China: Greve de 50 mil na indústria de calçados esportivos
Essa é uma das maiores greves das últimas décadas na China e tem atraído atenção internacional. A greve nas fábricas da industrial Yue Yuen, no município de Gaobu, em Donguuan, deve entrar para os livros de história. Dongguan localiza-se na província de Guangdong, que responde por mais de um quinto das exportações da China. O Partido “Comunista” Chinês tem se mostrado compreensivelmente apreensivo com a magnitude deste protesto tão grande e a possibilidade de um efeito cascata a partir deste. Os grevistas, que em um determinado momento chegaram a 50.000, exigiram de volta o pagamento de milhões de yuans em seguro social e de dívidas trabalhistas que não foram pagas.
As fábricas da Yue Yuenn afirmam que as perdas diretas em consequência da greve são avaliadas em 60 milhões de dólares. Isso mostra o poder econômico que os trabalhadores possuem. Os custos da segurança social e subsídios para toda a força de trabalho totalizaria a metade desse valor, que é na verdade uma pequena proporção do lucro da empresa que, em 2013, faturou 435 milhões de dólares.
Um sistema de segurança social opaco e confuso permite que empresas em toda a China lesem os trabalhadores, promovendo um esquema fraudulento que consiste em fugir das obrigações de pagamentos legalmente exigidos por eles. Há um mês , os trabalhadores descobriram que a Yue Yuen estava baseando suas contribuições para os fundos de segurança social sobre seus salários base, ao invés de fazê-lo baseando-se no pagamento integral, que na China inclui muitas horas extras. Isto é contra a lei. Os operários também descobriram que os contratos de trabalho emitidos pela Yue Yuen não são legalmente válidos. Eles exigiram que estes e vários outros abusos fossem corrigidos; exigindo também crucialmente o direito de organizar seu próprio sindicatos e a não-punição dos grevistas.
A Yue Yuen produz um quinto dos calçados esportivos do mundo para marcas globais como Adidas, Nike e Timberland . Uma greve deste tamanho e duração – alcançando mais de duas semanas – é excepcional e, acima de tudo, notável em um país e sistema político onde as greves são consideradas ilegais e rotineiramente reprimidas.
Morde e Assopra,
Condizendo com o padrão apontado, os trabalhadores relatam que os patrões da Yue Yuen se envolveram, auxiliados por centenas de policiais, em táticas rígidas de repressão, a fim de acabar com a greve que tem custado 60 milhões de dólares, segundo a empresa. O regime chinês, ao longo de décadas, refinou uma abordagem “morde e assopra” para neutralizar os protestos em massa. Também neste caso, a empresa – provocada pelas autoridades – fez algumas concessões limitadas aos trabalhadores, que são combinadas com uma estratégia de força e ameaça.
“Depois das autoridades ordenarem [à Yue Yuen] a ‘regularização da situação’ e fazerem pequenas concessões, dezenas de grevistas foram detidos pela polícia, disseram os trabalhadores. Eles acrescentaram que exigências fundamentais permaneceram sem solução, e só voltaram ao trabalho por causa de intimidação”, informou a AFP em 29 de abril de 2014.
“Nós não confiamos mais no governo nem nos gestores. Por isso, estamos esperando o dinheiro aparecer em nossas contas, antes de voltarmos ao trabalho “, disse um trabalhador à Rádio Free Asia . Os trabalhadores queixam-se de que suas contas da segurança social não são transparentes, o que permitiu a Yue Yuen enganá-los ultimamente.
Apesar da repressão, há relatos não confirmados de que uma minoria, possivelmente alguns milhares, ainda está em greve. A gerência de Yue Yuen anunciou que suas unidades industriais estavam “operando totalmente” na segunda-feira, dia 28 de abril, mas o relatório da AFP, baseado em relatos de vários trabalhadores, diz que “cerca de quatro quintos” haviam retornado ao trabalho. Há relatos de conversas entre alguns dos grevistas para continuar sua luta, pelo menos até o dia primeiro de maio.
Repressão policial durante a greve da Yue Yuen
Há uma grande revolta entre os trabalhadores que, apesar das táticas responsáveis e pacíficas que exerceram durante a greve, enfrentaram repressão desde o início. A polícia fez uma série de prisões e talvez dezenas de trabalhadores foram feridos em confrontos nos primeiros dias da greve, que eclodiu no dia 5 de abril, retornando em grande escala em 14 de abril, quando a oferta da gerência ficou muito aquém das demandas dos trabalhadores.
Durante a luta, tem havido uma forte presença da polícia e unidades de choque.
Fábrica controlada pela polícia
“Os que gritam palavras de ordem são demitidos”, um trabalhador chamado Luo disse à BBC na semana passada. “Nós nem sequer nos atrevemos a levantar cartazes!” Em um ato no dia 15 de abril , os trabalhadores levantando placas e cartazes foram alvos de agressão e prisão por parte da polícia.
Depois desta manifestação, os complexos fabris foram isolados pela polícia para impedir que os grevistas levassem sua luta para as ruas. Na semana passada, como a empresa intensificou suas medidas de destruição da greve, os trabalhadores relataram ficar bloqueados dentro das fábricas (em outros países é mais normal para os empregadores lançarem mão da prática de “lockouts”). Leitores de cartões eletrônicos utilizados para fiscalizar o horário de entrada e saída foram removidos para que a empresa pudesse eximir-se de sua responsabilidade legal de pagar uma indenização se sua ameaça de demitir trabalhadores em greve for realizada. Trabalhadores receberam um ultimato de três dias para voltar ao trabalho ou devem encarar a demissão.
A polícia se encontrava dentro das fábricas, realizando prisões dos trabalhadores que continuavam em greve. “Nós não temos escolha a não ser voltar ao trabalho. O que você pode fazer se um homem com escudo, cassetete e capacete está de pé ao seu lado?”, um grevista disse ao China Labour Bulletin de 25 de Abril de 2014.
“A polícia prendeu os operários em seus locais de trabalho porque estes não estavam produzindo. Mais de sessenta foram detidos. No momento, a fábrica está sendo controlada pela polícia”, um trabalhador que não quis ser identificado por medo de represálias disse à AFP.
Pelo menos dois assessores de ONGs importantes para a greve também foram detidos por agentes de segurança do Estado como forma de aumentar a pressão para o retorno ao trabalho. Zhang Zhiru e seu colega Lin Dong, de uma ONG trabalhista localizada em Shenzhen, foram detidos por vários dias na semana passada. Após a sua libertação, em 25 de Abril, Zhang disse que a polícia havia dito que ele seria libertado “assim que os trabalhadores da fábrica de calçado retornassem ao trabalho.
Resposta de duas caras
A ditadura do Partido “Comunista” apresenta “duas caras” quando se depara, especialmente, com desafios como os movimentos das massas. Em Pequim, o Ministério de Recursos Humanos e Segurança Social determinou na semana passada que a Yue Yuen era culpada por incorrer em “ilegalidade” ao não pagar os valores legais em seguros e pensões dos trabalhadores.
Mas, como os trabalhadores têm apontado, os órgãos locais de governo, há anos, são coniventes com a empresa – o que é um padrão normal na China – fazendo vista grossa para os abusos em troca de receitas fiscais e propinas. O diretor executivo da Yue Yuen, George Hong-Chih Liu, declarou ao longo da disputa que o governo local foi “totalmente favorável” à oferta da empresa aos trabalhadores. As ações da polícia – o “núcleo” do poder do Estado – não deixam dúvidas sobre qual lado eles apoiaram durante esta disputa. Nenhum membro da gerência da Yue Yuen foi preso, apesar de a empresa ter claramente infringido a lei.
O regime busca um equilíbrio entre a necessidade de manter “estabilidade” com o fim da greve o mais rápido possível e o medo de que mais indústrias possam transferir a produção da China, por conta do aumento dos custos de trabalho, para Bangladesh, Camboja e outras economias de salários ainda mais baixos.
Chamada por sindicatos independentes
A greve da Yue Yuen é um marco na história recente das lutas trabalhistas na China. Tudo começou com cerca de 1.000 trabalhadores no dia 5 de abril, mas depois se espalhou para possivelmente 50 mil na semana seguinte, incluindo os trabalhadores da linha de frente e algumas camadas da gerência. Em 18 de abril, a greve se espalhou para uma segunda província, uma fábrica da Yue Yuen na vizinha Jiangxi.
Como na onda de greves que varreu a indústria automobilística em 2010, os trabalhadores da Yue Yuen rejeitaram a intervenção de última hora do sindicato fantoche do regime – a ACFTU – e pediu o direito de formar o seu próprio sindicato. O correspondente da revista The Economist relatou que os trabalhadores nos portões da fábrica rasgaram as cópias de uma carta do sindicato oficial, que pedia para que os trabalhadores acabassem com a greve e reconhecessem a “sinceridade” da empresa.
“Os trabalhadores devem ter seu próprio sindicato , porque o sindicato [estatal] não age em nome dos trabalhadores”, disse um grevista chamado Lei.
A espontaneidade da greve
As condições da ditadura de partido único, com um novo aumento da repressão sob o governo de Xi Jinping, significa que as greves não se desenvolvem como nos países capitalistas, onde os trabalhadores ganharam direitos sindicais e democráticos (embora em muitos casos esses direitos conquistados através de muita luta estejam sob ataque). Não há sindicatos genuínos, reuniões sindicais nem a votação das resoluções ou debates estruturados sobre demandas. As lutas dos trabalhadores, tais como aqueles em Dongguan, desenvolvem-se de uma forma espontânea e em grande parte passam por uma constante improvisação.
Devido aos espiões do regime ou da empresa, que tendem a interceptar e destruir os primeiros sinais de uma ação organizada , as lutas dos trabalhadores tendem a ser erupções espontâneas. Uma vez começadas, no entanto, as greves adquirirem um caráter mais organizado, ainda que isso seja muito mais difícil de sustentar em condições de ilegalidade e uma constante repressão presente.
“Esta greve foi espontânea e não muito bem organizada. Podemos mesmo dizer que a greve não foi planejada e sim deflagrada pelos trabalhadores”, explica Chai Xiaoming, um comentarista de questões trabalhistas em um projeto da Universidade de Pequim. “Mas os trabalhadores ainda mantêm a alta confiança. Por isso a militância é forte”, disse à central de notícias TRNN. (The Real News Network)
Como já vimos em outras greves e lutas de massas na China, tais como os movimetnos anti -poluição e protestos agrários, os trabalhadores usaram grupos de mensagens instantâneas para discutir a greve e os seus próximos movimentos. Alguns desses grupos de bate-papo incluem até 400 trabalhadores. Estes fóruns on-line são frequentemente penetrados pelas forças de segurança e fechados. No entanto, novos são iniciados. Em um sistema ditatorial, as redes sociais e as mídias móveis fornecem um certo “abrigo” para os trabalhadores e ativistas se conhecerem e discutirem entre si.
Eleição dos representantes
Os trabalhadores reivindicaram o direito de eleger seus próprios representantes , um direito que existe no papel – no âmbito dos sindicatos controlados pelo Estado -, mas raramente é reconhecido na prática. Guangdong é, muitas vezes, alardeada pelos defensores do “reformismo” como um exemplo de progresso, com o governo provincial articulando-se para legalizar o direito a negociações coletiva. Mas, em uma ditadura, essas “leis” não se aplicam na realidade. Com isso, a maior greve há décadas mostra claramente que a única “negociação coletiva” em evidência foi conduzida pelos cassetetes da polícia.
Consequentemente, os trabalhadores envolvidos na greve estão cada vez mais cautelosos a respeito da eleição do sindicato oficial e enviando representantes para encontrar a gerência. Isto se segue a uma série de prisões de representantes dos trabalhadores no passado recente, mesmo na “mais esclarecida” Guangdong . O caso mais conhecido é o de Wu Guijun, representante dos trabalhadores de uma fábrica de móveis de Shenzhen, que está enfrentando até cinco anos de prisão por “causar uma perturbação do tráfego” durante um protesto no ano passado. Os trabalhadores da Yue Yuen também parecem reticentes em escolher abertamente os líderes, temendo represálias contra essas pessoas por parte da empresa e do Estado.
Embora as perspectivas imediatas a respeito da luta na Yue Yuen sejam incertas, a greve tem condições de exercer um enorme impacto na consciência dos trabalhadores e suas próximos lutas. “Não importa se teremos êxito ou não, a greve será gravada na história”, um trabalhador chamado Luo disse à BBC. É claro que os trabalhadores não teriam conseguido nada sem a greve, mesmo que a empresa e o governo não possam ser confiáveis para cumprir plenamente as suas obrigações legais para com os trabalhadores. O sucesso dos trabalhadores na organização de uma greve tão poderosa, apesar da repressão, paralisando a cadeia de empresas multinacionais de alimentação, estabeleceu um novo marco para as lutas dos trabalhadores na China, dando-lhes confiança. A demanda por sindicatos independentes e, acima de tudo, democráticos, irá emergir como uma força que não poderá ser controlada no próximo período.