas estadunidenses devem produzir mais no país. As vantagens de produzir na China vem diminuindo também, com o país não mais tendo os salários mais baixos.

A interrupção de fornecimento nos últimos meses mostram também que pode ser arriscado apostar toda a produção em um só lugar, no outro lado do mundo. Empresas dos EUA podem tender a investir mais em produção no seu quintal, como México e América Central. Empresas europeias podem fazer o mesmo no Leste Europeu.

A crise do coronavírus também dá munição para os políticos reacionários e de extrema direita, que promovem um discurso xenófobo. Trump, que já tinha proibido no início do seu mandato a entrada de pessoas de sete países mulçumanos e tem como um dos principais pontos de propaganda a construção de um muro contra migrantes latinos, se refere ao coronavírus como o “vírus chinês”. E não que não haja reação conspiratória também do outro lado, como o porta-voz do ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, sugerindo na semana passada no Twitter que o “paciente zero” da pandemia pode ter vindo dos Estados Unidos.

O fechamento de fronteiras é a medida dos sonhos de políticos racistas e nacionalistas, que têm crescido em muitos países da Europa.

Se a tendência protecionista se aprofundar, isso pode agravar a crise. Isso foi um fator para crise mundial de 1929-33, quando o comércio mundial encolheu em dois terços.

Crise curta?

Os governos apostam agora no discurso de que a crise será curta, na forma de um “V”, com uma rápida recuperação quando a epidemia ceder. Mas isso é um otimismo sem fundamento, dado o fato de que a economia já estava desacelerando por outros fatores. A própria epidemia também não é coordenada. Na China ela está passando, mas é agora que a Europa está parando e logo depois será a vez dos EUA. 

Também vimos como essa crise tem um potencial de detonar outras crises, como de dívidas públicas ou com quebras de empresas, gerando uma espiral de aumento de desemprego que reforçará a queda do consumo.

Temos também um elemento diferente nessa crise. Em muitos países a queda de consumo é principalmente nos serviços, com as pessoas ficando em suas casas. Isso não tende a gerar o mesmo acúmulo de consumo reprimido que pode crescer rapidamente assim que a crise passar. As pessoas que deixaram de comprar uma geladeira, podem comprar assim que as coisas melhorarem. Mas quem vai ao cabeleireiro uma vez por mês, não vai duas vezes para recuperar os cortes perdidos. Uma parte desse consumo tende a ser perdido.

Do que podemos estar seguro é que os governos e empresas vão tentar garantir que nós, trabalhadores e trabalhadoras, paguemos a conta. As empresas já estão demitindo ou implementando “lay offs” (dispensando trabalhadores temporariamente sem remuneração). 

Brasil, o discreto charme da incompetência reacionária

Bolsonaro pode se gabar por ser um dos últimos líderes de governo que não entendeu a gravidade da crise. Ao mesmo tempo, Paulo Guedes, que parece ter mais noção, ainda tem como prioridade tentar implementar algumas de suas “reformas”, que atacam os direitos de trabalhadores, que é a única razão de ser desse governo diante do mercado.

Diante da crise, a reação de Paulo Guedes foi que só lançará mão de estímulos quando algumas medidas forem votadas. Com o agravamento da crise, especialmente as quedas históricas das bolsas, ele foi forçado a agir anunciando um pacote de R$ 147,3 bilhões de reais. Como comenta Vinicius Torres Freire, da Folha de São Paulo, “Governo solta pouco dinheiro contra epidemia e não pensa em pobres e pequenos”. Primeiramente, porque não há medidas que chegam àqueles que estão na informalidade, cerca de 40% da população. A única medida é de aumentar o Bolsa Família, o que na verdade só diminui o atraso em ceder novas bolsas que o próprio governo gerou. 

A maioria do dinheiro, 60%, se trata de adiar pagamento de impostos ou adiantar recebimento de benefícios, como antecipar 13° do INSS. Isso ajudaria superar uma crise se ela realmente fosse de alguns meses. Mas a crise vai for mais profunda e longa, aí esse estímulo some rapidamente.

Esse governo não tem nenhuma intenção de superar as amarras do sistema, como o teto de gastos e lei de responsabilidade fiscal, para não falar de aumentar a arrecadação taxando as fortunas e lucros das grandes empresas. Pelo contrário, ele quer criar novas medidas de austeridade, que em situação de crise vai agir como gasolina na fogueira, como redução dos salários de servidores públicos. A meta do governo não é salvar pessoas comuns, mas usar a crise para promover uma redistribuição de renda para as empresas e os ricos.

O governo deve também preparar novos contingenciamentos (cortes) dos gastos, já que a crise vai reduzir a arrecadação. Isso vai contribuir para aprofundar a crise. 

A queda no preço do petróleo, saudada por Bolsonaro, vai atingir as contas públicas. Segundo estimativa feita pela Instituição Fiscal Independente (IFI), a receita bruta da União deve encolher, em 2020, entre R$ 15 bilhões e R$ 17 bilhões por causa da queda do preço do petróleo. Isso vai afetar também os estados, principalmente o Rio de Janeiro, que já está em crise, onde em 2019 os royalties e participações especiais representaram 15% do estado.

Sistema doente

Essa crise mostra novamente por que o capitalismo e o sistema de mercado não serve. Todos os mecanismos do capitalismo jogam contra resolver os problemas mais agudos.

Todas as medidas emergenciais tendem a ir contra os interesses das empresas. O estado tem que assumir o controle de todos os equipamentos de saúde, públicos e privados, para garantir que toda a população seja tratada. Se só quem tem dinheiro é tratado, a população toda, e no final, a economia também, sofre mais. O desenvolvimento de remédios é mais rápido se todos os cientistas e laboratórios colaboram uns com os outros, ao invés de cada um correr para ser o primeiro e garantir patentes lucrativas. Para salvar empresas e empregos, é o poder público que tem que dar garantias. Se deixar o mercado reinar, são empresas demitindo e afundando a economia e mercados aumentando os preços de mercadorias essenciais. 

Quando os governos acertam, são quando eles vão contra o próprio sistema. Por exemplo, o governo espanhol decidiu que vai estatizar hospitais privados do país para garantir atendimento a todos durante o período de pandemia do coronavírus, colocando os serviços privados que seriam colocados à disposição da população.

A crise mostra, como sempre, como a solidariedade entre pessoas comuns é o motor mais poderoso e eficiente que a busca pelo lucro. Ao mesmo tempo são os mais pobres que sofrem, que morrem. Isso vale para o país mais rico no mundo. 

Nos EUA, 45% da população não tem nada de poupança e 24% tem menos de mil dólares. Ao mesmo tempo, 28 milhões não tem plano de saúde e muitos mais não tem planos que não cubram o que é necessário. 32 milhões de empregados no setor privado não tem direito a licença médica. Além disso, correm o risco de perder o emprego. O vírus é para todos eles uma catástrofe econômica.

A epidemia do coronavírus é um sintoma de uma doença maior, chamada capitalismo.

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