Construir as lutas pela revogação das contrarreformas, por direitos democráticos e sociais e contra a anistia para golpistas!

Os primeiros dias do governo Lula foram uma montanha russa, do alívio e sensação de ar fresco – com o forte simbolismo das cerimônias de posse e primeiras medidas de revogar as piores excreções do governo reacionário de Bolsonaro – , aos violentos ataques golpistas da horda bolsonarista no dia 8 de janeiro. É preocupante não só na falta de preparo diante do ataque, mas também a tentativa de instalar uma normalidade sem ir à fundo nas causas das múltiplas crises que vivemos, construindo uma “governabilidade” com os mesmos erros que abriram para o crescimento do bolsonarismo: conciliação de classes e defesa das instituições e sistema político fundamentalmente podres da nossa sociedade.

Como constatamos na nossa declaração do dia 9 de janeiro:

“Os acontecimentos de Brasília também deveriam servir para abrir os olhos daqueles que subestimaram a gravidade do momento que atravessamos e a necessidade da mobilização independente da classe trabalhadora para conter a extrema-direita. Deveriam também convencer de uma vez por todas que é um erro confiar no suposto funcionamento normal das instituições como forma de se conter a ameaça bolsonarista de extrema-direita.”

A “reconstrução” referida no mote do novo governo Lula, tem que ir além dos grilhões impostos pela “união” com um setor supostamente progressivo da elite e sua representação política. A luta em defesa de direitos democráticos só atingirá força suficiente se for casada com luta por uma agenda de medidas radicais imprescindíveis em prol da classe trabalhadora, das pessoas pobres, famintas e oprimidas do país.

As tarefas são muitas e urgentes. A situação do povo yanomami é uma marca dos estragos causados pelo desgoverno genocida, deixando mais de 500 crianças mortas. Foi uma política consciente de desmonte de qualquer assistência e incentivo ao garimpo ilegal, que invadiu territórios, destruiu a possibilidade de caça e pesca e envenenou a água. As medidas imediatas para salvar vidas, além de responsabilizar o governo anterior, têm que ser complementadas com medidas mais estruturais, enfrentando os interesses econômicos do garimpo e mineradoras. Não esquecemos também os quatro anos da tragédia do Brumadinho, que deixou 270 mortos e arrasou comunidades após o rompimento da barragem, mas ainda sem reparação e justiça.

Para além do simbolismo

O contraste entre os discursos dos bolsonaristas, como o de Damares resumindo seu programa em “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, e os fortes discursos por justiça das ministras Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e Anielle Franco (Igualdade Racial), e do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) traz a sensação de que tempos ruins ficaram para trás. Ou mesmo o discurso emocionado de Lula na posse e falas de “dívida social”, que a independência do Banco Central é “bobagem” e outras que provocam reações do “mercado” e da mídia burguesa.

Mas há também o simbolismo da “união” e da defesa das instituições, que vão bem além de Lula usando gravata azul e Alckmin gravata vermelha na posse. A composição do governo, com nove ministros do MDB, União Brasil e PSD e o acordo de reconduzir Artur Lira à presidência da Câmara, mostra que o caminho vai ser o da repetição da política de governar sob os acordões e chantagem do Centrão.

Haverá medidas importantes sem dúvida. O “revogaço” de decretos e portarias de Bolsonaro, como revogação da permissão para garimpo em áreas indígenas, retomada da fiscalização ambiental e combate ao desmatamento, programas de moradia e alimentação, etc. Mas não serão suficientes para superar as crises atuais e evitar novas, se não superar os limites impostos pelo sistema político e principalmente o econômico, que seguirá intacto.

A política ultraneoliberal de Paulo Guedes de privatizar tudo será descartada, mas substituída pela volta das privatizações brandas através de PPPs e concessões, e sem programa de reverter as privatizações já feitas. O teto de gastos, que já tem sido destelhado desde o início, só servindo para justificar cortes de gastos em saúde, educação e assistência, será descartado, mas o novo marco fiscal que Haddad, e com Simone Tebet como ministra de Planejamento e Orçamento, prepara deve manter a lógica de “responsabilidade fiscal” herdada dos governos FHC e mantidas nos governos do PT, com Lei de Responsabilidade Fiscal, “superávit primário”, etc. 

Lula não conseguiu trazer Arminio Fraga, um dos arquitetos da política neoliberal do FHC, mas Haddad terá Marcos Barbosa Pinto como Secretário de Reformas, ex-sócio da Gávea Investimentos, do próprio Arminio Fraga. O Secretário-executivo da Fazenda, “número 2” do Ministério, será Gabriel Galípolo, ex-banqueiro e articulador das privatizações da Cesp (Companhia Energética do Estado de São Paulo) e da Cedae (Companhia de Águas e Esgotos do Rio).

Pelos planos do governo, a reforma trabalhista deve ser mantida, e somente ajustada, para não falar da reforma da previdência, mostra que ainda teremos uma luta dura para reverter as medidas desde o golpe de 2016.

A reforma tributária será um tema central para ter os recursos necessários. Nem o aumento prometido do salário mínimo está garantido, diz Haddad. Temos que exigir e lutar pela taxação das grandes fortunas, lucros dos bancos e grandes empresas e altos salários. A correção da tabela do imposto de renda, que ao não ser ajustada desde 2005 tem levado a uma taxação cada vez maior da baixa renda, não pode servir para reduzir os impostos de quem ganham bem. Os 1% com os maiores salários tem que ter um imposto maior. Isso inclui o salário de deputados, senadores, ministros e do presidente que terão um ajuste de 37% a 50% até 2025, igualando ao novo teto dos ministros do STF, para R$46,3 mil por mês.

Sem anistia para golpistas!

Após o susto, pela falta de preparo para o ataque golpista, o governo tomou medidas imediatas fortes, como a intervenção federal do Distrito Federal, ao mesmo tempo que Alexandre de Moraes afastou o governador Ibaneis Rocha e foi decretada a prisão de Alexandre Torres. A gravidade dos ataques impôs a necessidade de agir e as manifestações do dia 9 de janeiro impulsionaram para que o “sem anistia” se tornasse um tema central. Embora muitas prisões foram feitas, há um risco que será apenas pequenos peixes que cairão na rede, além de algumas figuras como Torres (nem o impeachment de Rocha é dado).

Um tema central será a relação com as forças armadas. Após a troca do comandante do exército para o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva do comando militar do Sudeste, se fortaleceu o discurso de “virar a página”. Isso apesar de ter sido evidente a ajuda que os golpistas tiveram do exército para proteger seu acampamento, mesmo após a depredação dos prédios dos três poderes. Há um grande risco de isso continuar sendo tratado como “assunto interno”, com os próprios militares fazendo os julgamentos, que raramente passam para além de uma aposentadoria compulsória com salário alto (como foi o caso do próprio Bolsonaro).

Segundo o ministro da Defesa, José Mucio, Tomás Miguel pediu um “crédito de confiança” para lidar com as tensões entre a Força e o Executivo e disse também querer liderar os tratos sobre o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), o tenente-coronel Mauro Cid, acusado de operar um esquema de caixa 2 dentro do Planalto.

No dia 20 de janeiro, Lula se reuniu com a cúpula das Forças Armadas e discutiu a modernização das Forças, usando PPPs para comprar novos equipamentos. Entre os projetos que estão em curso temos o Prosub (Programa de Submarinos da Marinha), para construção de 5 submarinos, incluindo um nuclear, que até agora já custou 30 bilhões de reais e entregou só o primeiro submarino. Os caças Gripen custaram 20 bilhões e a Força Aérea quer mais 26 caças por 10 bilhões adicionais.

Não devemos aceitar nem a impunidade para militares, incluindo de alta patente, nem gastos bilionários para apaziguar as relações. Um expurgo de golpistas das Forças Armadas será necessário. Compare essa atuação ainda tímida com a de Gustavo Preto, recém-eleito presidente da Colômbia (um país onde o exército também tem grande peso), que em pouco tempo removeu mais de 70 generais e coronéis do Exército e da Polícia – mais da metade.

Da mesma forma é necessário chegar aos empresários que financiaram e financiam ainda os golpistas, incluindo a expropriação de suas empresas e riquezas. Além de, obviamente, responsabilizar Bolsonaro e seus comparsas.

Os atos do dia 9 foram uma resposta importante, mas não será suficiente. É necessário manter as mobilizações “Sem anistia” e combiná-las com a organização de Comissões populares de investigação e denúncia para denunciar a participação desses setores em ações golpistas e incluindo uma comissão independente nacional composta por representantes de movimentos sociais para acompanhar as investigações, com acesso pleno aos dados coletados.

Essa mobilização deve ser combinada com a construção de uma pauta de demandas, desde a revogação das contrarreformas e privatizações dos governos Temer e Bolsonaro, mas também com medidas por mais direitos e investimentos em saúde, educação, assistência, moradia, transporte e emprego, que requer uma ruptura com as estruturas neoliberais e lógica do mercado capitalista, incluindo a estatização de setores chaves da economia com controle dos trabalhadores.

Contexto econômico

O contexto econômico global é bem mais negativo que quando Lula assumiu em 2003. Passamos pela crise global de 2008-09, a crise da pandemia 2020-21 e mesmo que alguns indicadores melhoraram em 2022 agora o mundo caminha para uma nova crise global. A taxa de desemprego voltou a recuar no Brasil e atingiu 8,1% no trimestre até novembro de 2022, segundo o IBGE. É o menor nível para esse trimestre desde 2014 (6,6%), quando a economia nacional começou a mergulhar em crise. A população ocupada com algum tipo de trabalho alcançou um nível recorde de 99,7 milhões de pessoas. Mas grande parte tem sido por um aumento da informalidade e o crescimento da população ocupada está desacelerando. 

O endividamento das famílias bateu recorde em 2022, com parcela de 77,9% de famílias se declarando endividadas na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), e junto com a alta dos preços de alimentos, colocará limites ao consumo.

A estimativa é que o PIB de 2022 termine em 3%, impulsionado pela retomada pós-pandemia e medidas eleitoreiras de Bolsonaro, como o aumento do Auxílio Brasil. Mas a “Prévia do PIB” do Banco Central recuou nos últimos meses do ano passado e a expectativa do mercado financeiro é que o PIB cresça menos que 1% neste ano.

Tudo isso colocará limites às medidas positivas que o governo Lula conseguirá implementar, desde o salário mínimo ao ajuste da tabela do imposto de renda, se não enfrentar os limites do sistema, que Lula já deixou claro que não vai fazer. Sobra para a mobilização independente da classe trabalhadora romper esses limites.

Romper os limites do sistema através das lutas

Por mais forte que seja o simbolismo da representação de movimentos e figuras da esquerda, como a Sônia Guajajara como a primeira ministra dos Povos Indígenas, há também limites e armadilhas. O governo não é um miniparlamento, com cada um representando o seu pedaço. É um órgão centralizado, sob comando do presidente e tem que servir um projeto global. E esse projeto é hoje fortemente limitado pela construção da governabilidade construída em cima de acordo com o Centrão, representantes do mercado, etc.

Vemos isso no caso da pauta dos direitos reprodutivos das mulheres e pessoas que engravidam. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, é uma forte defensora do SUS, mas já deixou explícito que a ampliação do direito ao aborto não será um tema do governo. Além disso, a ampliação dos recursos do SUS será limitada pelas mesmas amarras.

O risco é repetir a experiência dos governos anteriores do PT, onde importantes representantes de movimentos sociais são incorporados às estruturas do Estado, enfraquecendo os movimentos independentes. 

Um outro problema é achar que, diante do bolsonarismo e da extrema-direita operando, não devemos colocar críticas ou fazer exigências ao governo Lula, pois isso nos confundiria com os golpistas fascistóides. Infelizmente, as lutas têm sido limitadas nos últimos anos para encaixar a estratégia eleitoral petista e agora o risco é que as lutas sejam limitadas para não atrapalhar a “governabilidade”.

Um tema central esse ano vai ser o debate sobre as reais lições dos 10 anos das jornadas de junho de 2013. Haverá aqueles que colocarão, de forma equivocada, que foram as lutas contra o aumento da passagem que levaram ao golpe contra Dilma, tirando a conclusão que devemos evitar tais mobilizações hoje. Isso é um grave erro, garantindo que a extrema-direita consiga manter um espaço grande nas ruas, se posando de “antissistêmico”, deixando a esquerda se colocar como os defensores das instituições do Estado burguês (e em alianças com grande parte daqueles que foram a favor do impeachment da Dilma, incluindo Alckmin e Tebet, ou Lira, peça fundamental para impedir o impeachment de Bolsonaro).

Não será possível derrotar a extrema-direita sem uma forte mobilização social, que terá que ir além do que cabe nos acordos com o Centrão. Achar que será possível tratar os movimentos como uma torneira que você abre e fecha quando necessário para apoiar o governo e evitar ataques da direita, é um erro. Para ter força suficiente, os movimentos precisam de programa e plano de lutas próprios, em defesa de direitos democráticos, mas também levantando reais mudanças e avanços sociais. 

Por isso defendemos, por exemplo, que os atos do 8 de março devem ter como tema “Mulheres nas ruas contra a direita, pela legalização do aborto, pela revogação das contrarreformas e pela vida das mulheres”. A luta das mulheres tem tido um grande peso nas mobilizações e essa data provavelmente será o próximo grande dia mobilização nacional e devemos jogar todo nosso peso. 

Um exemplo negativo foi a paralisação dos entregadores de aplicativos, que estava marcada para dia 25 de janeiro, mas foi desmobilizada após a categoria se reunir com o secretário de Economia Solidária, Gilberto Carvalho, que prometeu a regulamentação do trabalho de entregas por aplicativo entre as prioridades do governo federal. É algo muito vago para indicar a suspensão da mobilização, que além de pressionar o governo, tem mais ainda que pressionar os empresários. Os empresários “paralisam” e pressionam à vontade todos os dias, manipulando os mercados, fazendo o dólar subir ou a bolsa cair. 

Alternativa política

Só a luta muda a vida, mas para ser mudança na direção certa é necessário também uma alternativa política. O PSOL saiu fortalecido das eleições em visibilidade e cargos, mas perdeu em perfil próprio. Embora correto e essencial o partido ter lançado Chico Alencar contra Arthur Lira para a presidência da Câmara, o partido será base do governo e abriu para que representantes do partido participem em governos do PT. Precisamos manter a batalha para que o PSOL seja independente do governo, o que não significa ceder um milímetro na resistência contra os ataques da extrema-direita, mas mostrando que há uma alternativa de esquerda, uma alternativa realmente antissistêmica e socialista.

  • Punição de todos os responsáveis pelos ataques golpistas em Brasília e no resto do país a começar por Bolsonaro, empresários, políticos e militares.
  • Fim dos tribunais militares, onde eles julgam seus próprios crimes. Pelo controle social das forças armadas, incluindo revisão de seus privilégios e gastos bilionários em novos equipamentos. Pela desmilitarização das PMs, com controle social das polícias.
  • Organizar comitês populares de denúncia e investigação dos golpistas em todo o país a partir de sindicatos e movimentos sociais.
  • Construir uma jornada unitária de lutas do movimento sindical, popular, estudantil, de mulheres, negros e negras, LGBTQIA+s e povos indígenas contra o golpismo bolsonarista, pela revogação das contrarreformas e ataques do último período e por uma alternativa da classe trabalhadora para a crise.
  • Construir os atos do 8 de março, trazendo a pauta das mulheres contra violência, por direitos reprodutivos, contra desigualdades junto com a luta em defesa e ampliação de direitos democráticos e sociais.
  • Taxar o lucro das grandes empresas, supersalários e grandes fortunas para financiar investimentos massivos em educação, saúde, emprego, transporte, saneamento, moradia, etc.

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