A tragédia da seca no Nordeste: fenômeno natural ou consequência de um capitalismo atrasado e perverso?

Vários estados do Nordeste brasileiro viveram nos últimos 15 meses uma tragédia. Foi a pior seca dos últimos 50 anos, se forem levados em conta apenas os índices de incidência de chuvas.

No Rio Grande do Norte, março de 2013 foi o mês de março com menos chuva em cem anos, com apenas 26,5 mm de média mensal. Na Bahia, em Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, mais de 1900 cidades declararam estado de emergência. Dez milhões de pessoas foram afetadas, especialmente a população e os sitiantes mais pobres.

O fenômeno destrói grande parte da economia rural da região, trazendo imensos prejuízos para as principais fontes de renda como a pecuária e as lavouras de milho, feijão, mandioca e até a agroindústria da cana de açúcar, no litoral. A produção de leite pode ter caído a 20% da média anual. Muitas áreas sofrem agudos processos de desertificação.

A seca aprofunda a desigualdade entre as regiões do país, atrasando a economia e elevando a pobreza no Nordeste. Ao fim da seca, a região poderá ter perdido até 40% de seu rebanho bovino, cerca de 29,5 milhões de cabeças em 2011, segundo o IBGE. Um prejuízo estrutural e duradouro, que levará décadas para ser recuperado. A visão de milhares de carcaças de animais mortos à beira das estradas impressiona profundamente a qualquer um. Com o maior grau de mobilidade de transportes entre o campo e a cidade hoje existente e os programas de transferência de renda, a população humana consegue se salvar. Muitas famílias abandonaram suas casas e roças e foram para as cidades. O sofrimento dos animais, entretanto, que não têm para onde correr para comer e beber no meio do ambiente seco e escaldante, é comovedor. No passado, as secas matavam gente e bichos. Hoje matam apenas os animais, mas trazem imenso sofrimento e prejuízos aos homens. O cenário da seca é de dor e aflição.

Remédios paliativos

Ao contrário das grandes secas do passado, que geravam imensos êxodos humanos em direção às cidades, os efeitos da seca atual são minimizados pela existência da aposentadoria rural, uma conquista inserida na Constituição de 1988; pelos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e a distribuição de cestas básicas. Mas os efeitos da atual estiagem só provam como estes programas são apenas remédios paliativos para um organismo doente, pois não atacam e mantêm os grandes fatores estruturais que alimentam a pobreza no Nordeste e no país: a concentração da renda e da terra e a falta de investimentos realmente estruturais para enfrentar os problemas. Isso além de inibirem a mobilização e a organização social das comunidades fragilizadas, através das práticas clientelistas e assistencialistas dos corruptos grupos políticos locais, associados ao governo federal.

As famílias sobrevivem com esses programas de transferência de renda, mas já não podem plantar, veem a mata sumir, os rios secarem, o gado morrer, o ambiente se degradar. O feijão e até a farinha de mandioca, comprados nos mercados, tiveram que vir de fora, revelando a real insegurança alimentar na região. Torna-se evidente que estes programas são incapazes de impedir que a economia rural sofra um verdadeiro colapso durante essas longas estiagens. Em períodos difíceis como o atual, a população apenas sobrevive, ou faz de conta que vive, olhando para o céu, esperando pela chuva ou por um carro-pipa.

“Indústria da seca”

A estiagem também alimenta o que se convencionou chamar de “indústria da seca”. Nesses períodos, grupos econômicos e políticos locais tiram proveito do flagelo da região em benefício próprio. Ajudados pela mídia, que divulga situações de calamidade pública, a conservadora elite latifundiária local consegue substanciais ajudas do Estado, como anistia ou refinanciamento de dívidas, renegociação de empréstimos e verbas de emergência, que dificilmente beneficiam o pequeno produtor, ficando com os maiores proprietários. As verbas públicas são usadas muitas vezes para construção de açudes e projetos de irrigação que beneficiam apenas os próprios grupos dirigentes. Além disso, os pequenos proprietários de terra e gado vendem grande parte de suas terras ou de seus rebanhos a preços subavaliados, para não o verem morrer, já que um carro-pipa de água chega a custar até R$ 180,00. A “indústria da seca” só eterniza os problemas e eleva a concentração de renda.

A responsabilidade por essa situação não é apenas da Natureza, mas sim dos governos e dos medíocres grupos capitalistas nacionais e locais. A sensação da população é de quase abandono, descaso, inação por parte dos governos federal e estaduais. Eles apenas mantém vivas e controladas as populações, com bolsas, carros-pipa e cestas básicas, mas alocam recursos mínimos para medidas realmente estruturais de convivência no semiárido brasileiro. O projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, por exemplo, que supostamente poderia aliviar a situação, anda a passo de tartaruga e os canais, antes mesmo de concluídos, já apresentam inúmeros problemas.

Prioridades perversas

Para que se tenha um parâmetro de comparação, apenas no primeiro semestre de 2013, segundo dados divulgados pelo próprio governo federal, o BNDES entregou 37 bilhões de reais de dinheiro público para as grandes empresas no Brasil. Já a Dívida Pública Federal consumirá 47% do Orçamento Geral da União de 2013, algo como 600 bilhões de reais. Enquanto isso, Dilma Rousseff veio ao Nordeste nos últimos dias anunciar que gastou em 2012 algo como 500 milhões de reais em carros-pipa, como se isso fosse muita coisa, e que vai alocar para a seca na região até 9 bilhões de reais. “Deus sabe lá quando”, dizem alguns.

 Se a redução das chuvas no Nordeste em certos períodos é um evento climático até certo ponto natural, influenciado por fenômenos distantes, que alteram a pressão atmosférica e a temperatura das águas no Pacífico Equatorial, como a “célula de Walker” ou o “El nino”, suas consequências não são nada naturais. A ideia de que a menor incidência de chuvas e a seca são os principais responsáveis pela miséria e pelo atraso social na região precisa ser desmistificada. Esses fatores estão presentes em muitas outras regiões do planeta, onde chove menos que aqui e nem por isso as populações são tão pobres. Quase trinta por cento da população da Austrália vive muito bem em fazendas na sua porção desértica, onde chove menos que no Nordeste brasileiro, estocando e administrando cientificamente a água da chuva. Aquele país tem um dos maiores IDHs do mundo. Israel é outro exemplo de como se pode usar a tecnologia para plantar e colher frutas e legumes em regiões mais secas que o semiárido brasileiro.

Existem alternativas

Muitas seriam as alternativas para não só conviver no semiárido fazendo a pequena produção de subsistência, algo que deve ser superado, pois é uma visão quase feudal, mas produzindo grandes excedentes que possam dinamizar a economia rural da região e acabar com a pobreza. A forma prioritária de estocagem da água em açudes e barreiros, sujos e contaminados por doenças, e onde até 90% da água evapora, está totalmente equivocada. A proposta do INPE (Instituto de Pesquisas Espaciais), feita há décadas, é estocar a água dentro de cada propriedade, através de grandes placas coletoras e cisternas limpas, não só dos pequenos telhados das casinhas do interior nordestino, como hoje faz o governo federal, ainda assim de forma insuficiente. A precipitação média no Nordeste é superior ao deserto australiano e permitiria estocar muita água para os anos mais secos. A Petrobras também tem tecnologia para perfurar poços que cheguem ao grande aquífero que existe sob a região. A água do mar poderia ser dessalinizada e bombeada para o interior, como faz a Arábia Saudita, o mesmo podendo ser feito com as águas dos rios que deságuam no litoral. Tudo isso permitiria a agricultura irrigada, livrando a região da pobreza secular e do assistencialismo. Como se vê, as medidas poderiam ser muitas.

Os problemas do Nordeste e do Brasil são outros. Residem na concentração da terra, da riqueza e da renda, na falta de uma verdadeira reforma agrária, que mesmo os países capitalistas mais avançados fizeram e o Brasil nunca fez, na falta de investimentos realmente estruturais para acabar com a pobreza na região e no país. Tudo isso tem uma explicação de fundo: a mentalidade tacanha, medíocre, conservadora, quase feudal de nossas oligarquias empresariais e rurais, que cumprem um papel nefasto para a região e para o país. O verdadeiro problema do Nordeste chama-se capitalismo, ainda mais em um país atrasado e periférico no sistema mundial. Nossa tarefa é mobilizar e esclarecer a população acerca deste estado de coisas.

Repensar a atuação sobre o planeta

Está claro também que é preciso repensar a própria ação humana sobre o planeta e a terra, a urgência da questão ambiental, educar as populações para um tipo de exploração menos danosa à Natureza. A seca também tem uma explicação no desmatamento indiscriminado, no uso do carvão vegetal que destrói a mata, no tipo de agricultura horizontal, extensiva e predatória que se praticou na região desde a colonização, que exaure a terra e aquece a atmosfera do planeta. Uma das medidas que se impõem é um maciço reflorestamento com milhões de árvores em toda a região.

Quando fechávamos este texto, chovia densamente em grande parte do Nordeste. Mesmo que isso não possa ainda ser tomado como fim da seca atual, o fato nos traz uma imensa alegria, pela amenização do sofrimento de nossos irmãos e de milhões de animais e árvores no campo. Como em todas as culturas humanas, chuva no Nordeste é vida. No litoral, nossa torcida é que as nuvens carregadas que passam no céu cheguem ao sertão. A cada dia, acompanhamos os boletins diários de chuva no interior, como se acompanham os informes de uma guerra. Os prejuízos até aqui, no entanto, são profundos e estão na conta do capitalismo brasileiro, que o povo do Nordeste um dia vai cobrar com juros.

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