Uma guerra contra os pobres
Capitão Nascimento, o Morro da Providência e a hipocrisia do Estado de Direito
Vez por outra a mídia nos lembra que temos que nos comportar, fazendo menção ao tão aclamado Estado de Direito como o garantidor das liberdades e da cidadania. No capitalismo, é o Estado de Direito o âmbito legítimo da superação dos conflitos sociais, ou seja, qualquer ato ilícito é tido como uma grande exceção, e que, não passa de uma grande distorção da moralidade do Estado e de toda a sua suposta capacidade de neutralidade. Caberia às “instituições democráticas” resolver via legislativo, executivo e judiciário tais conflitos. Os problemas sociais são apresentados como conseqüência de um fenômeno do indivíduo ou de uma má gestão (culpa dos indivíduos!) das instituições do Estado, e nunca como um dilema interno do próprio sistema capitalista. Mas por que?
A fábula do capitão Nascimento
A fábula do capitão Nascimento, retratada no filme Tropa de Elite, nos remete exatamente a esta noção de Estado tão propagada pelos meios de comunicação. Nesta visão a polícia e todo o seu aparato coercitivo seriam vítimas de uma “doença” social chamada corrupção, sendo assim, o remédio para este mal seria a permanente busca pela aniquilação da “banda podre”, afinal, dizem eles, o “Estado de direito é neutro e governa para todos, basta tirar os corruptos”. O Capitão Nascimento encarna esta alegórica cruzada pela moralidade de forma romântica. Sua abnegação não mede esforços para garantir um Estado de Direito cristalino contra a barbárie, sem as máculas da perversão humana corporificadas no assombroso “Estado Paralelo”, mesmo que para isso faça uso da mais brutal barbárie. É este Estado corrupto, que supostamente, andaria em paralelo, que deve ser apagado. Irônico se pensarmos que foi o próprio capitalismo que criou o tráfico de armas, de drogas, seqüestros, corrupção e tantos outros delitos. O paralelismo parece muito mais uma miragem criada pelas elites para se eximir do mal que elas próprias criaram, além de um discurso que busca neutralizar uma crítica revolucionária, pois nesta perspectiva apenas nos restaria o trabalho de aparar as arestas da barbárie capitalista com mais violência.
Assim, o que o filme Tropa de Elite vendeu foi a saga de uma “banda honesta” chamada Bope, que estaria em contradição com as fanfarronices da PM, uma polícia desastrada e corrupta, que seria anacrônica para o caos social do Rio de Janeiro. O efeito colateral seria a necessidade de matar os pobres das favelas à revelia dos princípios mais primários de cidadania como direito à defesa, julgamento, investigação etc. A equação se resolveria da seguinte forma: “é pobre, mata, e depois pergunta!”.
Um “Rambo” a cada esquina?
O filme não vendeu nada de novo, apenas glamourizou o ato de dizimar pobres de forma “legal”. De tal maneira que muitos saíram dos cinemas seduzidos com a idéia de que resolveremos nossos problemas com uma espécie de “Rambo brasileiro”. Quando nos deparamos com os últimos acontecimentos do Morro da Providência, parece que nos deparamos com esta tendência cruel em relação às políticas públicas no último período, que nos guarda um “Rambo” a cada esquina.
O projeto “Cimento Social”, capitaneado com alarde pelo senador Marcelo Crivella (PRB), traz ao eleitoralismo já rotineiro no Brasil estas fortes cores fascistas. Administrando um Estado de exceção com a parceria do exército na região do Morro da Providência, o projeto previa a reforma de 782 casas populares e o emprego de cerca de 150 pessoas da comunidade. Apropriando-se do desespero dos moradores da Providência por melhores condições de moradia e necessidade de emprego, o projeto prometia de maneira cínica paredes à prova de bala, formação profissional e uma urbanização que só acontece no Photoshop (“antes e depois”).
O projeto que já havia sido anunciado desde o início do ano de 2007, só esboçou seus primeiros passos no fim do mesmo ano. Mas por que tanta demora? O projeto de Lei do Senado (PLS 541/07), não chegou sequer a tramitar e ser aprovado pelos senadores, no entanto, os recursos já haviam sido liberados desde o fim do ano passado. Isso já acontecendo antes mesmo da assinatura do Termo de Cooperação entre o Ministério da Defesa e o das Cidades, que foi sacramentado em 31 de janeiro de 2008. Como se não bastassem os atropelos, há indícios de mal uso do dinheiro público nas operações executadas.
A violência, os maus tratos contra a comunidade da Providência apenas evidenciaram o óbvio: o exército não foi feito para garantir a segurança pública urbana. Não pode se esperar segurança digna de uma instituição que é treinada exaustivamente e unicamente para o combate de forma a abater o inimigo. Muitos falam das obrigações sociais do exército como nas questões referentes à saúde, mas de fato o que orienta os treinamentos da maioria da corporação é o ataque mortal contra o inimigo que ameace a “ordem” do país (seja ele externo ou interno).
Como no neoliberalismo o inimigo é o pobre, David Wilson da Silva, de 24 anos, Marcos Paulo Campos, de 17 anos, e Wellington Gonzaga da Costa, de 19, no dia 14 de junho, foram brutalmente assassinados. 11 soldados teriam entregado estes moradores a uma facção rival à do Morro da Providência localizada no Morro da Mineira. Os corpos foram encontrados num lixão, no dia 15 de junho, na Baixada Fluminense e uma grande indignação se espalhou pela comunidade.
Diante de tamanha atrocidade, a população revoltada, no dia 14 de junho, na tarde de sábado, fechou a entrada do Túnel Gamboa em protesto, impedindo o tráfego com uma barricada. Posteriormente o protesto ganhou o morro e teve a intervenção truculenta da polícia, que acabou alvejando um jovem da comunidade. No dia seguinte, o exército, a PM e policiais da Tropa de Choque cercaram o Morro da Providência em represália.
Já pela manhã, na segunda-feira, os moradores se dirigiram para as portas do Palácio Duque de Caxias, onde reside o Comando Militar do Leste (CML) e a 1ª Região Militar (1ªRM), para exigir a retirada do exército do Morro da Providência. Mais de 500 pessoas foram alvejadas com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, bolas de borracha e spray de pimenta. À tarde houve mais manifestação no velório dos jovens no Cemitério São João Batista, em Botafogo com o apelo para que se retirasse o exército da Providência.
Desculpa patética de Nelson Jobim
Na tarde de terça, 17 de junho, de forma patética, o ministro da Defesa Nelson Jobim foi ao Morro da Providência pedir desculpas pelo “equívoco” que o exército teria cometido: “O que nós não podemos permitir é que esse fato contamine a obra que está sendo feita, que tem relevância…”, afirmou o arrependido ministro. Em seguida o Exército lança uma nota se justificando: “É importante destacar que a participação do Exército no empreendimento no Morro da Providência não é uma operação em prol da segurança pública, a qual necessita de determinação da Presidência da República e de aprovação no Congresso Nacional. O Exército, naquela comunidade, participa de uma ação subsidiária. As ações subsidiárias estão entre as missões constitucionais atribuídas ao Exército Brasileiro, definindo sua cooperação com a nação”. A declaração do Exército é no mínimo esquizofrênica. Ora, se não está lá para manter esta segurança pública criminosa, por que então atua como polícia na favela? Que tipo de “subsídio” é este que cumpre um papel tão parecido com o papel da polícia?
Em busca da manutenção de seus empregos os operários manifestaram o desejo de continuar as obras, aliás, em contradição com a idéia tão corrente: “é pobre, é bandido”. Advogados e movimentos de direitos humanos atuaram contra a decisão da Advocacia Geral da União, que afirmara que retiraria o exército, mas sob a condição de garantir a entrada da Força Nacional de Segurança. Após muita pressão a 2ª região do Tribunal Regional Federal (TRF), decidiu que os militares teriam que ocupar a apenas a Rua Barão de Gamboa, local onde se realizam as obras do projeto Cimento Social, e não mais o interior da favela. E teve como limite até a data do dia 26 de junho para efetivar a retirada dos soldados da região.
Pouco depois a Justiça Eleitoral, sob a ordem do juiz Fábio Uchoa, entrou em cena exigindo a paralisação das obras do Cimento Social. Segundo o juiz, o acordo entre o ministério da Defesa e o da Cidades foi feito já em ano eleitoral, o que caracterizaria como em desacordo com a legislação eleitoral, já que Marcelo Crivella é um dos candidatos a prefeito do Rio de Janeiro.
Face hipócrita do Estado de Direito
Esta confusão burocrática buscou apenas mascarar as trapalhadas do governo Lula e de seus comparsas, jogando para debaixo do tapete as contradições de um Estado capitalista que se sustenta com a violência e com a concessão de migalhas para apaziguar o descontentamento popular e colher votos. Neste momento o Estado de Direito mostra a sua face hipócrita, em que a suposta igualdade de direitos não passa de letra morta. Aos bairros de trabalhadores o Estado oferece o Caveirão, o Exército ou a Guarda Nacional e aos ricos garante mananciais de lucro com o patrocínio da precarização das condições de trabalho (Reforma Trabalhista, Previdenciária e Sindical), incentivos fiscais e verbas públicas para banqueiros e empresários.
A auto-organização dos trabalhadores deve ser a base para garantirmos nossos direitos tais como uma reforma urbana digna, que atenda de fato aos interesses dos trabalhadores e não a cobiça eleitoreira e a ganância das empreiteiras. A violência como solução para a pobreza e para a criminalidade só revela o incômodo sobre algo que o próprio capitalismo criou. Num sistema dominado pelos imperativos do lucro, a corrupção nada mais é que sua conseqüência direta, ou seja, a luta contra a corrupção deve estar associada a uma luta contra os desmandos do capital. Nossa luta é contra a mercantilização do ser humano, que nas favelas é tratado como número, seja como voto, ou como bandido.