Internação compulsória – mecanismo de controle e higienização social

A política de internação compulsória tem sido cada vez mais recorrente no Brasil, apesar dos questionamentos dos militantes e profissionais da saúde, do movimento antimanicomial, dos direitos humanos, dos conselhos de classe, entre outros. A desculpa mal aplicada de proteção aos usuários de crack esconde uma real intenção de manutenção do status quo do sistema capitalista, através da normalização da repressão e “implementação da ordem”. Além de garantir a re-estruturação da cidade, a higienização social necessária para atrair o grande capital, esse projeto é intensificado com os mega-eventos.

A internação compulsória consiste na judicialização da saúde mental, da vida. Isso, pois, é um juiz quem autoriza a internação. A internação involuntária já existia, mas esta era autorizada pela família, em parceria com equipe de saúde, em casos especiais e específicos e, não de forma generalizada, por força da lei.  A novidade que vemos atualmente é a presença da justiça de forma massiva, além de na maioria dos casos contar com a participação da polícia.

A atual política de internação compulsória passa por cima da lei Lei 10.216/2001, uma conquista da luta antimanicomial que determina que a internação involuntária seja a última medida possível, depois de todas as demais tentativas terem sido esgotadas ou se houver risco iminente de morte. A internação do drogadito, assim como a adesão a qualquer tratamento, deve partir de uma decisão do paciente após construir um vínculo com os equipamentos de saúde e equipes interdisciplinares. 

A justificativa de que hoje existe uma epidemia de crack e por isso são necessárias medidas rápidas de “proteção” ao usuário é sustentada pela construção da imagem do drogadito como alguém perigoso, para si e para a sociedade. Primeiro que não podemos caracterizar o aumento existente no uso de crack como uma epidemia. Isso, pois, apesar de existir um aumento real no uso de crack a prevalência deste não é maior que a de outras drogas, como o álcool, que possui sua comercialização legalizada.

Tampouco é correto dizer que o usuário de crack é uma ameaça a si mesmo e a outras pessoas. A associação automática entre o uso do crack e violência é artificial e fictícia, pois não existem estatísticas reais que demonstram isso, pelo contrário, o índice de homicídios em São Paulo diminuiu no mesmo período que o uso desta droga aumentou.

A farsa da preocupação com o usuário de crack

Atualmente são construídos novos leitos em instituições totais, que cortam o vínculo do sujeito com a sociedade e que não possuem eficácia. Estas instituições possuem baixo índice de sucesso no tratamento. Estudos mostram que 95% dos casos voltam a usar a droga quando retornam para seu meio social habitual.

O movimento antimanicomial há anos constrói mecanismos substitutivos aos manicômios, que visam garantir a interação social do sujeito, a relação com o território e a sua desinstitucionalização. O CAPSAD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – foi construído com este viés e é voltado especificamente para o atendimento a drogaditos. Mas, o que ocorre hoje é que esses serviços são escassos para atender toda a demanda, além de na maioria dos casos não possuir verbas que garantam uma qualidade real.

Desta forma, vivenciamos um retrocesso nas conquistas destes movimentos sociais. Pois, voltaram-se a ser construídos leitos semelhantes ao dos manicômios. Só no Rio de Janeiro foi anunciado um aumento de investimento de 7 milhões nessas instituições fechadas, aonde serão construídas.

Higienização social em prol da especulação imobiliária

Esta ocorrendo uma intensificação desta política de recolhimento compulsório casada a reestruturação da sociedade devido aos mega-eventos esportivos, a copa do mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Os mega-eventos têm se tornado uma maneira de acelerar processos de modernização das cidades, com a justificativa de preparar a cidade para os jogos, a fim de atrair o grande capital. Uma das medidas adotadas é a revitalização de áreas centrais, para transformá-las em centros econômicos. Para tal, ocorrem desapropriações de comunidades pobres destas regiões, a fim de disponibilizar terrenos e áreas livres para construções e também uma maneira de isolar nas periferias a população pobre despejada do centro.

Dentro desta política de higienização das áreas centrais se encontra uma das razões da dispersão de moradores de rua destas regiões. Não é a toa que as políticas para usuários de crack só ocorrem no centro, quando só uma pequena parte destes se encontra nessas regiões centrais.

São Paulo e Rio de Janeiro – laboratórios para a política de higienização

São Paulo e o Rio de Janeiro, umas das cidades sedes que serão mais beneficiadas pelos mega-eventos, também são as mais afetadas com os recolhimentos compulsórios.

Em São Paulo desde o começo do ano passado intensificou-se a política de recolhimento e dispersão de moradores de rua no centro. Em uma operação, na região da zona da estação da Luz, conhecida como Cracolândia, 196 pessoas foram presas acusadas de tráfico. Estes correspondiam a quase a metade dos moradores dessa região. Esta operação que tinha como objetivo declarado o combate à venda das drogas foi realizada pela Política Militar e durou 7 meses.

O Ministério Público entrou com uma ação, que proibiu a PM de restringir a permanência ou a circulação de usuários de droga da zona da Cracolândia. A multa cobrada por cada infração é de 10 mil.

O governador do estado, Geraldo Alckmin desenvolveu uma parceria entre Governo do Estado e a Justiça para viabilizar a internação compulsória. A partir desta parceria juízes e promotores com o auxílio de médicos decidem em algumas horas o recolhimento do usuário. A rapidez em “limpar” a região da Luz dos moradores de rua e usuários de droga tem uma motivação bilionária. Trata-se do projeto Nova Luz, que faz concessões de áreas da região para uma construtora.

No Rio de Janeiro a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), em maio de 2011, aprovou uma resolução que instituía a internação compulsória de crianças e adolescentes. De lá até agora já ocorreram mais de 4 mil recolhimentos, entre os reincidentes, número extremamente abusivo. Em outubro de 2012 o Prefeito Eduardo Paes anunciou a expansão desta política também para adultos. Esta promessa está sendo cumprida apesar da morte de uma criança de 10 anos atropelada na Avenida Brasil ao tentar fugir de uma dessas ofensivas de internação compulsória.

No dia 19, moradores da Maré, comunidade que fica no entorno da Avenida Brasil vivenciaram mais uma situação de terror, com muitos tiros e perseguições a adultos em situação de drogadição. Foram recolhidas 29 pessoas. São claras as violações dos direitos humanos, aos moradores da região e aos drogaditos.

Estas políticas opressivas e nada bem sucedidas para o processo de saúde mental dos drogaditos são laboratórios, para serem intensificados nestes municípios e propagados para outros. Como denunciado pelo CRESS/PR (Conselho Regional de Serviço Social), que após expansão desta política no Rio de Janeiro e em São Paulo, em Curitiba setores conservadores entre os vereadores estão acumulando forças para implementar esta política de internação compulsória lá. 

Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais

Ocorre atualmente a construção de justificativas para a repressão, coerção e opressão, as normalizando, como algo necessário para combater um suposto “mal maior”. Desta forma a repressão passa a ser institucionalizada. Pois, em nome da ordem, que é “ameaçada” pelo usuário de crack, segundo a lógica disseminada pelo estado, é legitimada a contenção física, a reclusão social, a supressão do direito de ir e vir e decidir por si, claras violações dos direitos humanos. Outras substâncias ilícitas foram associadas historicamente a grupos que eram apresentados como perigosos no imaginário social, como imigrantes, negros, pobres.

O aumento constante e desproporcional da população carcerária corresponde a esta lógica. Isso, pois a maioria da população carcerária formada por pessoas que foram presas por usarem ou portarem algum tipo de droga. Assim é criada a idéia no imaginário social da repressão como algo necessário, com efeitos positivos. A mídia explora a repressão aos drogaditos como um avanço para a sociedade. Vemos que a política adotada atualmente pelo Estado brasileiro de combate a drogas é oposta aos direitos humanos, criminaliza os pobres, em sua maioria, negros e jovens.

Existe uma ofensiva conservadora de controle social. O que se reflete também no aumento de militares na administração direta de serviços públicos, como sistema penitenciário, gestão de saúde e serviço social. Vivemos uma militarização dos serviços públicos. Como no caso da instalação das UPP’s nas favelas do Rio de Janeiro, através das quais a PM passa a gerir a vida nessas comunidades, assim como os serviços de assistência, com as UPP’s sociais. 

Junto com isso, no último período vimos perseguições abertas a movimentos sociais organizados, assim como aos pobres. Como no trágico episódio do Pinheirinho, onde 4 mil famílias foram despejadas, e agora querem despejar as 68 famílias da ocupação Milton Santos. A recente criminalização dos estudantes da USP, que estão respondendo processo judicial. Sem falar na seqüência de assassinatos dos líderes do MST.

Desta forma, a intensificação da política de internação compulsória ocorre juntamente com outras políticas de aumento a repressão e ao controle social. Por isso, mais do que nunca se faz necessário que nos organizemos de formas mais amplas, com distintos setores da sociedade para fazermos um enfrentamento claro aos gestores públicos e a elite brasileira, questionando as estruturas de poder e a serviço de quem elas estão postas. 

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