A nova extrema-direita no mundo – o que é fascismo, bonapartismo e populismo?

A crise mundial do capitalismo, que já completa 10 anos, reforçou uma tendência mundial deperda de credibilidade no sistema político e seus representantes, seja de direita ou da velha esquerda. Em muitos países essa perda foi levada há um novo patamar, com velhos partidos perdendo força.

Um exemplo da perda de confiança entre os principais representantes da classe dominante que vimos é o de Angela Merkel, quando em falana comemoração dos 100 anos do fim da Primeira Guerra Mundial, relembrou também que faz 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“Eu muitas vezes me pergunto, imagino nós, a comunidade internacional de hoje, se tivéssemos que elaborar uma declaração dessa, de direitos humanos. Iríamos conseguir fazer isso? Eu temo que não.”

Ela expressa a sensação, bem fundamentada, de que a ordem mundial capitalista, estabelecida depois da Segunda Guerra Mundial, e que foi tão festejada pela classe dominante capitalista após o colapso do stalinismo, está se desmanchando diante de seus olhos, tendo como a mais evidente expressão o desgoverno de Trump.

Onde a esquerda não conseguiu dar uma resposta, o vácuo político abriu espaço para uma nova extrema-direita, mais extrema, xenófoba, nacionalista, reacionária e com uma agenda de ataques aos direitos dos trabalhadores. Na maioria dos países da Europa, esses novos partidos de extrema-direita estão entre os maiores partidos e compõe governos em países como Hungria, Itália, Suíça, Áustria, Noruega e Finlândia.

Para nós marxistas, é fundamental fazer uma avaliação concreta e equilibrada sobre essa nova direita e sobre qual ameaça que ela constitui. Se você for chamado a enfrentar uma besta “monstruosa”, faz toda diferença saber se é um rinoceronte, um tigre, um tubarão, um escorpião ou talvez uma barata.

Vou tentar aqui falar resumidamente sobre alguns conceitos centrais: bonapartismo, fascismo e populismo. Isso, junto com um panorama de diferentes governos dessa nova direita no mundo, nos dará subsídios para poder fazer uma avaliação, ainda que preliminar, sobre o caráter do governo Bolsonaro e como combatê-lo.

Bonapartismo

Os marxistas enxergam no estado uma estrutura de poder e domínio de classe, onde o papel do governo é um organismo para cuidar dos interesses gerais da classe dominante. Mas o estado também tem o papel, como explicou Engels, de garantir que a sociedade não se desmanche diante do constante conflito entre as classes sociais, agindo como um árbitro.

O regime é, portanto, uma expressão da ditadura da classe capitalista, protegendo o estado e o sistema contra a classe trabalhadora, mas também contra excessos de parte dos capitalistas que possam ameaçar os interesses do sistema como um todo. Qualquer governo que atue dentro do sistema, mesmo um que seja oriundo da classe trabalhadora, tem que seguir essa lógica, se não estiver preparado a romper com o sistema. É por isso que mesmo os governos reformistas mais radicais, se não forem forçados por uma mobilização revolucionária, nunca chegam a mexer nos pilares que sustentam o estado burguês: polícia, judiciário, forças armadas e os principais poderes econômicos. Os governos do PT foram apenas só mais um exemplo disso, deixando intactas as estruturas do poder no Brasil – e agora sofrendo as consequências.

O bonapartismo foi um fenômeno estudado por Marx e Engels, na qual diante de um impasse entre as principais classes, capitalista e trabalhadora, a classe capitalista é forçada a ceder o controle político direto. Quando surge alguma figura ou setor da sociedade, como os militares, que se elevam acima da sociedade como um árbitro supremo entre as classes, equilibrando-se sobreessas, podendo se chocar também com os interesses de setores da classe dominante, mas em última instância, sempre protegendo o sistema. O estado ganha assim mais autonomia diante da sociedade.

Isso pode se dar através de um golpe de estado, estabelecendo um regime autoritário, uma ditadura, mas que também pode apelar diretamente “ao povo”, através de plebiscitos, contornando parlamentos (se não fechando esses totalmente).

Exemplos clássicos são o de Napoleão Bonaparte e Louis Bonaparte, na França, e Bismarck na Prússia/Alemanha.

Fascismo e nazismo

O fascismo já tem características diferentes e específicas. Hoje é cada vez mais  comum o uso descuidado desse termo. Ou se usa como um xingamento ou é usado como um medidor de repressão (pouca repressão: democracia burguesa, média repressão: bonapartismo, muita repressão: fascismo). Ou se apega a expressões ideológicas do fascismo/nazismo. Vladimir Safatle, que faz em geral boas análises sobre a situação atual e a vitória de Bolsonaro, tenta mostrar que estamos diante de um regime fascista, colocando três características centrais do fascismo,  como:

“Todo fascismo tem ao menos três características fundamentais. Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim, ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade e eixo fundamental do embate político.”

Mas para nós, essa descrição não é suficiente e não explica a essência do fascismo. A marxista alemã Clara Zetkin fez a seguinte análise, ainda em junho de 1923, menos que um ano após a chegada de Mussolini ao poder na Itália (essa é a mesma análise que Trotsky defendeu depois diante do nazismo):

“A fascismo é uma forma específica de movimento de massas reacionário baseado nos elementos despossuídos e des-classados da sociedade, incluindo camponeses empobrecidos, pequenos empresários e setores mais alienados da classe trabalhadora – que tem como intuito esmagar o movimento dos trabalhadores. Ele surge após a perda de oportunidade por parte da classe trabalhadora de tomar o poder e começar a transformação socialista da sociedade. Foi para lidar com essa ameaça que a classe capitalista, em desespero, se voltou ao fascismo”.

O fascismo e seu irmão gêmeo nazismo surgiram na Itália e na Alemanha em situações semelhantes. Ambos saíram da Primeira Guerra Mundial derrotados (apesar da Itália formalmente estar entre os vencedores), com uma sede por revanchismo por parte da classe dominante que se refletiu em setores da população. Ambos passaram por crises econômicas severas que arruinou grande parte das classes médias, que era uma parcela grande da sociedade na época (bem maior que hoje). Em ambas houve movimentos revolucionários que fracassaram por causa da traição dos líderes socialdemocratas e erros dos incipientes e inexperientes partidos comunistas. Decepcionados com as organizações de trabalhadores, setores da classe média se voltaram para outras alternativas. Em ambos os casos, mesmo quando a ameaça era iminente, os líderes da socialdemocracia fazia apelos à institucionalidade e à constituição. Seja ao rei Vítor Emanuel na Itália ou ao presidente Hindenburg na Alemanha. Ambos esses empossaram o futuro ditador, em nome da institucionalidade burguesa.

Nessa situação surge bandos armados, pagos pelos patrões para atacar fisicamente trabalhadores em greve, e esses se unificam e crescem como um movimento de massas, com líderes que misturam a retórica anticapitalista (nacional-socialismo, revolução popular, etc.) e contra liberais, mas com forte ênfase em usar como principal bode expiatório, os comunistas, e no caso do nazismo, os judeus, pregando a união da nação para reerguer a pátria reconquistando o perdido esplendor (remetendo ao Império Romano, ou os povos germânicos), com um forte revanchismo bélico.

A forte repressão são características tanto do fascismo com o das ditaduras policiais/militares, mas se baseiam em forças diferentes. Zetkin fazia essa distinção:

“Mesmo se o fascismo e a ditadura de Horthy [da Hungria] usam o mesmo terrorismo sanguinário contra os trabalhadores, a essência desses fenômenos históricos é totalmente diferente. A ditadura de Horthy se baseava em uma pequena casta de oficiais do exército, enquanto o fascismo se baseava em amplas camadas da sociedade, atingindo até parte do proletariado”.

Isso tem um efeito diferente sobre a classe trabalhadora. A ditadura militar/policial prende, sequestra e mata os líderes – como Rosa Luxemburgo e  Karl Liebknecht foram assassinados por forças paramilitares d direita de Berlin em 1919, com a cumplicidade dos líderes socialdemocratas. Mas a base de massas do fascismo, entretanto, corrói as organização de trabalhadores de baixo para cima, dispersando e atacando violentamente reuniões e atos, além de atacar a direção assim que tomar o poder. Dessa maneira, a classe trabalhadora é atomizada e mantida em um estado de dispersão que leva tempo para recuperar.

Essa é a essência do fascismo: destruir todo o tipo de associação independente de trabalhadores, até clubes de xadrez, como dizia Trotsky. Diante dessa ameaça, a única saída era de construir uma frente única dos trabalhadores, seja socialdemocratas ou comunistas para se defenderem da ameaça fascista. Esse era o teor da resolução que Clara Zetkin formulou para o congresso da Internacional Comunista em 1923, e a mesma linha que Trotsky defendeu diante da ameaça nazista na Alemanha no começo dos anos 1930.

Em ambos os países, quando o fascismo chegou ao poder, ele acertou as contas com sua base popular e se transformou em uma ditadura policial/militar. Na Alemanha foi através do expurgo da  “Noite dos longos punhais”, 30 de junho de 1934, quando Hitler acabou com a milícia paramilitar “Tropas de Assalto” que contava com três milhões de combatentes. Seu líder, Röhm, que falava de uma “segunda revolução” para redistribuir a riqueza na sociedade alemã, estava entre os mortos.

A vitória de Hitler abriu o caminho para a Segunda Guerra Mundial, que foi uma catástrofe também para a classe dominante que quase viu seu sistema destruído. Por isso há um forte consenso entre a classe dominante de não deixar o fascismo se tornar uma força independente novamente (até a situação não se tornar tão desesperadora novamente). Grupos fascistas foram usados no máximo como forças auxiliares como porrete contra os trabalhadores, como ocorreu no Chile de Pinochet, mas sem ameaçar o estado.

Hoje, em geral, são grupos pequenos, mas em muitos países são mesmo assim uma ameaça física contra ativistas de esquerda, imigrantes, negros e negras, pessoas LGBTs, judeus, etc.

Populismo na América Latina

Na América Latina surgiu governos que foram caracterizados como “populistas”, mas não necessariamente com o mesmo sentido que a palavra vendo sendo utilizada no debate atual.

Trotsky analisou o fenômeno, novamente tentando enxergar a base material por baixo da roupagem das ideias, e classificou como “bonapartismo suis generis” (do seu próprio gênero).

Enquanto o bonapartismo era um fenômeno em geral reacionário, os governos de Cárdenas no México, Vargas no Brasil e Perón na Argentina, combinavam autoritarismo e forças de extrema-direita, com medidas progressivas. Foram governos que nacionalizaram o petróleo e empresas estratégicas, implementaram direitos básicos para os trabalhadores (CLT, salário mínimo no Brasil) ao mesmo tempo que proibiam partidos comunistas ou mantinham os sindicatos sob controle estatal.

Nova direita hoje

O CIT (Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores) vem usando o termo “populismo de direita” para caracterizar esses novos fenômenos que surgem nessa polarização que prevalece em grande parte do mundo. Acho que devemos entender o que se quer dizer com isso e ver os limites e riscos dessa etiqueta.

Primeiramente, se trata principalmente de uma definição de roupagem ideológica para essa nova direita e seus governos, do que uma nova forma de regime. Um governo fascista ou bonapartista poderia se utilizar da mesma linguagem e ideias sem grandes adaptações, tanto como os governos atuais, como o de Trump, que não representa até agora uma mudança qualitativa de regime. Segue sendo um governo burguês de direita, só que com outro programa, se comparado com os governos keynesianos, reformistas ou neoliberais “globalistas”.

Se trata de uma direita que falsamente tenta se colocar como representante do “povo”, contra a desacreditada “elite” (apesar deles serem parte dessa elite, como o bilionário Trump). Se usa de uma retórica demagógica, que até certo ponto aparenta rejeitar velhas ideologias, se apresenta até como “antissistêmico”, com posições que tentam unificar o povo por trás de uma agenda reacionária, se utilizando de um discurso simples, com inimigos bem identificados em forma de bodes expiatórios. Contra isso se coloca um discurso nacionalista, ufanista “Make America Great Again”, “Brasil acima de tudo”. No caso do Bolsonaro, lança mãode imagens para se colocar como uma pessoa simples, não sofisticada ou acadêmica, usando prancha de surf como mesa improvisada na coletiva de imprensa, pendurando a bandeira do Brasil torta com fita adesiva, comendo pão com leite condensado, usando chinelo, etc.

O discurso também tem que ter elementos de “populismo” pela positiva. Como quando Trump promete trazer os empregos de volta ou a redução de impostos (ambas promessas falsas), ou o governo italiano que promete melhorar a aposentadoria e implementar renda básica universal.

Essa nova direita tem alguns traços ideológicos em comum, expressos por figuras como Steve Bannon:

  1. “Nacionalismo” contra “globalismo”: contra acordos multilaterais (como acordos de comércio, do clima), contra ONU, contra a União Europeia. Steve Bannon coloca que o inimigo é o “Partido de Davos” (onde se reúne o Fórum Econômico Mundial anualmente). O indicado a chanceler do governo de Bolsonaro, Ernesto Araújo, é um que explicita essa posição “antiglobalista”, e diz que foi indicado pelo próprio Olavo de Carvalho.
  2. Guerra das civilizações: contra a “grande ameaça muçulmana”. Esse é um tema muito forte principalmente para extrema-direita europeia, mas também nos EUA, onde muçulmanos são o novo grande bode expiatório. Se únem em defesa do “cristianismo” que é ameaçado (como coloca Olavo de Carvalho).
  3. Isso se resume em uma grande ênfase na retórica xenófoba, que é um aspecto generalizado (mesmo se menos enfatizado no Brasil no momento).
  4. Contra toda a “esquerda”. Seja PT no Brasil ou até mesmo os Democratas nos EUA (que Trump diz querer transformar EUA em uma nova Venezuela!). O termo central é o combate ao “marxismo cultural”. Se utilizam de termos de Gramsci para dizer que os comunistas, após o colapso do stalinismo, agora disputam a hegemonia por dentro do sistema, aos poucos, na surdina. Por isso a grande ênfase na “Escola sem partido” para combater a “doutrinação” e o ódio contra Paulo Freire.
  5. Revanchismo contra avanços na luta contra as opressões. Se mobiliza com todo o tipo de preconceito os sentimentos mais retrógrados na população: contra mulheres, pessoas LGBTs, pessoas negras, indígenas, etc. Combina isso com um apelo religioso em defesa da “família” para justificar discriminação e gerar um pânico moral em cima de temas de opressão. “Ideologia de gênero” é mais uma “arma” do “marxismo cultural” para “minar a família”.
  6. Pós-verdade: se usa de todas as ferramentas possíveis para rebaixar a consciência e minar o senso crítico diante de suas figuras centrais. A mentira é um método consciente: nada é verdade, tudo é subjetivo, tudo é “fake news”, então resta agir com o fígado, não com o cérebro. Se utilizada de todo o arsenal da “grande mentira” e propaganda nazista, amparado nas mais modernas técnicas de comunicação e redes sociais.

Populismo de esquerda?

Há aqueles que reivindicam que devemos assumir um “populismo de esquerda”, no estilo de Bernie Sanders, partindo da ideia de que o “populismo” é o oposto do “elitismo”. Um deles é o intelectual argentino Ernesto Laclau, que substitui a luta de classes por uma luta do “povo” contra a “casta”. Ele inspirou novos partidos de esquerda como Podemos e Syriza. A traição e fracasso de Syriza mostra essa nova teoria “pós-marxista” não ajudam a armar a luta contra o sistema que ainda é baseado em classes sociais, onde a classe capitalista (mais rica e concentrada do que nunca) tem o controle sobre as riquezas e meios de produção. Por isso deve se usar com cuidado a expressão “somos os 99%”, que é bom como agitação, mas impreciso como análise classista.

Vitórias eleitorais estimulam ataques

A Segunda Guerra Mundial foi uma catástrofe que colocou em risco a sobrevivência do sistema capitalista e essa memória ainda está viva na população. Por isso os capitalista de hoje não permitiriam a ascensão de um novo fascismo de massas. Por isso, vários dos partidos de extrema direita bem-sucedidos hoje que tem raízes em grupos neonazistas/neofascistas, passaram por uma mudança de perfil, expurgando os elementos fascistas, tentando criar uma aparência de partido “normal”, onde a xenofobia e islamofobia é travestida em simples “nacionalismo”. Isso vale por exemplo para a Reunião Nacional (antiga Frente Nacional), onde a atual líder Marine Le Pen expulsou o próprio pai que fundou o partido, e também para o Democratas da Suécia, que agora o é terceiro maior partido.

Exceções são a Aurora Dourada na Grécia, abertamente nazista, que chegou a alcamçar 7% dos votos nas eleições de 2015, ficando em terceiro lugar, ou o Jobbik na Hungria, que teve 20% nas eleições, ficando em segundo, um partido que conta com uma milícia de 60 mil pessoas que ataca ciganos, judeus, imigrantes e militantes de esquerda nas ruas.

Mas o crescimento desses partidos, ou ainda mais no modo que chegam ao governo, fortalece os grupos e indivíduos fascistas, que se sentem fortalecidos para agir violentamente. A vitória de Trump levou a um aumento dos “crimes de ódio” contra pessoas negras, indígenas, pessoas LGBTs, judeus, latinos, etc.

Uma manifestação nacional em Charlottesville em 2017, organizada por grupos nazistas, acabou com a morte de uma manifestante antinazista, atropelada por um nazista. Os nazistas contaram com a “imparcialidade” de Trump, que colocava que “há boas pessoas nos dois lados”, o que pegou muito mal. A reação contra o ataque foi tão forte que a tentativa de repetir a mobilização foi um fiasco. Mas os ataques continuaram. Um indivíduo enviou várias bombas, mas todas foram interceptadas pelos correios, a pessoas que Trump tinham apontado como inimigos: família Clinton (ex-presidente Bill e ex-candidata Hillary), ex-presidente Obama e outros. No dia 27 de outubro houve o maior ataque antisemita na história dos EUA, quando um racista de extrema-direita matou 11 judeus em uma sinagoga.

Na Itália, o líder do partido a Liga assumiu como ministro do interior declarando que “acabou a lua de mel para os imigrantes ilegais” e defendendo que 500 mil imigrantes sem papel sejam expulsos do país. No dia seguinte foi assassinado com um tiro na cara uma trabalhadora rural e sindicalista oriunda de Mali, quando estava recolhendo pedaços de madeira para construir um barraco na favela onde mora.

Elementos protofascistas no Brasil

No Brasil há elementos de fascismo ao redor do fenômeno Bolsonaro, que justifica falar de um “protofascismo”, mas ainda são muito limitados.

  • A retórica de ódio e violência, contra o grande bode expiatório (PT/comunismo/esquerda), nacionalista e ufanista (“Brasil acima de tudo” – mas alinhado e na prática submisso aos EUA). Ao mesmo tempo se prega liberalismo e estado menor (menos o aparato repressivo).
  • Exaltando o militarismo, defendendo a ditadura e torturadores. Defendendo a militarização não só da segurança pública, mas também do governo e do ensino, colocando os militares como um exemplo de não corrupto para a nação.
  • A base de apoio central de Bolsonaro é a classe média, que se mobilizou em grandes manifestações, instigadas por um antipetismo virulento. Porém é uma classe média composta em grande parte por funcionários públicos, que mesmo se não estavam entre aqueles que se beneficiaram com os governos do PT (que foram os mais pobres e o mais ricos), não chegaram ao nível de empobrecimento como na Alemanha nos anos 1930 (ou como na Argentina durante a crise 1998-2002). Vimos também que tentativas da direita de mobilizar em 2017 a favor da reforma da previdência foram um fiasco.
  • Os elementos de mobilização direta de bandos de extrema-direita contra ações da classe trabalhadora tem sido muito limitados. O MBL tentou desocupar algumas escolas durante as ocupações de secundaristas, sem sucesso. Foram feitas mobilizações contra atividades, contra exposições e outras atividades, mas também ainda isoladas.
  • Há ataques físicos, incluindo mortes de oponentes, voltado principalmente contra mulheres, pessoas LGBTs e pessoas negras, mas no contexto de uma sociedade já muito violenta, ainda não chegou a um patamar generalizado.
  • Há elementos de “macartismo” (caça às bruxas contra comunistas), especialmente nas escolas, com tentativa de implementar o “Escola sem partido” na marra. Mas também ainda limitado.

É possível que esses fatores se fortaleçam com a posse de Bolsonaro. Mas todos esses fatores ainda estão longe de chegar a um patamar que possa ser chamado de regime fascista. Para isso, seria necessário uma derrota mais definitiva da classe trabalhadora e suas organizações, incluindo fechamento e proibição de partidos, sindicatos e qualquer outra forma de organização da classe trabalhadora. Isso não significa que elementos disso não possa ser implementados, como a tentativa de proibir PT, fechar sindicatos ou criminalizar o MST e MTST classificando-os como terroristas.

Ameaça bonapartista

O governo Bolsonaro caminha para começar sua trajetória dentro do sistema. A classe dominante, diante do fato consumado, trava uma luta para garantir que seja um governo “normal”, que não rompa com as estruturas. E os sinais e as medidas até agora do próprio Bolsonaro apontam para isso. Nesse sentido, seu governo deve ser inicialmente algo semelhante ao governo de Trump: instável, errático, com medidas fora do normal, com muitos ataques e aumento da repressão – mas dentro dos marcos do sistema. Mesmoisso poderá  abrir para um período de grandes retrocessos, se a classe trabalhadora não conseguir recompor suas forças.

Vejamos só exemplo de Duterte nas Filipinas. Sua “guerra contra as drogas” já deixou milhares de mortos (com ele defendendo que deveria tratar usuários de drogas como Hitler tratou os judeus).

Porém, diferentemente dos EUA, a economia ainda vai mal e o Brasil não tem a mesma potência estabilizadora que a maior economia do mundo. As crises vão ser piores, não haverá estabilidade. Além disso, Bolsonaro herdará o mesmo sistema político podre e decadente, com uma grande quantidade de partidos, pequenos e grandes caciques que seguem interesses próprios. Como Bolsonaro irá reagir diante de impasses, ou mesmo se a repressão não consiga conter protestos dos trabalhadores?

Temos que contar com a possibilidade de que Bolsonaro acabe embarcando em uma aventura bonapartista, que pode ser em forma de “autogolpe”, como Vargas ou Fujimori no Peru. Ou algo mais gradual, como a perpetuação no poder de Putin na Rússia ou Erdogan na Turquia. Putin agiu com habilidade eliminando os opositores, controlando a mídia e usando a política “contra terrorismo”, guerras como na Chechênia e Síria e imagem da “Grande Rússia” para conseguir se construir como pai da pátria grande.

Erdogan também se utilizou da “guerra contra o terrorismo” contra o povo curdo oprimido, crescente islamização e finalmente a fracassada tentativa de golpe 2016 para fortalecer seu poder, onde centenas de milhares de funcionários públicos foram expurgados. Em 2017 Erdogan conseguiu passar (com uma margem suspeitamente estreita de 51%), em um referendo uma mudança constitucional que lhe deu poderes ditatoriais, como o direito de dissolver o parlamento.

Em ambos os casos, os problemas estão se acumulando. Na Rússia, o custo do aparato bélico é pesado e o aumento da idade de aposentadoria para 67 anos levou a protestos e diminuiu o apoio até agora sólido de Putin. Na Turquia, a economia está cada vez mais com problemas, com uma grande desvalorização da moeda, a lira.

Essa situação mundial de polarização e crise de legitimidade do sistema foi potencializado pela crise que começou 2007-2008. Infelizmente, apesar de ter levado também a muitas lutas (como a Primavera Árabe e as greves gerais na Europa) e uma radicalização, especialmente de uma camada da juventude (com os movimentos Ocupe, Indignados ou Junho 2013 no Brasil) – ainda não levou a uma retomada mais generalizada de uma consciência socialista. Ainda pesam os resquícios da queda do stalinismo e o papel de freio das burocracias sindicais e dos antigos partidos de esquerda (socialdemocratas, PT, etc.).

Uma próxima crise mundial está em gestação. Ela vai abrir novas oportunidades para a recomposição da esquerda socialista, se ela conseguir se inserir nas lutas e ao mesmo tempo aprender com as lições dos erros do passado. Se não, as tendências autoritárias também poderão dar novos saltos, com mais graves consequências. O capitalismo nos oferecerá mais e mais barbárie. Nossa tarefa é pôr um fim a esse ciclo vicioso, através da transformação socialista do planeta.

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