Onda de ataques fruto da brutalidade neoliberal no país
Entrevista com Angela Almeida, historiadora, do Coletivo Contra Tortura
O que está por trás dos ataques do PCC?
Hoje fala-se do PCC como “crime organizado”, quase como se fossem sinônimos, mas não se pode esquecer que essa facção nasceu como uma resposta aos maus-tratos e às torturas sofridas no sistema penitenciário de São Paulo. Em 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, chamada de “Piranhão”, os presos levavam surras cotidianas de barras de ferro aplicadas pelos carcereiros e, a um dado momento, resolveram se organizar para sua defesa. Traçando uma trajetória simplificada, daí partiram para arregimentar “irmãos” e conseguir fundos para a defesa dos presos, o quê requer dinheiro para a corrupção de funcionários do sistema prisional e de outros agentes do Estado, bem como para subsidiar às necessidades mais vitais de presos e de suas famílias, que o Estado não contempla. Como angariar fundos? Com atos criminosos contra o patrimônio de pessoas e empresas. Mais recentemente teriam se especializado no tráfico de drogas. O funcionamento dessa facção criminosa sempre se regeu por um esquema de poder, que copiaram da parte mais podre da sociedade brasileira, e que se exerce hierarquicamente sobre os “irmãos”, mas também em confronto com as autoridades do aparato repressivo do Estado capitalista. Os atuais ataques iniciados em 12 de maio de 2006, e que já conheceram três “ondas”, são episódios desse confronto.
Como é a situação nas prisões?
Atualmente, por conta da organização dos presos em facções, algumas poderosas como o PCC, a tortura física proposital vem diminuindo. Os agentes carcerários passaram a temer os presos e não são raros os casos em que os representantes das facções de presos negociam diretamente com os diretores da prisão, sem nenhum intermediário, humilhando assim os carcereiros. Mas se diminuiu – sem desaparecer – a tortura física proposital, em compensação os presos são deixados no maior abandono, em prisões superlotadas até o absurdo, sem remédios e tratamento médico e sem o mínimo de condições de higiene. As doenças de todo tipo proliferam, sobretudo a AIDS e a tuberculose, presos feridos, até gravemente, em rebeliões, não são tratados, o que termina por constituir uma forma de “tortura” insuportável. Vimos, no mês de julho, a situação dramática em que estava o presídio de Araraquara, um panorama que nem os quadros mais sombrios de Hieronymus Bosch pintando o “inferno” tinham previsto. E isso aconteceu, e continua acontecendo também em outros presídios, como Itirapina e Mirandópolis.
Além disso o governo de São Paulo, sob a égide do antigo governador, Alckmin, e seu Secretário de Segurança, Saulo de Abreu, instituiu um regime para os considerados “presos perigosos”, o chamado RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), depois transformado em lei pelo Congresso Nacional com o apoio até de deputados do PT, que constitui uma tortura psicológica podendo levar à loucura e à morte: o isolamento total dos presos, sem acesso a TV, jornais e revistas, com apenas duas horas de sol por dia e grandes restrições de visitas. Esse regime está tipificado nos estudos psiquiátricos como uma forma brutal de tortura, embora o preso não seja tocado fisicamente. Isto para falar do sistema sob o controle da Secretaria de Administração Penitenciária. Por outro lado, nas delegacias de polícia, onde ainda existem presos, e nas cadeias dependentes da Secretaria de Segurança Pública, existe tortura e a situação ainda é muito cruel. Na “Dacar”, em São Paulo, as mulheres, que têm necessidades físicas especiais, ficam em espaços superlotadas, sem higiene alguma (até sem absorventes higiênicos) e sem atenção médica em casos de partos complicados e outros ligados à saúde da mulher.
As reações foram claramente diferentes. Na primeira onda de ataques, em maio, a mídia, depois duramente criticada, abusou do sensacionalismo que levou à histeria coletiva e à paralisação, na segunda-feira, 15 de maio, de uma cidade de duas dezenas de milhões de habitantes como São Paulo . Por outro lado, as autoridades policiais e estatais estimularam a histeria e quase que incentivaram a reação policial de matança indiscriminada de “suspeitos”, não por acaso escolhidos nos bairros pobres e favelas das periferias da Grande São Paulo e do interior do estado. Autoridades declararam em frases altissonantes: “vai morrer uma média de 10 a 15 bandidos por dia em São Paulo”, “vamos zerar o jogo”, “vai ter troco”, “a caça continua”, etc. O resultado foi a morte de um número ainda não esclarecido de pessoas – cerca de 500, entre 12 e 31 de maio – executadas, seja por forças policiais, seja por “grupos de extermínio” que mal disfarçavam serem compostos e apoiados por policiais. A essa matança reagiram as entidades de direitos humanos, os partidos de esquerda, personalidades democráticas, embora seu protesto não tenha ainda conseguido sequer esclarecer afinal quantas pessoas foram mortas. Em vista disso, na segunda “onda” de ataques do PCC a alvos do aparato repressivo do Estado e das empresas bancárias, de transporte e outras, em julho, a imprensa foi convidada ao comedimento e as autoridades auto-reprimiram suas frases altissonantes. Mas os agentes do Estado, particularmente os policiais, retomaram o seu ritmo “normal” de execuções sumárias que já aconteciam aceleradamente antes de maio e que continuaram a acontecer, expressando o “alto grau de letalidade da polícia brasileira”, de que falam os organismos internacionais de direitos humanos.
O crime organizado tem muitas faces. No Brasil chama-se de “crime organizado”, apenas o lado pobre e tosco da criminalidade. Nada ou quase nada se fala sobre o crime organizado que envolve os altos escalões da sociedade, em especial ligados ao tráfico internacional de drogas e de armas. O que ganha força no Brasil é a criminalização da pobreza, da pequena traficância de drogas nas favelas, bairros pobres e também dentro das prisões. Porém ninguém fala, no Brasil e no mundo, de porque as drogas como heroína, cocaína e maconha, entre outras, são proibidas e constituem assim um rico filão dos negócios capitalistas. Ninguém coloca em questão o papel dos Estados Unidos na aceitação em quase todo mundo da criminalização do tráfico, porte e consumo destas drogas, enquanto outras, às vezes mais letais para a saúde, como cigarro e álcool, continuam legalizadas. Ninguém fala do papel estratégico que a criminalização das drogas tem para que o Estado americano meta sua bota em países, através da “colaboração para o combate do narcotráfico”, como o faz na América Latina, através sobretudo da Colômbia. O “crime organizado” é um dos negócios do capitalismo. A criminalização do pequeno traficante é um episódio da criminalização da pobreza.
Temos que entender a situação atual da segurança pública em São Paulo, no Brasil e, em certa medida, no mundo, como conseqüência da resposta da sociedade capitalista para o momento histórico que atravessamos. O desemprego estrutural atinge principalmente os centros mais industrializados – é o caso de São Paulo, no Brasil – e a marginalização aumenta de forma assustadora por conta disso. No mundo todo, sob alguma forma, esse processo acontece, mas o modelo seguido aqui nos vem dos Estado Unidos, onde 3% da população masculina se encontra atrás das grades (e sabe-se que categoria de americanos estão presos). Nesta fase da globalização e da aplicação das políticas neoliberais, a exclusão de amplas camadas de pessoas do simples acesso ao trabalho, leva à substituição da idéia de Estado Social, que prevalecia no tempo das políticas do Estado de Bem Estar Social, pela idéia de Estado Penal. Os excluídos rebeldes devem ir para a cadeia. No Estado de São Paulo são presas mensalmente cerca de 10 mil pessoas, outras tantas saem, mas o sistema carcerário retém, por mês, a mais, cerca de 2 mil pessoas. No Ministério Público e no Poder Judiciário prevalece a idéia de que o roubo de um pacote de manteiga é um perigoso precedente para o caminho da criminalidade, e portanto esses e outros pequenos atos da “criminalidade tosca” são punidos com “prisão preventiva”, renovada sempre até que o autor desses crimes se enrede completamente no sistema carcerário, o que hoje significa enredar-se nas facções.
Como se sabe, o mesmo rigorismo não se aplica ao desvio de milhões de reais por meio da corrupção feitos pelos incluídos ricos e da classe média. Além disso, amplos setores do Ministério Público, do Judiciário e da Secretaria de Administração Penitenciária dificultam ao máximo a aplicação da Lei de Execuções Penais, que permite ao preso, sob condições estipuladas, passar ao regime semi-aberto e à liberdade condicional. Fazem isso sob os mais variados pretextos, além da inércia, concorrendo para deixar a população carcerária, que é composta essencialmente de pobres, dentro da cadeia. Calcula-se que entre os cerca de 143 mil presos do Estado de São Paulo, 15 mil já estejam em condições de sair ao menos para o regime semi-aberto, caso fosse cumprida a Lei de Execuções Penais. Por tudo isso o sistema carcerário é uma bomba de efeito retardado.
Um absurdo. Mandar o exército é perfumaria. Sabe-se, pela experiência do Rio de Janeiro, que a presença física de soldados, tanques e metralhadoras, serve para amedrontar a população pobre e para satisfazer a classe média e os ricos que, não se sabe porque, sentem-se assim mais seguros. O episódio do roubo de fuzis do Exército no Rio e a necessidade, depois, de “negociar” a sua devolução para salvar a “honra” dos militares, é uma amostra de para quê serve o envio das Forças Amadas. Além do ar de ditadura que a presença do Exército nas ruas proporciona, a inexperiência deste com a segurança pública faz da proposta uma oferta de perfumaria. Quando à Força Nacional de Segurança Pública, temos uma denúncia vinda de quatro entidades de direitos humanos do Estado do Espírito Santo, que mostra esse órgão de repressão funcionando como torturador es dentro do presídio de Viana, nos arredores de Vitória.
Eu não falaria em “alternativa socialista” na situação de regressão em que nos encontramos. Antes de pensar em uma “alternativa socialista” seria preciso a esquerda socialista se capacitar de que o Brasil não é uma democracia só porque tem eleições, que é um Estado capitalista autocrático, no qual o Estado democrático de Direito – as conquistas da revolução burguesa – só existem para uma parte da população: os ricos e a classe média, incluindo aí todos os incluídos, inclusive os trabalhadores empregados formalmente e sindicalizados. Porém a criminalização da pobreza, tal como existe agora, já está levando à criminalização dos movimentos sociais, e pode, se avançar, vir a criminalizar também os trabalhadores empregados e sindicalizados.