Aldeia Maracanã – A resistência pacífica e cultural contra as políticas de remoções

Nessa ultima semana do mês de março temos acompanhado nos jornais as inúmeras reportagens tratando do caso Aldeia Maracanã. Assistimos ao vivo em rede nacional o desrespeito e a brutalidade empregada pelo Estado contra índios e manifestantes na remoção da Aldeia Maracanã. Mas qual o motivo de toda essa mobilização? Quais os interesses que cercam aquele prédio? Qual a conjuntura histórica, política e ideológica que ronda esse caso? Vamos conhecer um pouco mais.


Aldeia Maracanã – História

 O prédio do antigo Museu do Índio localizado na Avenida Radial Oeste próximo ao Estádio Jornalista Mario Filho (Estádio Maracanã) tem aproximadamente 147 anos de história que correm o risco de serem jogados a baixo. Importante monumento histórico não só da cidade do Rio de Janeiro, mas do Brasil como um todo, pertenceu ao Duque de Saxe que o doou para ser transformado em um centro de pesquisas sobre a cultura indígena. Foi casa de Marechal Cândido Rondon e responsável por abrigar a sede do SPI – Serviço de Proteção ao Índio (1910), órgão que prestava assistência às populações indígenas antes da criação da FUNAI. Presidido por Marechal Cândido Rondon o prédio se tornou abrigo da primeira instituição de proteção indígena e de estudo de ervas medicinais da América Latina.

Também foi, na hoje apelidada de Aldeia Maracanã, que nasceu o projeto de criação do Parque do Xingu, uma das mais importantes reservas indígenas do Brasil. Já em 1953 o prédio é transformado em Museu do Índio por Darcy Ribeiro. Com a transferência do museu do índio para o bairro de Botafogo em 1977 o prédio fica por 30 anos abandonado, caindo em ruínas e servindo de abrigo para usuários de drogas.

Em 2006 um grupo de indígenas de diversas etnias ocupa e administra o local fazendo ali cultivo de frutas e verduras e promovendo atividades culturais ensinando cantos e danças nativas, contações de histórias, artesanato entre outras atividades.

Os interesses que cercam o prédio

Com as obras da copa do mundo a cidade do Rio de Janeiro passa por uma onda de transformações e remoções que remontam os tempos de Pereira Passos. A especulação imobiliária cresce, o metro quadrado tem uma elevação brusca nos preços e o Rio de Janeiro passa a ser uma das cidades mais caras do mundo para se viver.

Para atender aos interesses de um pequeno grupo o Governo do Estado do Rio de Janeiro remove comunidades, desapropria terrenos, expulsa moradores de diversas regiões sempre mantendo o discurso de fazer uma modernização na cidade (o mesmo empregado em Pereira Passos). Se no bota a baixo a justificativa era a necessidade de derrubar cortiços e morros para alargar ruas e construir avenidas, hoje o discurso é para a construção de estádios, shoppings e estacionamentos.

A Aldeia Maracanã foi mais uma comunidade atingida pelas remoções. A região por ser próxima ao estádio do Maracanã, Quinta da Boa Vista e Floresta da Tijuca acaba se tornando um ótimo empreendimento para o grande capital. Empresas disputam licitações para administrar as construções no local gerando cada vez mais o encarecimento da cidade e o genocídio étnico de seu próprio povo.

Para isso o Governo do Estado passa por cima de leis e os órgãos que poderiam ajudar tentando impedir tamanho massacre não vêem (ou não querem ver) a tamanha desordem e covardia que está sendo feita sobre a cidade do Rio. O decreto de lei municipal 20.048/2001 diz sobre prédios construídos antes de 1937 que “A demolição e/ou alteração destes imóveis somente serão autorizadas após pronunciamento favorável do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural”¹. O IPHAN não demonstrou interesse em tombar o prédio e após inúmeros recursos o projeto de tombamento foi para votação não recebendo a quantidade de fotos suficientes para ser aprovado.

A FUNAI que deveria proteger os índios também não se manifesta e não declara apoio. Se omite perante a situação. A Ministra da Cultura Marta Suplicy declara uma nota de apoio a Aldeia Maracanã no início do mês de Janeiro², porém as ações que de fato poderiam impedir a desocupação do imóvel não são tomadas. Diversos artistas também se sensibilizam a causa e declaram apoio a Aldeia somando com a resistência.

O Governador do Rio diz que a ordem de demolição do prédio foi recomendação da FIFA, porém a FIFA solta uma nota informando que nunca pediu ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que o prédio fosse demolido³.

Por outro lado os interesses dos indígenas e dos apoiadores do movimento de resistência é que ali seja feito um centro de referência indígena com um museu e uma faculdade indígena. Um local que seja administrado pelos próprios índios e seja reconhecido por todos esses anos de luta e resistência da comunidade indígena contra a fúria do colonizador. Os indígenas só querem ter o direito de propagar sua cultura, suas tradições e ensinamentos através de um centro indígena que não maquie a realidade histórica colocando o índio em um imaginário estereotipado.

Não é só o valor do prédio ou da região que está em jogo, mas todo o valor imaterial que este representa. Sua importância para a história brasileira e para os povos nativos, toda sua representação histórica e cultural ameaçada pelos interesses de governos que não valorizam e não trabalham em prol do seu povo, mas apenas atendem interesses de uma pequena elite que através do capital impõe suas regras em um jogo de cartas marcadas.

O início dos conflitos

No dia 12 de janeiro de 2013 o Batalhão de Choque se posicionou em frente a Aldeia Maracanã para cumprir uma suposta ordem de desocupação do prédio. Os ânimos ficaram agitados com policiais portando armas de tiro de borracha, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e gás de pimenta, enquanto do outro lado do muro índios com arcos e flechas prometendo resistir a invasão.

Sem mandato que justificasse a invasão a polícia passou o dia fazendo terror psicológico na porta da Aldeia enquanto esperavam por uma ordem judicial que legitimasse a invasão. A ordem judicial não veio e desse modo a polícia não pode invadir o prédio que já estava ocupado por centenas de manifestantes de movimentos sociais opositores ao governo, o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Marcelo Freixo, promotores públicos e imprensa.

Uma liminar concedida pela juíza federal Edna Carvalho Kleemann impedia que o prédio fosse derrubado, porém em novembro de 2012 o Governo do Estado entrou com uma ação que derrubou a liminar concedida pela juíza dando permissão ao Estado para derrubar o prédio indo contra a lei municipal 20.048/2001.

A partir desse episódio comecei a freqüentar e a conhecer um pouco mais de perto a realidade da Aldeia Maracanã. Passei algumas tardes ouvindo histórias, aprendendo canções e danças, recebendo um pouco da cultura e das tradições indígenas. Como historiador, eleitor, cidadão carioca e acima de tudo humano, posso afirmar que é impossível não enxergar o tamanho valor cultural e histórico daquele antigo prédio e das manifestações que ali ocorriam.

As batalhas judiciais foram muitas, as tentativas de diálogo constantes e todas ignoradas ou atendidas com respostas prontas sempre negativas por parte do Governo do Estado. Representados pelas lideranças de Carlos Tukano, Urutau Guajajara, o advogado indígena Arão Guajajara (Arão da Providência), entre outros, a Aldeia Maracanã fez diversos convites para que o Governador fosse até a Aldeia conhecê-la, dialogar e tentar negociar uma solução pacífica para o caso, mas os convites nunca foram atendidos.

O ápice dos conflitos – 22/03/13

No dia 22 de março de 2013, mais uma vez a Tropa de Choque da Polícia Militar foi mobilizada para frente da aldeia maracanã, dessa vez munida de ordem judicial para a desocupação do prédio. A ordem de despejo só poderia ser cumprida após as seis horas da manhã, mas as três da madrugada a tropa já estava cercando o prédio e segundo relato de índios e manifestantes, atacando-os com bombas de gás de pimenta.

Rapidamente houve uma mobilização através das redes sociais para que os apoiadores da Aldeia Maracanã fossem até o local tentar impedir qualquer ação violenta por parte da Polícia. Mais uma vez os defensores públicos, opositores ao governo, o presidente da CDH da ALERJ e militantes em defesa da Aldeia se reuniram em frente a mesma cercados por um contingente de polícias que contavam com dois blindados, arma sônica e helicópteros. Uma verdadeira operação de guerra contra estudantes, senhores e senhoras, mulheres e crianças.

O clima durante toda a manhã foi de tensão e negociação. Índios resistindo do lado de dentro e apoiadores resistindo do lado de fora, até então tudo pacificamente enquanto as negociações se desenrolavam. Próximo das doze horas foi acertado a saída de um grupo de mulheres, crianças e alguns homens. Enquanto os poucos que ainda resistiam pediram apenas mais dez minutos para fazerem um ritual para aquela terra. Uma fogueira foi ascendida e o fogo pegou na primeira oca que fica afastada do prédio criando um pequeno incêndio. De imediato os bombeiros foram acionados e apagaram as chamas. Tudo já estava pronto para a saída dos índios quando a polícia entrou no prédio batendo, dando tiros e jogando bombas em cima daquele pequeno grupo que estava se preparando para sair. Os manifestantes do lado de fora fecharam a Avenida Radial Oeste quando a polícia utilizando spray de pimenta atacou os manifestantes dando início a uma verdadeira guerra urbana.

Os militantes foram caçados pela polícia que estava fortemente armada e não poupou nem mesmo a imprensa disparando bombas de gás e efeito moral sobre manifestantes, jornalistas e deputados. A ação foi altamente truculenta desrespeitando o próprio mandato que dizia que não deveria haver violência policial na desocupação. Cerca de seis manifestantes foram detidos e dezenas ficaram feridos na ação. No mesmo dia o conflito continuou em frente a ALERJ onde manifestantes se expressavam pacificamente quando a Guarda Municipal juntamente com a PM entrou em confronto agredindo-os com cassetetes, pistolas teasers e gás de pimenta.

A ação truculenta da polícia causou repúdio nacional e internacional, repercutindo no mundo todo e levando a apuração de abuso policial por parte da Defensoria Pública da União4.

Aos índios que foram retirados do local foram dadas três opções: aluguel social no valor de quatrocentos reais (o que não é nada se levarmos em consideração que o Rio de Janeiro é uma das cidades mais caras do mundo para se viver), um terreno na Quinta da Boa Vista (que é tombada e nada pode ser construído) ou um terreno de um antigo hospital para portadores de Hanseníase.

Mais uma vez o desrespeito a cultura, a história e a preservação da memória foram imensuráveis. Quanto ao antigo Museu o governador do RJ declarou que dessa vez será transformado em museu do COB (Comitê Olímpico Brasileiro). 150 anos de história indígenas trocados inicialmente por um estacionamento e Shopping Center e agora trocados por um museu olímpico!

A juventude nas ruas – A resistência continua – 27/03/13

Após esses episódios marcados por violência um ato foi organizado e na noite do dia 27 de março de 2013 centenas de jovens, índios, senhores e senhoras, mulheres e crianças, punks e ativistas do grupo Femen saíram às ruas para protestar contra o governador Sérgio Cabral, o vice governador Luiz Fernando de Souza Pezão e contra as inúmeras remoções promovidas na cidade.

Concentrando no Largo do Machado e promovendo um protesto pacífico com manifestações culturais saímos em caminhada ao Palácio Guanabara (sede do Governo do Estado) gritando palavras de ordem contra o governador e em defesa da Aldeia Maracanã. Promovemos ali mais uma atividade cultural com rodas e cânticos indígenas mostrando o valor histórico e cultural do índio em nosso país.

Recebendo o apoio de populares nos prédios, ônibus e carros que passavam pelo local a manifestação correu bem sem incidentes de violência e conseguimos transmitir nosso recado de insatisfação com as políticas administrativas que vem sendo implantadas na cidade do Rio de Janeiro.

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