Espanha: vitória para coalizões de unidade popular nas eleições locais
No dia 24 de maio, na Espanha, aconteceram as eleições municipais, assim como eleições para 13 dos 17 parlamentos regionais. Os resultados representam mais uma etapa na crise política do capitalismo espanhol e foram particularmente brutais para o partido de direita no governo, o PP(Partido Popular), que perdeu poder nos seus principais baluartes, em grandes cidades como Madrid, Valência, Sevilha e muitas outras. O PP perdeu também as maiorias absolutas na maioria das regiões e será forçado a procurar apoio no novo partido populista de direita “Ciudadanos”, o que poderá ter um custo.
Ao mesmo tempo que o PP perde apoio – como punição pela sua austeridade brutal e quatro anos de governo para os mais ricos – há uma onda de apoio às alternativas de esquerda. Desde os tempos da queda do regime franquista a esquerda socialista não tinha resultados tão expressivos em Madrid e Barcelona, em particular com a vitória de Ada Colau, figura chave do movimento anti-despejos, que fez manchetes internacionalmente. Ao mesmo tempo, nas eleições regionais, também se registaram avanços, embora significativamente inferiores aos alcançados pelas coalizões unitárias de esquerda nas eleições locais.
Embora se confirme que os epicentros da guinada à esquerda na Espanha sejam os grandes centros urbanos, este sucesso também foi replicado num conjunto de pequenas e grandes cidades por todo o país. Estas vitórias são passos enormes para os trabalhadores e os movimentos sociais, deixando-os numa posição mais forte e confiante para lutar contra a austeridade e por uma mudança fundamental da sociedade. Há dois anos, Ada Colau era rotulada como “terrorista” e sujeita a ataques sem tréguas dos jornais, devido ao medo do regime perante o crescimento do movimento anti-despejos. O fato de ela provavelmente emergir, durante as próximas semanas, como presidente da segunda maior cidade espanhola, será um sinal de esperança para muitos. A ideia de que “nós, os que perdemos sempre, finalmente vencemos” espalhou-se.
Ao mesmo tempo, este sucesso traz enormes responsabilidades e será necessário um debate amplo sobre como avançar a partir desta posição fortalecida. Se a abordagem correta for posta em prática, estas vitórias constituirão um passo decisivo para radicalizar a luta dos trabalhadores contra a austeridade.
O que foram as coalizões de “unidade popular”
As denominadas coalizões de “unidade popular” tiveram nomes diferentes em cada cidade. A “Ahora Madrid” (Agora Madrid) ganhou mais de 30% dos votos na capital, liderada pela juíza de esquerda, Manuela Carmena, enquanto que a coalizão “Barcelona en Comu” (Barcelona em Comum, em catalão) ganhou mais de 20%, sendo a lista mais votada.
Estas coalizões emergiram de um processo de convergência em todo o movimento. Incluiram ativistas dos principais partidos de esquerda – Podemos, Izquierda Unida e ocasionalmente formações nacionalistas de esquerda como o CUP [Candidatura d’Unitat Popular] na Catalunha – assim como sindicalistas combativos, ativistas anti-despejos e anti-racistas, etc. Embora associadas por muitos com o Podemos, estas listas apresentaram um perfil genuinamente independente. Nem Colau nem Carmena são membros do Podemos (ou qualquer outro partido), nem o são muitos dos vereadores eleitos.
Apesar do vocabulário ambíguo que utilizam (refletido nos nomes escolhidos), estas listas foram claramente vistas como representando uma posição de esquerda e anti-austeridade. Em geral, defenderam um programa baseado na auditoria democrática ao fardo da dívida pública e uma oposição aos cortes, mostrando solidariedade com as lutas sindicais e sociais em curso e lutando pelas suas principais reivindicações, como o fim dos despejos. Foram repetidamente denunciados e descartados por figuras do PP como sendo “comunistas” radicais, o que, obviamente, não impediu os milhões que votaram neles e lhes deram tão importantes vitórias.
Governos minoritários ou de coligação? Por governos 100% anti-austeridade!
Contudo, o sucesso da esquerda coloca agora novas questões sobre como avançar. Apesar das impressionantes vitórias, mesmo as listas mais bem sucedidas não obtiveram maiorias absolutas. Isso representa uma tarefa cada vez mais complexa no quadro de um panorama politico tão fragmentado, com pelo menos cinco partidos a entrar na maioria dos parlamentos e conselhos regionais e locais. Ganhar uma clara maioria no meio desta fragmentação torna ainda mais crucial a necessidade de um claro projeto unitário, com um programa viável para transformar a situação.
Estes resultados levantam a questão de como que a esquerda pode governar a nível local sem uma maioria. Isso também se coloca em vários locais (incluindo Madrid) onde, apesar de ficar em segundo lugar, atrás do PP, a esquerda tem o potencial de dirigir uma maioria alternativa ao PP. Podem ser formados governos de coligação, com gabinetes envolvendo o PSOE (centro-esquerda) ou outras forças. Muitos irão argumentar a favor desses arranjos, baseando-se num certo “pragmatismo”, procurando fazer o que é possível o mais depressa possível, etc. Podem ser formados, em alternativa, governos minoritários de esquerda. Esta questão está sendo debatida neste momento em várias cidades e pode ser a preparação para a mesma questão, colocada em escala muito maior, nas eleições legislativas de novembro.
A Socialismo Revolucionário, seção do Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores na Espanha, defende que a discussão deve iniciar-se com base num programa. Como é que a esquerda, com base no seu sucesso eleitoral, pode melhorar e intensificar a luta contra a austeridade e facilitar uma resistência ativa? Um ponto de partida básico é a recusa de continuar a implementação das políticas de austeridade e, da forma mais ampla e mais rápida possivel, trabalhar para desfazer as brutais medidas contra os trabalhadores já implementadas. Enquanto isso, o PSOE – tal como o partido Esquerda Republicana da Catalunha, possível parceiro numa coligação de “esquerda” – está 100% comprometido com a implementação da austeridade. O PSOE foi o primeiro a introduzir brutais cortes orçamentais em nome da actual crise capitalista, sob o governo de Zapatero.
A implementação da austeridade – apesar de uma variedade mais “light” – não serve os interesses nem da própria esquerda, nem dos trabalhadores e juventude entusiasmados com o seu sucesso. A experiência da política da Izquierda Unida de fazer coligações com o PSOE – mais recentemente na região da Andaluzia – resultou, em geral, em ser associada com a implementação da austeridade mais do que com a luta contra ela. Uma repetição de tal experiência seria um sério recuo, com o potencial de fazer descarrilar o atual progresso da esquerda e de desmoralizar uma camada de trabalhadores e jovens radicalizados.
Nós lutamos por uma posição alternativa, de governos minoritários de esquerda baseados num programa 100% contra a austeridade e na mobilização do povo trabalhador para o defender e pressionar os outros partidos. Isso significa apresentar um programa radical para o povo trabalhador, mobilizando para ter apoio e pressionando os políticos para votar favoravelmente.
A mudança virá da organização e da luta e não da aritmética parlamentar
Um governo minoritário de esquerda, tomando a abordagem correta, pode ser mais “pragmático” e alcançar mais ganhos reais do que uma coligação de “compromisso” inter-classista. A chave para compreender isto provém do entendimento de que o motor para a mudança não é a aritmética parlamentar ou institucional, mas a luta e mudança social. O atual sucesso eleitoral da esquerda é uma expressão da luta real que milhões de trabalhadores, jovens e aposentados têm travado contra a austeridade neste último período; das três greves gerais em 2012 e 2013, do movimento de massas contra os despejos e de muitos outros exemplos.
Em vez de tornar essa luta redundante, o sucesso e presença nas instituições imprime-lhe uma importância acrescida e um maior potencial. Uma classe trabalhadora organizada e mobilizada é o ingrediente principal para o sucesso de um governo 100% anti-austeridade. Um governo minoritário de esquerda anunciaria as medidas realmente necessárias para fazer aquilo que é possível a nível local para acabar com o pesadelo da austeridade – recusa na implementação de cortes, privatizações, despejos ou quaisquer outras políticas anti-trabalhadores e investir na criação de trabalho socialmente útil e necessário e em moradia.
Por exemplo, na questão particularmente sensível dos despejos, esse governo poderia declarar a sua cidade como “zona livre de despejos”, boicotar os bancos responsáveis pelos despejos e mobilizar um apoio ativo das populações a estas medidas. Tal atitude poderia paralizar os despejos indefinidamente, forçando as autoridades locais e a polícia local – eles próprios opostos, em muitos casos, ao pesadelo dos despejos massivos – a se recusarem a executar as reintegrações de posse. O apoio social massivo que estas medidas iriam gerar permitiria ao governo de esquerda enfrentar qualquer desafio “constitucional” a essas medidas e organizar desobediência civil em massa.
Tal política, apesar de não ser aceitável para os partidos da austeridade, poderá fortalecer a classe trabalhadora e os movimentos sociais. Organização e mobilizações de base sérias poderão gerar uma enorme pressão social a favor de tais medidas e em defesa de um governo de esquerda. Essa atmosfera poderá forçar outros partidos, especialmente aqueles de centro-esquerda, ou pelo menos setores deles, que poderão ser forçados a apoiar medidas 100% contra a austeridade. O histórico exemplo do município de Liverpool, na Grã-Bretanha, nos anos 1980, deve ser estudado e dele devem ser aprendidas as necessárias lições. Naquela ocasião, o Militant Labour (seção britânica do CIT, então corrente do Partido Trabalhista), tinha uma influência importante, mas não a maioria dos vereadores. Mas, baseando-se no povo trabalhador fora da Câmara, ainda assim conseguiram fazer aprovar medidas que mudaram a vida dos trabalhadores mesmo face ao governo de austeridade de Thatcher.
Os governos 100% anti-austeridade poderão se ligar entre diferentes cidades e vilas, representando uma significativa aliança rebelde, unidos na resistência à imposição de austeridade vinda de fora. Isso poderá, além de ser eficaz a nível local, servir também para preparar o movimento para as eleições legislativas e a tarefa de eleger um governo 100% anti-austeridade, sob o qual os trabalhadores e movimentos sociais poderão florescer a nível local, como parte de um movimento coordenado anti-austeridade por todo o país.
Podemos, a esquerda e o caminho até às legislativas
O sucesso das listas de “unidade popular” mostra o potencial tremendo do modelo de frentes unidas amplas, construídas pela base ao redor de um programa anti-austeridade. Uma característica incontornável foi o sucesso destas listas quando comparadas com as listas do Podemos ou da IU nas eleições regionais, que tiveram lugar simultaneamente. O Podemos ficou em terceiro na maioria das regiões, sendo incapaz de destronar o PSOE como principal força da “oposição”. Apenas nas eleições locais, na base de uma frente unida da esquerda, tal foi possível. Como exemplo, em Madrid, a lista “Ahora Madrid” ganhou mais 400.000 votos do que a lista regional do Podemos na mesma região.
A lição que podemos retirar destas eleições é que, para realmente competir por uma vitória nas eleições legislativas, é necessária uma estratégia semelhante, de unidade pela base, a maior escala. Esta lição foi ainda mais dramaticamente sentida pelos líderes da IU, cujas forças se separaram nestas eleições. A ala direita da burocracia insistiu em apresentar listas independentes contra as listas de unidade popular na maioria das cidades, enquanto os setores críticos de esquerda do partido se juntaram às coalizões de unidade. Assim, as listas oficiais da IU foram varridas da Câmara de Madrid perante a onda do “Ahora Madrid”, passando-se o mesmo em muitas outras cidades espanholas. A nível regional, as listas da IU também foram praticamente aniquiladas na maioria das regiões. Prevê-se a intensificação da luta interna no partido, o que pode levar à cisão definitiva no curto prazo. Os setores críticos de esquerda têm de atuar decisivamente e, reunindo-se à volta da figura de Alberto Garzon – o líder eleitoral da IU – podem desempenhar um papel decisivo na reconstrução da frente unida.
Tudo aponta para a necessidade de trabalhar em prol da formação de uma frente unida capaz de lutar por um governo de esquerda nas próximas legislativas. Uma repetição, a nível nacional, das listas de “unidade popular” de esquerda, formadas a partir de assembleias unidas a nível local e regional, para determinar democraticamente um programa e uma estratégia anti-austeridade, teria imenso potencial. Armada com um programa socialista 100% anti-austeridade, esta frente poderia impulsionar a criação de um novo partido de massas da classe trabalhadora e juventude, essencial para o triunfo da revolução espanhola.