Uma nova situação nacional, nossas políticas e tarefas

Introdução

A eleição de Jair Bolsonaro e a constituição de seu governo a partir de janeiro de 2019 representam um ponto de inflexão qualitativo para a situação do país com grandes repercussões internacionais, em particular na América Latina. Representam também um marco decisivo para a esquerda brasileira em geral e nossa Organização em particular.

Para buscar entender e preparar nossa intervenção nessa situação, além de discutir outros temas, Comitê Nacional da LSR reuniu-se entre 15 e 17/11/2018. Esse documento reflete a introdução ao debate realizado nessa reunião com os devidos ajustes e acréscimos resultante do debate entre os membros do CN.

Trata-se de um documento inicial que deve colaborar no esforço para construirmos uma análise mais aprofundada da nova situação que se abre no Brasil e que deve se desdobrar em novos documentos e discussões no CN e em todos os organismos da LSR, sempre em contato e debate com outros setores da esquerda e dos movimentos da classe trabalhadora.

Abordaremos aqui, de forma sumária, as razões, o contexto e as consequências da vitória de Bolsonaro e nossas políticas e tarefas diante disso. Junto com isso, daremos destaque a uma tentativa de balanço de nossas próprias análises até agora e as lições que tiramos para a continuidade do debate sobre as perspectivas para o Brasil.

Antes, uma advertência. Não é possível entender a ascensão da extrema-direita no Brasil sem analisarmos esse fenômeno nos marcos internacionais. Na reunião do CN, previamente à discussão sobre o Brasil, realizamos uma discussão com caráter de formação política sobre os fenômenos do populismo de direita, fascismo e bonapartismo internacionalmente. Essa discussão resultou em um texto e um vídeo que podem ser acessados como complemento à discussão sobre Brasil.

Da mesma forma, o Comitê Executivo Internacional do CIT deve debater e encaminhar documentos analisando em profundidade a situação internacional no final de novembro. Esse material também deverá ser utilizado em nossas analises e debates. Aqui, porém, não abordaremos a situação internacional.

Bolsonaro: um ponto de inflexão na situação nacional

A vitória de Jair Bolsonaro representa um ponto de inflexão na situação nacional com fortes repercussões internacionais, especialmente na América Latina. O conteúdo dessa inflexão é negativo em sua essência. Estamos diante de uma piora qualitativa das condições de luta e um grande retrocesso do ponto de vista dos trabalhadores, dos oprimidos e da maioria do povo brasileiro.A correlação de forças sociais e políticas tornou-se mais desfavorável para os trabalhadores. As condições de vida para o povo tendem a piorar com as políticas a serem implementadas pelo novo governo. Ao mesmo tempo, deveremos ter um nível qualitativamente maior de medidas repressivas tanto institucionais como para-institucionais.Esse novo cenário que se abre exigirá inflexões em nossas táticas e políticas com o objetivo de, como parte do movimento dos trabalhadores e setores oprimidos, buscarmos limitar ou estancar o retrocesso e ao mesmo tempo criar as condições para uma virada na situação.

Não podemos subestimar a profundidade das mudanças. Ao mesmo tempo, temos que buscar entender os elementos de continuidade e ruptura na situação. A ascensão de Bolsonaro não é um raio em céu azul, mas também não é mera continuidade do anterior. Estamos vendo aprofundarem-se certas tendências e enfraquecerem-se outras. É importante identificar a dinâmica desse processo.

Fortaleceram-se as tendências autoritárias e de exceção do ponto de vista da ação da classe dominante e cresceu a confusão na consciência de amplos setores da sociedade, incluindo a classe trabalhadora. Mas, é importante identificarmos que não se eliminou o espaço para a resistência e a luta de massas. Não vivemos uma situação de derrota histórica ou esmagamento do movimento de massas. Não vivemos uma situação equivalente a 1964, com o golpe de Estado que derrubou Jango, ou 1968, com o fechamos ainda maior do regime ditatorial.

A força latente e potencial da classe trabalhadora e dos setores oprimidos foi demonstrada no último período com a greve geral de abril de 2017 e o movimento de mulheres cujo auge foi a manifestação do #EleNão em 29/09/18, entre outros exemplos. Essa força pode ser reativada a partir da experiência concreta e da ação consciente da esquerda organizada. Uma virada na situação é possível. O jogo ainda está sendo jogado, a luta e a resistência seguem e serão uma marca fundamental do próximo período.

Devemos calibrar nossa análise, sem impressionismo ou exageros, para adotar uma política correta e adequada à correlação de forças. Devemos buscar o equilíbrio correto entre prudência e ousadia. Não perder oportunidades e ao mesmo tempo não apostar em aventuras. Para isso precisamos de uma análise equilibrada e precisa da situação e a definição de políticas efetivas. Para conseguirmos isso temos que fazer um balanço de nossas próprias análises até aqui.

Força, amplitude e rapidez do crescimento de Bolsonaro

A linha geral de análise sobre a evolução do cenário nacional que fizemos desde nosso Congresso, mostrou-se correta. Mas, como antecipamos no próprio documento votado no Congresso, a volatilidade presente na situação exigiria ajustes e correções. Isso era ainda mais evidente no que se refere ao cenário eleitoral, marcado por inúmeras incertezas e indefinições durante todo esse período.

As eleições no sistema político da burguesia são um reflexo distorcido da correlação de forças na sociedade. Elas têm uma importância fundamental, mas não explicam tudo e não sintetizam em si mesmas todos os processos sociais, políticos e de consciência.

Olhando retrospectivamente, a maior imprecisão de avaliação que cometemos foi relacionada à força, amplitude e rapidez do fortalecimento da extrema-direita e de Bolsonaro em particular.

É importante destacar que em todos os documentos que escrevemos desde nosso Congresso apontamos a possibilidade concreta de Bolsonaro vencer as eleições. Nunca descartamos essa possibilidade. Ela fazia parte do cenário de polarização e volatilidade no país.

Apontamos explicitamente que, independentemente do resultado eleitoral, Bolsonaro já era, e se tornaria ainda mais, um fator político muito relevante no cenário nacional. Mesmo perdendo as eleições, Bolsonaro e a extrema-direita seriam uma oposição poderosa e com forte base social capaz de gerar ainda mais instabilidade no país.

No entanto, em nossos documentos, colocamos uma vitória eleitoral de Bolsonaro como “bastante improvável” e, no caso de acontecer, seria como um “acidente” de percurso, comparável ao que aconteceu com Trump nos EUA. Essa ênfase foi errada, como é fácil identificar olhando-se retrospectivamente.

Essa análise subestimou o crescimento da força social da nova extrema-direita no país e, ainda mais importante, subestimar a crise da direita tradicional, encabeçada pelo PSDB. Durante o processo eleitoral, Bolsonaro conseguiu ampliar sua base de apoio social. Partindo do núcleo duro bolsonarista, implantado na pequena-burguesia, branca e masculina, das regiões sul e sudeste, a extrema-direita conseguiu, na reta final das eleições, ampliar sua base em setores populares, de um lado, e na própria grande burguesia, de outro.

Essa caracterização é importante porque aponta caminhos para a resistência contra Bolsonaro. As chances de defecções e divisões na base social bolsonarista devem vir principalmente dessas camadas, com ênfase nos setores populares, em particular a classe trabalhadora mais pobre e que será mais afetada pelas políticas do novo governo. Mas, podemos ver divisões na grande burguesia que, mesmo sem serem definitivas, podem impactar na conjuntura.

Fatores estruturais e conjunturais

A vitória eleitoral de Bolsonaro baseou-se tanto em processos mais estruturais quanto de fatores mais conjunturais e contingentes.

Do ponto de vista estrutural o que vimos foi a profunda crise do regime político da “Nova República”, diretamente relacionada com as consequências ainda visíveis dos três anos de gravíssima recessão econômica.

A crise política e econômica são estruturais na medida em que refletem um processo internacional e com impacto de longo prazo. Trata-se da etapa aberta com a crise capitalista de 2007/2008 e as crises políticas que internacionalmente inclusive chegaram a provocar insurreições e levantes populares, assim como derrotas que abriram espaço para a nova direita internacionalmente.

As crises políticas e crises econômica com características estruturais marcam a etapa histórica em que vivemos no Brasil e, em grande parte, no mundo. Essa foi a base de nossas análises desde 2007/2008, do ponto de vista internacional, e desde junho de 2013, no caso do Brasil.

São esses fatores que criaram uma situação de polarização social e política no Brasil em um processo marcado pela volatilidade, altos e baixos, avanços e retrocessos do ponto de vista dos de baixo e que tem como marco fundamental as Jornadas de lutas junho de 2013.

O processo eleitoral, porém, deu lugar a inúmeros fatores conjunturais, incluindo alguns de caráter acidental ou aleatório. Embora esses fatores sejam em grande parte impossíveis de serem previstos ou antecipados, sempre colocamos que a volatilidade da situação poderia fazer com que acidentes mudassem o quadro de forma significativa.

Fatores conjunturais pró-Bolsonaro

O exemplo maior desses fatores conjunturais é o atentado contra Bolsonaro, a facada de que foi alvo em Juiz de Fora. O atentado serviu para amenizar ou anular vários dos fatores que levantamos como razões para que sua vitória fosse improvável.

O primeiro e mais óbvio foi a ausência de tempo de TV para sua candidatura. Com o atentado, Bolsonaro foi o candidato com mais cobertura midiática (e uma cobertura francamente favorável) por vários e vários dias no auge da campanha eleitoral. Isso reverteu a tendência por nós apontada de que os grandes meios de comunicação iriam atacar e desconstruir Bolsonaro durante a campanha em razão da opção desses meios por uma alternativa burguesa mais moderada e confiável, como Geraldo Alckmin, por exemplo.

O peso da ação ilegal, ilegítima e perniciosa de Bolsonaro nas redes sociais (caixa 2 de milhões de reais para financiar o bombardeio massivo de fake news via whatsapp) também foi um fator conjuntural importante. Mas isso não torna menos importante o papel da grande mídia convencional, principalmente em relação aos setores mais populares.

Além do espaço favorável na mídia, o atentado gerou confusão e paralisia na campanha dos demais candidatos durante vários dias. O projeto de Geraldo Alckmin (PSDB) de usar seu “latifúndio” televisivo contra Bolsonaro de forma contundente acabou sendo duramente restringida até tornar-se ineficaz.

Esses elementos conjunturais não teriam tido qualquer efeito se Bolsonaro fosse um fator político irrelevante e o cenário político não estivesse marcado pelos fatores estruturais de crise política, econômica e social. Eles não construíram um candidato vitorioso do zero. Esses fatores conjunturais foram fundamentais apenas no contexto em que Bolsonaro já era um fator central.

Outro fator, superestrutural e conjuntural, mas com relação direta com estruturas sociais, é o papel das igrejas evangélicas neopentecostais que são organizações sociais, políticas e religiosas com grande inserção social e impacto na consciência e comportamento de amplos setores populares.

O fato de que Bolsonaro conseguiu costurar um acordo político de cúpula com a maioria das grandes igrejas neopentecostais impactou de forma relevante no comportamento eleitoral de amplos setores. No passado, igrejas como a Universal do Reino de Deus (IURD), também proprietária de uma rede de TV, rádio, etc., tinham firmado um acordo político com o campo Lulista e o PT e foram um fator importante para a sustentação desses setores. A mudança de lado das igrejas evangélicas teve relevância no cenário eleitoral.

Por fim, a reta final até o primeiro turno das eleições foi marcada por uma “onda” eleitoral pró-Bolsonaro baseada na expectativa de uma vitória definitiva que evitasse os riscos de um segundo turno. A pressão por um “voto útil”, ou seja, um voto caracterizado por ser mais contra outro candidato do que a favor de um, alimentou tanto a candidatura de Bolsonaro quanto a de Haddad.

No caso de Bolsonaro, essa onda na reta final foi alimentada pela força do sentimento antipetista disseminado em amplos setores. Há razões fortes e justificáveis para que amplos setores até mesmo da classe trabalhadora rejeitassem o PT, tais como, sua completa adaptação ao sistema político apodrecido, seu envolvimento em corrupção, o estelionato eleitoral de 2014 e a aplicação das políticas de ajuste no segundo mandato de Dilma, etc.

Essas são razões suficientes para que expliquemos aos trabalhadores a necessidade de construirmos uma alternativa de esquerda ao PT. Porém, nossas posições não podem se confundir com a faceta reacionária (antiesquerdista, anticomunista, protofascista) também presente no antipetismo.

Essa faceta reacionária está presente principalmente entre os setores da pequena-burguesia, mas no último período uma parcela dos setores populares foi ganha para essa visão reacionária. Isso se deu principalmente porque não há no Brasil ainda uma esquerda radical com força suficiente para ser um polo de atração massivo.

O Lulismo e o bloqueio da reorganização da esquerda

O Lulismo é um fenômeno político que se desenvolveu durante os governos do PT e construiu raízes profundas na sociedade brasileira, em particular entre os setores mais pobres da população e com impacto maior nas regiões norte e nordeste do país. O peso do Lulismo se verificou no cenário eleitoral e ainda marcará presença no próximo período, embora viva um processo de decadência histórica.

A tática adotada por Lula e o campo Lulista durante o processo eleitoral foi um fator conjuntural importante para o desenlace observado. Em nossas análises e prognósticos apontamos corretamente que o mais provável era que Lula não conseguisse manter sua candidatura até o final.

Avaliamos que o PT mesmo assim cumpriria um papel protagonista no processo eleitoral. Porém, era muito difícil prever que o campo Lulista e Lula em particular conseguiriam bloquear ou obstaculizar tão fortemente o crescimento de outra alternativa de esquerda, como de fato aconteceu.

Sem Lula na disputa, era esperado que haveria uma importante transferência de votos para o nome indicado por ele, apesar de estar preso na Polícia Federal em Curitiba. Ainda assim, essa situação esdrúxula permitia que se esperasse que uma parcela desses votos se desgarrasse do PT e pudesse ser capturada por uma alternativa como a de Boulos e do PSOL.

Dizer isso não significa concordar com a linha majoritária do PSOL e de Boulos que, em nossa opinião, ficou perto demais de Lula e diferenciou-se menos do que deveria nesse processo. Buscar ganhar uma parcela da base social de Lula e do PT não significa tentar mostrar-se igual ao PT. Todo o contrário, se Boulos aparecesse apenas como um novo PT, a tendência do eleitorado seria apoiar diretamente ao PT e o nome indicado por Lula e não alguém de fora.

Para ganhar setores da base social petista seria preciso demarcar as diferenciações com as políticas do PT que levaram a derrotas como o golpe de 2016, a aprovação da reforma trabalhista, etc.

De qualquer forma, o fator principal nesse processo foi a capacidade do Lulismo, mesmo em decadência, manter uma base eleitoral importante, chegar ao segundo turno e limitar ou bloquear a ascensão de alternativas de esquerda não petistas.

Esse fator é uma chave explicativa fundamental para entendermos o fenômeno Bolsonaro e o resultado eleitoral. A direita se reorganizou e se renovou, assumindo cores mais radicais e extremas e se colocando como oposição ao sistema. De outro lado, a “esquerda” manteve-se como representante da ordem, do sistema, de um suposto passado glorioso. Não se reorganizou sobre novas bases, representou o velho enquanto a bandeira do “novo” ficou nas mãos da extrema-direita.

A constatação de que o PT teve força para bloquear a reorganização da esquerda não muda nossa avaliação de que estamos em um processo de encerramento do ciclo político de hegemonia petista sobre a esquerda e os movimentos sociais. Serve como um dado a mais em nossa avaliação de que o fim do ciclo do PT não se dará como uma ruptura repentina e drástica, mas sim como parte de um processo contraditório, com altos e baixos e relativamente estendido no tempo.

O PT teve um resultado eleitoral significativo no nordeste do país, obteve a maior bancada de deputados federais e conseguiu colocar um nome pouco expressivo como o de Haddad no segundo turno das eleições. Isso representa um ganho importante se compararmos ao fiasco do PT nas eleições municipais de 2016. Mas, seria um erro pensar que o PT se recuperou do baque representado pelo fiasco de Dilma e o golpe de 2016.

O campo Lulista demonstrou ter força suficiente para limitar ou bloquear a reorganização da esquerda no cenário eleitoral, mas não teve força para enfrentar os desafios de uma extrema-direita em ascensão. Foi mais uma vez derrotado.

Esse PT intrinsecamente vinculado ao sistema político e à ordem vigente não será capaz de enfrentar o governo Bolsonaro. Continuará sendo um grande organizador de derrotas. Como consequência, crescerão os setores mais críticos pela esquerda ao lulo-petismo e um novo impulso de reorganização da esquerda deve surgir.

De forma geral, há uma piora na correlação de forças e o espaço para a esquerda diminuiu. Mas, esse espaço será mais crítico ao PT, abrirá, paradoxalmente, espaço para uma esquerda mais radical e crítica.

Esse processo será volátil, desigual, marcado por altos e baixos. Ele pode resultar em um nível de fragmentação das forças organizadas dos trabalhadores e da esquerda, como aconteceu com o fim do ciclo político de hegemonia do PCB na esquerda a partir dos anos 1960/70, que precisa ser evitada.

Diante de Bolsonaro e dos ataques da burguesia, a luta contra a fragmentação e dispersão das forças populares e dos trabalhadores pode e deve ser enfrentada por uma política de unidade de ação e frente única, sem que isso impeça a necessária luta por uma nova alternativa de esquerda distinta do lulopetismo e que tire as conclusões de seu fracasso.

Polarização social e política ou onda conservadora?

A vitória de Bolsonaro recolocou o debate sobre a existência de uma onda (ou um tsunami, segundo alguns) conservadora como a chave explicativa fundamental da situação atual e do último período.

O documento que votamos em nosso Congresso em março/abril entrou nesse debate e rejeitou essa interpretação. Em nosso entendimento, a experiência do processo eleitoral não modificou em sua essência nossa análise do período anterior. A vitória de Bolsonaro para nós não foi um desfecho inevitável de uma onda conservadora que assola o país há vários anos.

Desde junho de 2013 temos identificado um intenso processo de polarização social e política que se refletiu numa ação radical e progressiva do movimento de massas, por um lado, e no surgimento de uma nova direita que também conquistou uma base de massas capaz de ser mobilizada nas ruas.

Rejeitamos a visão de que junho de 2013 foi o marco inicial da ofensiva reacionária, posição típica do PT e do campo Lulista. Mas, também não achamos correto dizer que a derrota representada pelo golpe de 2016 sob a forma de impeachment de Dilma representou um marco que impedia uma virada na situação e uma mudança efetiva na correlação de forças.

Desde 2013 existiram momento de avanço e retrocesso na correlação de forças do ponto de vista dos trabalhadores. A direita soube aproveitar as fragilidades estruturais do Lulismo refletidas, por exemplo, nas políticas neoliberais de Dilma em 2015. Mas, existiram situações também em que a direita foi colocada na defensiva.

Explicamos isso em nossa análise sobre os processos políticos e sociais no ano de 2017, quando abriu-se uma enorme oportunidade para o movimento de massas e um impasse para a direita e a nova direita. Em 2017, o movimento de massas realizou uma importante greve geral de 24 horas e um conjunto de mobilizações que terminaram por, junto com outros fatores, impedir a aprovação da contrarreforma da previdência.

Nesse momento, com as lutas sociais e a crise envolvendo o governo Temer (um dos mais impopulares da história do país), a nova direita foi incapaz de ir para a ofensiva e setores da própria burguesia chegaram a optar pela queda do governo (como a Globo, por exemplo).

O movimento de massas não avançou em consequência da capitulação das direções sindicais e do próprio PT que tinha como meta pavimentar o caminho para uma vitória eleitoral em 2018 sem grandes turbulências – uma doce ilusão que levou a mais uma derrota.

Na reunião do Comitê Nacional que realizamos em agosto (03, 04 e 05/08), também votamos um documento que fazia uma análise da recente greve dos caminhoneiros. Nessa análise, identificamos elementos vivos das jornadas de junho de 2013 presentes nesta ação direta de um setor de trabalhadores (um setor cheio de ambiguidades e contradições, como ressaltamos) que recebeu apoio quase total da população.

Naquele momento identificamos como a extrema-direita retomou sua força depois das dificuldades de 2017 ao reforçar seu perfil antissistêmico e assumir plenamente a palavra de ordem de “Fora Temer”, mais até do que os setores Lulistas que só estavam preocupados em manter a estabilidade e vencer as eleições.

A greve dos caminhoneiros teve um desfecho progressivo na medida em que impôs uma derrota parcial a Temer e sua política de preços dos combustíveis, além de ter derrubado Pedro Parente, então presidente da Petrobras. Mas, não havia uma força política de esquerda antissistêmica capaz de capitalizar a partir dessa situação.

A vitória de Bolsonaro abre uma nova etapa, muito mais difícil, como já dissemos. Porém, mesmo agora, é importante destacar que nem todos os elementos de junho de 2013 foram eliminados do cenário. Isso está refletido no movimento de mulheres e da juventude. A questão decisiva é até que ponto pode se expandir para o movimento organizado dos trabalhadores, por exemplo, na luta contra a contrarreforma da previdência recolocada em pauta por Temer/Bolsonaro.

A debacle da direita tradicional

Outro fator político relevante na conjuntura e que marcará todo o período é a verdadeira debacle da direita tradicional no país. O PSDB teve seu pior resultado eleitoral desde que nasceu e tem seu futuro ameaçado.

Isso é uma decorrência direta de seus vínculos com o governo Temer e suas medidas antipopulares, além de seu envolvimento em corrupção. Nós identificamos essas dificuldades para o PSDB e seu candidato e afirmamos que isso teria impacto no processo eleitoral.

Porém, como já explicado, subestimamos a rapidez do fortalecimento da extrema-direita e de Bolsonaro. Achamos que o mais provável era que o peso do aparato, recursos, apoio integral da mídia e do núcleo fundamental da classe dominante em um primeiro momento, seriam suficientes para que pudessem contornar esses problemas.

Como já explicamos, fatores aleatórios como o atentado, também impediram que isso acontecesse e agravaram as dificuldades para Alckmin, o PSDB e aliados. Dessa forma o processo de reorganização da direita foi muito mais rápido e efetivo, surpreendendo a própria burguesia.

Aonde vai o governo Bolsonaro?

O CN buscará aprofundar o debate sobre as perspectivas para o governo Bolsonaro. Mas, aqui é importante enfatizarmos certos elementos que ajudam a definir nossa política.

Em primeiro lugar, é fundamental que se leve em consideração as perspectivas para a economia. O Brasil passou por uma etapa catastrófica do ponto de vista econômico e social e essa foi uma das bases da instabilidade política que vivemos.

A vitória de Bolsonaro foi celebrada pelo mercado financeiro. A paralisia de investimentos, relacionada às incertezas políticas, marcou todo o ano de 2018. Esse cenário deve mudar em parte como consequência do compromisso de Bolsonaro com as reformas neoliberais e o ajuste fiscal. Porém, essas mesmas reformas e políticas de austeridade fiscal são elementos geradores de crise, baixo crescimento, desemprego e agravamento da situação social.

No próximo período não deveremos ter uma retomada econômica vigorosa, não há bases para isso. A tendência da economia mundial é de desaceleração, sem descartar até mesmo a hipótese de uma nova crise global, o que afetaria o Brasil diretamente. Os muito otimistas falam em crescimento do PIB brasileiro de 2,5% em 2019 diante da previsão de míseros 1,4% para esse ano. Ao mesmo tempo, não podemos trabalhar com a hipótese de uma piora extrema uma vez que já saímos de uma longa recessão.

Uma coisa é certa, Bolsonaro não tem o que oferecer aos setores mais pobres da população e aos trabalhadores a não ser piora nas condições de vida e retirada de direitos. Ele não encontrará na economia a base para manter sua popularidade.

Mesmo tendo oscilado em sua posição sobre Bolsonaro, a burguesia está unida para ditar um rumo para o novo governo. Querem aproveitar-se ao máximo de um governo com legitimidade das urnas e ao mesmo tempo disposição de usar a mão de ferro para impor as contrarreformas e conter o movimento de massas.

De fato, a burguesia está em melhor situação para aplicar as reformas neoliberais pretendidas. Um fracasso nesse objetivo, provocado pela resistência de massas em conjunto com as próprias contradições do bolsonarismo levaria a uma polarização extrema com um desfecho mais radical.

O governo de Bolsonaro (que ainda nem começou) não pode ser caracterizado como um governo neofascista ou semifascista. Tampouco o conjunto do regime político pode ser caracterizado dessa forma. Não houve uma ruptura profunda no regime que justifique essa caracterização.

O fato de que Bolsonaro e muitos ao seu redor tenham tendências fascistizantes, não significa que seu governo assumirá essa forma, pelo menos não de imediato.

Apesar disso, há elementos de neofascismo ou protofascismo presentes e organizados na sociedade brasileira hoje. A tendência é que os elementos e grupos desse tipo se organizem mais e se vejam estimulados a agir contando com o beneplácito do governo.

O governo Bolsonaro pode rapidamente assumir características bonapartistas, com um nível qualitativamente superior de repressão e autoritarismo, centralização do poder no executivo, imposição de políticas até mesmo sobre setores da própria burguesia, em particular aqueles setores da burguesia nacional/interna que apoiaram o Lulismo e vinham sofrendo com a Lava Jato.

Bolsonaro não pode ser uma cópia de Trump porque o Brasil não é os EUA. Aqui trata-se de um país ex-colonial onde há uma história de golpes militares, ditaduras e altíssima repressão política e social. As possibilidades de um curso autoritário, militarista e altamente repressivo é maior.

Ao mesmo tempo, o Brasil também não é a Filipinas de Duterte, embora existam elementos semelhantes no governo Bolsonaro, em particular a guerra às drogas e o genocídio da população pobre (e negra no caso do Brasil) em consequência disso.

A comparação com a Turquia também sofre com o fato de que a localização geopolítica da Turquia e sua história política, social e religiosa, tem importantes diferenças em relação ao Brasil.

Mas, todos esses exemplos têm algo a nos mostrar sobre o futuro de um governo Bolsonaro. Ainda que o Brasil deva traçar um caminho próprio. Aliás, não podemos descartar que o exemplo de Bolsonaro, um governo de extrema-direita adotando políticas neoliberais radicais possa se tornar uma referência internacional, especialmente latino-americana, da mesma forma que Lula foi uma referência em outro sentido.

Teremos que acompanhar a dinâmica do governo, sua evolução em um sentido ou outro a partir da realidade econômica, política e das lutas sociais.

Haverá resistência democrática e da classe trabalhadora contra Bolsonaro. Haverá também elementos de divisão na própria burguesia e nos setores que dão sustentação ao governo, tais como generais, baixos oficiais, juízes, evangélicos, o clã Bolsonaro, políticos carreiristas, etc.

O “super” ministro da Justiça Sérgio Moro pode representar uma ala mais sofisticada que aposta na repressão nos marcos da institucionalidade vigente, sem abrir mão das medidas de exceção que ele já utilizou. Mas, esse caminho pode não ser o mesmo de um setor radicalizado da baixa oficialidade e setores ligados à segurança pública. Os generais querem evitar aventuras, mas podem ser compelidos a uma intervenção mais forte. Há uma diversidade de cenários possíveis.

O campo mais sério e mais ligado ao grande capital é composto pelo ministro da economia Paulo Guedes, além de Moro e os generais, que se veem com a tarefa de conter os excessos e aventuras de Bolsonaro e seus filhos, de um lado, e outrso componentes do governo que se caracterizam pelas posições mais fundamentalistas religiosas, reacionárias e “lunáticas”.

Resistência contra Bolsonaro

A ascensão da extrema-direita criou uma situação paradoxal. Ao mesmo tempo que representa uma derrota para os trabalhadores, esse processo tem impulsionado um grande interesse e disposição de luta entre camadas mais conscientes da juventude, mulheres e outros setores oprimidos e mesmo na classe trabalhadora de forma geral.

Isso ficou evidente na reta final do segundo turno e de alguma forma se mantém mesmo depois da vitória de Bolsonaro ainda que as mobilizações não tivessem tido um peso significativo. Há uma vanguarda buscando entender o que aconteceu e buscando se organizar para enfrentar o próximo período. Temos que intervir e construir a organização neste processo.

Do ponto de vista geral, nossa política contra a fragmentação da resistência e em defesa da unidade de ação deve se constituir em diferentes camadas e níveis de unidade. Temos que ser pedagógicos em relação a isso, como segue:

Unidade de ação em defesa das liberdades democráticas. Muito ampla, envolvendo todos os que se dispõe a denunciar ataques aos direitos democráticos, conspirações golpistas, perseguição a personalidades de oposição, prisões e repressão direta, etc. Em si essa unidade de ação mais pontual e essencialmente defensiva pode envolver setores políticos da própria burguesia ou pequena-burguesia (como a grande mídia ameaçada, políticos como Ciro Gomes e entidades da sociedade civil), mas não tem como ir até as últimas consequências. Os setores burgueses cedo ou tarde capitularão. Mas, mesmo sem ilusões, essas iniciativas podem ser úteis para nossa defesa aproveitando as divisões entre eles.

Frente única de classe. Formada por organizações sindicais, movimentos sociais, partidos políticos com base ou origem na classe trabalhadora. Essa frente única dos trabalhadores é necessária para se travar lutas que os setores “democráticos” da burguesia não estão dispostos a travar, como no caso das contrarreformas ultra-neoliberais. A frente única de classe tem uma importância vital para unir forças contra o inimigo de classe e ao mesmo tempo permitir que a esquerda socialista, a partir da experiência de luta comum, incida sobre a base sociais ainda submetidas a direções burocráticas. Aqui não se trata de uma aliança política em torno de um projeto de poder comum. Não temos projeto de poder em comum com o PT, por exemplo. Trata-se de criar as condições para construirmos uma nova greve geral ainda mais forte e efetiva do que a de 2017, algo que não se poderá fazer sem a CUT (dirigida pelo PT), por exemplo.

Aliança política de esquerda do PSOL com PCB e MTST (e outros movimentos) como alternativa ao PT. Essa é a base fundamental para a construção de uma esquerda alternativa capaz de superar o PT como direção do movimento de massas. Dessa aliança pode resultar um novo “partido-movimento” partindo-se do PSOL ou simplesmente manter-se como ou aliança/frente de esquerda socialista. Mesmo com seus limites e contradições, essa iniciativa é o principal motor do processo de reorganização da esquerda no país.

PSOL, que não deixa de ser um partido-frente, também tem seu papel específico. A aliança com o MTST se refletirá no interior do PSOL e esse partido continuará sendo o principal espaço de debates e iniciativas de esquerda no próximo período.

Dentro do PSOL, trabalhamos pela construção de um campo político específico que já está em formação e reúne, até o momento, correntes como a Resistência, Insurgência, Subverta, além da LSR. O debate sobre a construção desse campo dentro do PSOL será feito em outros materiais.

A ênfase e importância que damos a cada um desses níveis depende da conjuntura e do período em questão. Nesse momento o prioritário para nós é a Frente Única de classe, de um lado, e a aliança PSOL/MTST de outro.

Nossa ênfase está no papel que a classe trabalhadora e os setores oprimidos poderão jogar na luta contra Bolsonaro. Nossas palavras de ordem e programa devem refletir essas ênfases.

As palavras de ordem democráticas são importantes, como a luta contra a criminalização dos movimentos e da esquerda, liberdade de expressão, organização e manifestação, etc. Também cumpre um papel a luta pela elucidação e punição dos assassinos e mandantes de Marielle Franco e Anderson Gomes. A luta contra a “Escola sem partido” é parte desse processo.

Mas, de imediato cumpre um papel central a luta contra a contrarreforma da previdência, colocada como meta imediata de Temer/Bolsonaro. Só será possível derrotar essa contrarreforma a partir da unidade na luta dos setores da classe trabalhadora. Isso confere uma importância especial à frente única da classe trabalhadora.

A Frente Única pode expressar-se nesse momento de várias formas. A própria Frente Povo Sem Medo é um espaço de frente única de classe. Ela pode manter e aumentar seu papel protagonista, como já acontece em regiões como São Paulo. Em outras partes do país, a dinâmica pode ser diferente, com articulação de outras frentes, fóruns, comitês unificados de luta, etc. Desenvolveremos esse aspecto posteriormente.

Devemos buscar intervir nesses processos sempre com uma perspectiva de unidade  e soma dos esforços específicos. A proposta de um Encontro de todas as frentes de luta contra Bolsonaro, contra a contrarreforma da previdência e contra a criminalização dos movimentos, deve ser levantada por nós nesses espaços.

Junto com a defesa de frente única é fundamental que exista uma força política de esquerda, radical, democrática e anticapitalista e socialista, nitidamente separada do PT e das organizações do campo Lulista. Só assim será possível disputar a direção desse processo e acumular forças para a construção de uma nova direção para o movimento de massas capaz de superar o PT e seu papel de freio às lutas.

Por isso, devemos investir na aliança do PSOL com o PCB e MTST, além de outros movimentos. Devemos lutar para que a aliança assuma um caráter mais orgânico, que funcione de forma radicalmente democrática e assuma um programa socialista.

Em todo esse processo, buscaremos construir a LSR como organização política socialista revolucionária e internacionalista, como seção do CIT.

No próximo período é importante destacarmos a importância da resistência entre as mulheres e a juventude da classe trabalhadora. A construção de uma campanha ou um movimento mais amplo em torno do lema “Nossas Vidas Importam”, que usamos na campanha eleitoral, pode cumprir um papel nessa direção. Devemos desenvolver um plano concreto nessa direção e sua relação com nosso trabalho sindical, no movimento popular e na juventude.

Da mesma forma deveremos levantar com força os temas relacionados à autodefesa e segurança dos movimentos sociais e da esquerda. Isso será desenvolvido em outros materiais que estão sendo encaminhados pelo CN.