O resultado do referendo não representa um retrocesso na consciência
Escrevemos essa avaliação do referendo de 23 de outubro do ponto de vista de quem rejeitou tanto o ‘Sim’ como o ‘Não’. Em nossa avaliação, ambas as posições, nos termos em que foram colocadas, não atendiam aos interesses dos trabalhadores e camadas mais pobres da população.
Nossa tarefa principal no referendo foi denunciar a farsa desse processo e seu intuito de desviar a atenção dos problemas centrais relacionados à violência e à crise social e política que atinge o país. Por isso, chamamos o Voto Nulo e buscamos apresentar elementos de um programa que levantasse os pontos centrais da luta contra a violência e por uma vida digna para os trabalhadores e o povo.
Deixando isso claro, entendemos que é necessário neste momento rejeitar interpretações apressadas e impressionistas em relação à vitória do ‘Não’ e possíveis conclusões pessimistas tiradas a partir do resultado do referendo.
A vitória do ‘Não’ não pode ser interpretada como um giro à direita ou um retrocesso na consciência de amplos setores de massas no Brasil. Na verdade, os elementos progressivos que levaram milhões de brasileiros, entre eles milhões de trabalhadores e pobres, a votar ‘Não’ são muito mais significativos do que qualquer tipo de apoio a idéias reacionárias e violentas que supostamente teriam sido assumidas pelos votantes do ‘Não’.
A idéia de que o voto ‘Sim’ era mais progressista do ponto de vista da esquerda e dos trabalhadores porque contava com o apoio do PT, do PCdoB, da CUT, da UNE, do MST, da CMP e dos setores progressistas da Igreja, é uma visão simplista que não dá conta da nova situação da esquerda e da consciência depois do advento do governo Lula e da perda do PT como instrumento de luta dos trabalhadores.
Um voto contra as antigas organizações tradicionais da classe
Há dez anos atrás, o posicionamento das organizações de massas tradicionais dos trabalhadores, juventude, camponeses e população pobre era uma referência fundamental para a esquerda e para milhões de brasileiros que se viam representados por essas entidades e movimentos.
Os efeitos da experiência com o governo Lula e suas políticas a serviço do grande capital provocou uma mudança fundamental nessa situação. Embora ainda estamos em um momento de transição e deslocamento gradual do ponto de vista da consciência, as placas tectônicas decididamente já começaram a se mover e os abalos sísmicos são evidentes. O surgimento e avanço do PSOL, com todos os seus limites, é hoje a expressão política mais significativa desse processo, mas existem outras manifestações disso no movimento sindical, popular, estudantil, etc.
Hoje, as posições das direções do PT, do PCdoB, da CUT e da UNE sobre os temas mais relevantes são, em geral, profundamente reacionárias e refletem seu papel de instrumentos de aplicação das políticas neoliberais e de defesa dos interesses da grande burguesia.
O caso do MST é, obviamente, especial e não pode ser jogado na vala comum das demais entidades. Porém, também a direção do MST tem assumido posições que a colocam a reboque do governo com todas as implicações reacionárias disso. A dinâmica desse movimento, porém, coloca a possibilidade de mudança nessa posição e reflete a pressão de sua base social diante do fracasso da política de reforma agrária do governo Lula.
Ao votar ‘Não’, a maioria dos trabalhadores e demais setores oprimidos da sociedade votaram contra a orientação de suas antigas organizações tradicionais. Para nós, isso deve ser encarado como um claro sinal de que o processo de ruptura com essas velhas direções avança e abre oportunidades para uma recomposição progressiva dos próprios movimentos sociais e da esquerda.
Um voto contra os políticos e os governos
Também não é correto dizer que essa ruptura em curso em relação às organizações tradicionais da classe trabalhadora está se dando em direção a posições mais à direita. É claro que a falta de uma alternativa de esquerda claramente consolidada provoca confusão e contradições inevitáveis. Mas, de forma geral, a classe tem tirado conclusões à esquerda e existe um grande potencial para que se consolidem conclusões progressivas desde que a esquerda assuma seu papel.
A postura daqueles que limitam-se a defender o PT levantando o espantalho do retorno da direita (como se a direita já não estivesse no governo) apenas colaboram para gerar mais confusão e atrasar o processo de tomada de consciência.
O voto ‘Não’ foi claramente um voto contra os políticos tradicionais, de Lula a Serra e Alckmin, passando por Renan Calheiros, os Garotinho e todos os falsos paladinos da paz que só sabem provocar mais violência com suas políticas anti-povo. Foi um voto contrário às políticas na área de segurança pública que não atendem os interesses dos mais pobres e que mais sofrem com a guerra civil latente em curso neste país. Ainda que ilusório na medida em que a posse de armas não garante segurança, o voto ‘Não’ foi um voto de desconfiança nos governos atuais em relação à sua capacidade de garantir segurança pública.
Um voto em defesa dos direitos conquistados
Também não é verdade que o voto ‘Não’ foi um voto em favor de fascistóides como Fleury e Bolsonaro, um voto baseado em idéias reacionárias de extermínio de bandidos em massas, de linchamentos nas ruas, etc.
Não há dúvida que essas idéias estiveram presentes de alguma forma no debate e tem alguma base social na chamada classe média, etc. A própria distinção entre supostos “cidadãos de bem” e bandidos, utilizada em ambas campanhas, já reflete uma visão reacionária e potencialmente racista.
Porém, a própria campanha do ‘Não’ foi obrigada a adaptar-se a um outro tipo de consciência, numa direção muito diferente. Parte da campanha do ‘Não’ no rádio e na TV, ainda que absolutamente inconseqüente e oportunista, de forma esperta baseou-se em posições progressivas como a defesa de direitos conquistados (referindo-se às Diretas Já, o direito de voto das mulheres, etc) e até colocando que as causas da violência não estão centradas na comercialização de armas e sim nos problemas sociais, etc. Isso não aconteceu por acaso.
Esses argumentos tiveram que ser usados em razão de um nível de consciência geral entre setores de massas e um acúmulo das últimas duas ou três décadas no sentido da defesa de direitos que nem mesmo a perda do PT e fim do ciclo hegemonizado por ele conseguiu eliminar.
Partimos para um novo ciclo de recomposição da esquerda a partir de um acúmulo já estabelecido pela experiência do ultimo período. Não só não partimos do zero como ainda poderemos, se a esquerda socialista for realmente capaz disso, tirar as principais conclusões dos limites históricos do PT e da esquerda nos últimos 25 anos, para não cometer os mesmos erros.
Além disso, os argumentos em defesa dos direitos adquiridos no caso do referendo do comércio de armas, criam um ambiente mais favorável na luta contra a retirada de outros direitos efetivamente mais importantes, como no caso da reforma trabalhista e outras políticas de cunho neoliberal do governo Lula e dos governos estaduais.
A denúncia do ‘Sim’ e do ‘Não’ reacionários
O grande problema do voto ‘Não’ estava no potencial reacionário latente na cúpula de seus defensores. Se o voto ‘Sim’ refletia os interesses das empresas de segurança privada, o voto ‘Não’ também refletia os interesses da indústria e grande comércio de armas e munições. Era importante para a esquerda socialista diferenciar-se de ambos, denunciar a ambos e a farsa das alternativas colocadas no referendo e aproveitar o debate, ainda que muito limitado, para apresentar uma saída alternativa classista, anti-capitalista e de transição ao socialismo.
Em nossa avaliação, o Voto Nulo era o que melhor permitia fazer isso e, até certo ponto, essa posição esteve refletida no enorme percentual de abstenções em 23 de outubro.
Ainda assim, a vitória do ‘Não’ não representa um giro conservador na consciência. Pelo contrário, reflete as contradições de uma etapa de transição na esquerda, nos movimentos e na consciência da vanguarda e das massas, mas que se apresenta numa direção progressiva. Se vai a avançar o suficiente depende de nós.