“Massacre de mineiros abriu um novo período na África do Sul”
Entrevista com Liv Shange (DSM/CIT África do Sul)
O massacre de 34 mineiros em Marikana em agosto de 2012 e a subsequente greve nacional nas minas foi um ponto de inflexão na África do Sul. Caiu a máscara do governo do CNA, da central sindical COSATU e especialmente do histórico sindicato dos mineiros, NUM, que hoje está totalmente burocratizada e no lado dos patrões. Os mineiros são atacados constantemente por lutar por seus direitos. O presidente Zuma disse no seu discurso anual que a prioridade esse ano será de lutar contra “crime e protestos violentos”, tentando criminalizar os mineiros.
Os burocratas sindicais, o governo e os patrões estão também atacando a seção do CIT, o DSM (Movimento Socialista Democrático) pelo papel fundamental que jogou em ajudar a coordenar a luta dos mineiros e dar uma voz a sua luta. O establishment teme também o potencial do novo partido WASP (Partido Socialista e dos Trabalhadores), lançado pelo DSM e os mineiros em luta.
O último ataque em curso é contra um dos dirigentes do DSM, a Liv Shange, que foi ameaçada de não poder retornar ao país de sua viagem à Suécia, onde é nascida.
Liv Shange mudou para a África do Sul em 2004. Antes de se mudar, Liv atuava no Rättvisepartiet Socialisterna, seção do CIT na Suécia, e foi eleita a vereadora em uma cidade chamada Luleå.
Mesmo morando há quase dez anos na África do Sul, ser casada com um sul-africano, ter três filhos ter concluído seu bacharelado em Zulu e História da Economia na universidade de Kwa Zulu Natal em 2007, ela corre o risco de não poder retornar ao país.
Os ataques oportunistas usado sobre Liv mostram a pressão que o governo está sofrendo, com o desmoronamento das bases do CNA depois da greve dos mineiros, e o que representa o novo partido WASP (Partido Socialista e dos Trabalhadores), que tem o potencial de crescer e se tornar uma ferramenta que realmente represente os trabalhadores.
No dia 13 de julho Liv conseguiu voltar para África do Sul, com um visto temporário, e foi recebida no aeroporto por membros do CIT, mineiros e simpatizantes.
Conversamos com a Liv no acampamento de verão da seção sueca do CIT que ocorreu no final de junho, e pudemos saber em detalhes sobre os desdobramentos do massacre de Marikana ano passado.
– 18 anos após a abolição do apartheid, aqueles que diziam defender as massas foram responsáveis pelo pior massacre desde de Soweto nos anos 70. O massacre de 16 de agosto foi planejado e calculado. 6 mil trabalhadores com no máximo porretes e manchetes simbólicos, foram atacados por trás e por cima com helicópteros, foram empurrados para frente das câmeras de televisão para parecer que eles estavam atacando a polícia, enquanto muitos foram mortos onde não havia câmeras. Alguns sobreviveram porque se fingiram de morto em baixo de outros corpos.
– A raiva com a morte dos 34 mineiros mortos e a violência demostrada pela polícia fez com que a greve se ampliasse, começaram a surgir greves em outras minas e em outubro uma greve nacional. O DSM jogou um papel fundamental na construção de comitês de greve democráticos, para contornar a direção sindical burocrática, que era contra as greves, e a coordenação desses comitês em um comitê nacional.
Quais as questões que levaram a greve?
– Os mineiros geram uma enorme riqueza para as empresas, mas são tratados como animais. Recebem uma micharia e vivem em barracos sem água e luz. Além da questão salarial havia uma revolta contra o sindicato, que sempre se posiciona ao lado dos patrões. O NUM tentou com violência barrar a greve, mas os trabalhadores responderam com manifestações.
– O NUM se transformou de um sindicato claramente socialista para um sindicato dirigido por empresários, com muita corrupção. Um delegado sindical ganha 10 vezes mais que um trabalhador comum.
– A desigualdade social na África do Sul é enorme, o país mais rico do continente africano é considerado o mais desigual do mundo.
– Um quarto das crianças são subnutridas, a taxa de desemprego está em 40%. Um terço das pessoas de 15 a 25 anos não tem emprego nem educação.
Qual é a principal luta no momento?
– Os mineiros tem sido vanguarda da classe trabalhadora, por isso a questão das minas continua sendo o mais importante. Depois das greves e com a queda do preço do ouro e platina, os empresário estão querendo fazer demissões em massa para salvar seus lucros e quebrar as lutas dos trabalhadores. Então as lutas contra as demissões tem sido um tema central.
– A Amplats anunciou que ia demitir 14 mil mineiros só em Rustenburg, mas recuaram para “só” demitir 6 mil após a luta dos trabalhadores. A Harmony Gold demitiu 3 mil trabalhadores, que perderam o emprego e alojamento. Depois de muita luta foram readmitidos, mas com um contrato que diziam que não iriam participar em “atos ilegais”.
– Mas as demissões podem ser muito maiores, pois se estima que 150 a 200 mil podem ser demitidos no setor de mineração, além do fato que cada emprego nas minas gera 26 empregos ao redor e cada mineiro sustenta em média 10 pessoas. Estão tentando fazer os trabalhadores pagar pela queda do valor da platina e ouro.
– Zuma, o presidente da África do Sul, está tomando medidas para proibir as greves dos mineiros, sob pretensão de fazer um acordo de “paz e estabilidade”. Estão tentando implementar um estado policial com exercito e polícia na frente de todas as minas.
– Após o massacre foi instalado um estado de exceção nas minas. Para juntar mais de 5 mineiros era necessário permissão. Além disso a violência continuou. 15 mineiros foram mortos após o massacre, muitos outros foram baleados, além de ser constatado que muitos ativistas em listas de mortes.
– O sindicato oficial dos mineiros, NUM, está totalmente desacreditado, perdeu 35 mil filiados só na região de Rustenburg. Isso faz parte de uma crise geral da central Cosatu, aliada ao CNA. Surgiram 200 novos sindicatos no último período.
– Nós precisamos avançar na construção de uma alternativa democrática e combativa para os trabalhadores. Propomos um dia de manifestações no dia que marca um ano desde o massacre. Nós precisamos fazer uma campanha para a estatização das minas com controle dos trabalhadores.
E a construção do WASP?
– Isso também é um tema central. A África do Sul é campeã mundial em protestos e é necessário a construção de uma ferramenta política que pode unir essas lutas fragmentadas sob um projeto de sociedade alternativa.
– O lançamento do novo partido o WASP em março foi um sucesso, com 600 pessoas. Além de mineiros havia muitos trabalhadores municipais da região da capital, que lutam contra demissões. O WASP tem a possibilidade de levar a um salto histórico para a classe trabalhadora sul-africana. O partido levanta muita simpatia mas ainda não temos estrutura, organização. Precisamos passar da ideia para a coisa real.
– A classe dominante também entende que a crise do CNA vai gerar um vazio político e estão preparando para tomar iniciativas. Uma das iniciativas é da viúva do Biko, um líder do movimento negro assassinado pelo regime do apartheid nos anos 70. Ela não representa uma alternativa dos trabalhadores. Ela fez carreira como chefe do Banco Mundial.
Qual foi o legado da Copa do Mundo na África do Sul em 2010?
– Ironicamente diziam que as pessoas não deveriam protestar antes da copa. “Seria impensável imaginar protestos no Brasil antes de um a copa”! Assim como no Brasil o governo tentou criar a ilusão de que as coisas seriam diferentes, que todos estariam unidos para esse grande acontecimento, mas poucas pessoas acreditaram. Houve muitas remoções, tentaram esconder a pobreza. Houve também muita repressão contra os protestos. Recentemente foi revelado como as empreiteiras pagaram propinas para ganhar os contratos. A copa não deixou nenhum legado positivo.
Como foi a para você enfrentar o machismo? E como é para as mulheres no geral?
– O país é muito dominado pelo machismo e senti muito isso no início. Mas conseguimos superar isso com o nosso perfil de luta e nosso programa, que dava respostas concretas para a luta. Havia também um preconceito daquelas que achava que eu era uma mulher branca de uma ONG que ia “salvar” os mineiros.
– Sem respaldo dos sindicatos os trabalhadores tentava se organizar de maneira tradicional, como “regimento de guerra” e as mulheres eram excluídas. Mas com a nossa intervenção conseguimos retomar as estruturas de luta com a construção de comitês de greve democráticos e as mulheres jogaram um papel importante para construir apoio para as lutas na comunidade. Assim as mulheres começaram a participar nos piquetes e assembleias.
– A situação das mulheres é extrema. As mulheres são a maioria entre os desempregados. A violência sexual é pandêmica. Uma menina negra que nasce tem uma chance maior de ser estuprada do que completar o ensino fundamental. A maioria das mulheres jovens dizem que sua primeira experiência sexual foi forçada. Existe uma superstição que diz que um homem pode se livrar do HIV se fazer sexo com uma virgem. Por isso há muitos casos de estupro contra jovens, isso faz com que o índice de HIV entre meninas no ensino fundamental é de 28%.
– O aborto é legal e gratuito, mas muitas não fazem por conta do estigma social que sofrem. Isso já começa com as enfermeiras e funcionários das clínicas de aborto. Por isso muitas buscam clínicas clandestinas e inseguras. É comum ver cartazes dizendo “aborto em 30 minutos e sem dores”, mas muitas sofrem sequelas.
– A luta dos mineiros mostra um potencial em superar as barreiras de gêneros. Ao mesmo que isso só se torna possível se levantamos as questões das mulheres.