Apagando incêndio com gasolina

Foto: Alex Gomes

Militarização e populismo penal não é solução para a crise da segurança

A segurança pública tem sido pauta cada vez mais frequente entre trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Para além dos casos diários de violência, essa preocupação aumenta com episódios recentes que expuseram a gravidade da crise que vivemos, como o caos no Ceará em janeiro de 2019. A opção por tornar mais militarizadas e ostensivas as políticas públicas de segurança, a proposta do governo Bolsonaro de armar a população e a legislação anticrime do ministro Sérgio Moro são medidas que não resolvem a situação no Brasil – agravam-na. 

Segurança do Ceará em chamas

Em geral, a pauta alcança mais repercussão social e midiática em episódios de violência que saem das fronteiras das periferias, ameaçando outros setores da classe trabalhadora e, principalmente, da classe média e da burguesia. Foi assim no caso do Ceará, em janeiro deste ano. Mais de 180 ações atribuídas ao crime organizado tomaram mais de 40 dos seus 184 municípios: dezenas de ônibus e carros incendiados, tentativas de explodir viadutos, além de prédios públicos e privados depredados. Apesar de aterrorizante, a disputa entre o crime organizado e o governo do Ceará registrou uma única morte nos confrontos, com contabilização imprecisa de menos de uma dezena de feridos, caracterizando-se, essencialmente, pelos danos e perdas patrimoniais.

Os ataques seriam uma resposta a declarações do secretário de Administração Penitenciária do Ceará, Mauro Albuquerque, nomeado pelo governador Camilo Santana, do PT. Durante sua cerimônia de posse, no dia 1º de janeiro, o secretário afirmou: “O Estado não deve reconhecer facção. Quem manda é o Estado”. Mauro disse também que iria zerar a presença de celulares em meio aos apenados. Além das declarações, motivaram os ataques a própria escolha do secretário, nacionalmente conhecido por seus métodos militarizados e ostensivamente violentos na gestão de sistemas penitenciários. 

Mas, isso não pode mascarar a origem da violência cearense, bem anterior às declarações e à própria nomeação de Mauro. O Ceará foi o sétimo entre os estados brasileiras que tiveram maiores aumentos nas taxas de homicídio entre 2006 a 2016. Em 2018, foi palco de pelo menos cinco chacinas, com 53 mortes, segundo a imprensa local. Em nenhum momento, o governo petista reeleito deixou de apostar no aumento do policiamento e do encarceramento como tática central de sua política. O resultado foi o insucesso e a eclosão de outra crise em 2019. 

Receita simplista e fracassada

O Ceará não é caso isolado no Brasil, não estando, por exemplo, entre os dez estados mais violentos, segundo o Atlas da Violência 2018. Aliás, a violência no Brasil não é singular, apesar de ser um dos nove países mais violentos do mundo em 2018, segundo a Organização Mundial da Saúde. A burguesia, por sua vez, tenta nos convencer de que, para pacificar, bastaria seguir uma receita simplista e já fracassada: fortalecer a polícia, sobretudo de cunho militar e ostensiva, endurecer penas, preferencialmente em prisões privatizadas. Articulam um flagrante projeto econômico camuflado por discursos apelativos repercutidos pela mídia e demais aparelhos ideológicos, ancorando-se nos nossos medos e indignação. Em síntese, estas são algumas das marcas do que se chama de populismo penal.

Apesar de os governos Temer e do PT terem atuado de modo semelhante na pauta da segurança, o governo Bolsonaro, sem dúvidas, acirra a perspectiva populista, intensificando a defesa do armamento civil como solução de grande parte dos problemas. No dia 15/01, Bolsonaro deu um passo nessa direção e promulgou o Decreto Nº 9.685/2019, que flexibiliza a posse de arma de fogo em casa ou no local de trabalho, desde que o dono da arma seja o responsável pelo imóvel. 

Segue a mesma cartilha a versão final do “pacote” anticrime entregue por Moro à Câmara no dia 19/02: um projeto de lei complementar que altera regras de competência da Justiça Eleitoral; um projeto de lei ordinária para criminalizar o caixa 2, para o qual os parlamentares pediram desmembramento, justificando que seria uma infração penal mais leve do que a corrupção; e um projeto com as demais medidas. A concordância de Moro quanto à separação do caixa 2 expõe sua integração ao jogo político, contradizendo sua defesa anterior de que haveria equivalência entre essa prática e a corrupção. 

Destaca-se a ausência total de medidas para reorganizar o sistema prisional. O agravamento de penas e a eliminação de recursos processuais específicos, se aprovados, devem ampliar o punitivismo e a superlotação do sistema prisional, que já abriga a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 700 mil pessoas, das quais quase 40% não possuem sentença, aproximadamente 65% é negra e mais de 50% possui entre 18 e 29 anos, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. O aumento do recrutamento de apenados negros e jovens para o crime organizado é quase certo.

Propõe-se ainda a criação do excludente de ilicitude, possibilidade de redução ou isenção de pena de policial que mate em situações de confronto. A medida deve legitimar e ampliar o extermínio dos extratos mais oprimidos da classe trabalhadora, em especial e mais uma vez, de negros, jovens e pobres. 

Por uma política de segurança pública desmilitarizada, preventiva e intersetorial!

A violência ou sua tipificação criminal possuem bases econômica, sociológica, política, cultural, psicológica etc. Seu aumento, porém, tem como determinantes a desigualdade social brutal e as crises inerentes ao capitalismo, além dos processos relacionados à exploração e às opressões. Com esse aumento, lidamos com uma demanda real da classe trabalhadora, que clama: nossas vidas importam! A esquerda socialista e revolucionária precisa, por isso, debater e construir um programa transitório para a segurança pública desmilitarizado, preventivo e intersetorial, o qual reivindique: 

  • Reforma estrutural do sistema de segurança pública, desmilitarizando-o, unificando as polícias e reorganizando atribuições com foco nas ações de prevenção, investigação e inteligência com uso de tecnologias.
  • Direito à organização e sindicalização das trabalhadoras e dos trabalhadores da segurança pública em prol da conquista da carreira única, de condições de trabalho e salários, acompanhamento psicológico efetivo, formação inicial e continuada em temas como direitos humanos, mediação de conflitos, uso diferenciado da força e gestão integrada e comunitária.
  • Controle social da política de segurança pública por meio de conselhos populares com representações de moradores, movimentos sociais, sindicatos e órgãos de segurança, corresponsáveis pelos processos de produção de dados, acompanhamento e avaliação da política;
  • Redução da população carcerária brasileira por meio aceleração da tramitação processual de presos provisórios, viabilização da justiça restaurativa e do incentivo às penas alternativas, bem como de políticas de educação e reinserção sociolaboral dos/as apenados/as;
  • Nova política sobre drogas, com foco no combate às organizações criminosas, às milícias, ao sistema financeiro, empresarial e político que gerenciam, financiam e lucram com o tráfico, e no tratamento do uso de drogas numa perspectiva de saúde pública e redução de danos, assistência social e educação, descriminalizando-o e regulamentando-o.
  • Implementação de políticas públicas universais e de políticas emergenciais que funcionem intersetorialmente em prol da redução da desigualdade social, com geração de trabalho e renda, alimentação, saúde, educação, direito ao teto e à terra, iluminação pública, mobilidade, cultura, esporte e lazer.

As reivindicações para a resolução da maior parte dos problemas da violência não serão dádivas, pois mexem, centralmente, com privilégios. Além disso, a função estatal repressora da polícia e as marcas que essa escola deixa nos policiais constituem-se barreira difícil de transpor satisfatoriamente na atual superestrutura. Ainda que imprescindível lutar nas ruas, junto a parlamentos e governos por essas reivindicações, não há como não concluir que uma polícia de caráter operário e uma política de segurança pública para trabalhadoras e trabalhadores só serão plenamente possíveis com o engajamento da classe nas lutas pela ruptura com este sistema e pela construção do socialismo. 


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