Rompendo o silêncio… Uma voz em milhares: um relato do medo cotidiano de ser mulher

Abaixo, um exemplo da violência cotidiana que as mulheres estão expostas, a partir do relato de uma experiência concreta. Tornar esse relato público é um passo difícil mas que entendemos como uma tarefa necessária, no intuito de, quem sabe, incentivar que outras mulheres verbalizem isso e que nós possamos, enfim, travar uma luta importante contra o silêncio que a sociedade nos impõem.

Eu poderia terminar esse texto e ir dormir tranquila. Talvez alguns psicólogos possam considerar que escrever sobre isso significa ter elaborado e que agora é possível ser uma pessoa mais tranquila, mais feliz, mais “ajustada”. No entanto, vejo essa iniciativa como um primeiro passo. Tornar público talvez seja uma forma de desindividualizar isso. A violência contra a mulher não deve ser tratada de forma intimista, não deve ser tratada como um “probleminha”. O primeiro passo para que a sociedade passe a dar a devida atenção a isso é com nós, mulheres, em conjunto com companheiros/as que possamos contar, tornando isso público e dando a devida importância. Construir juntas estratégias concretas de superar isso. O convite está feito.

Contar essa história é remexer em um buraco sem fim. Cada vez que ela vem à tona na memória, junto vem novas lembranças, até mesmo corporais.

Aconteceu logo no começo da faculdade, há uns cinco anos. Não era noite, ao contrário do que pensamos sobre o perigo do escuro. Não era um beco, ao contrário do que pensamos sobre o perigo de ruas mal iluminadas. Era dia, era uma grande avenida.

Foi rápido. Muito rápido. Até hoje, quando o caso vem à tona na memória, sinto meus seios pesados e pressionados, lembrando daquelas mãos sujas. É a memória física que me faz ter certeza que não foi alucinação, não foi um pesadelo. O fato de ser de dia, e uma grande avenida, me salvaram de uma situação mais violenta.

Logo depois do ocorrido, fiquei um tempo perdida, pensando o que fazer. Desejei, em primeiro lugar, estar perto dos meus pais e o namorado. No entanto, enquanto pensava, fui tomada por uma preocupação sobre o que eles pensariam sobre isso – será que questionariam a minha roupa? Se eu estava desatenta?

Por me entender como feminista, racionalmente ficava tentando dizer para mim mesma que aquilo era bobagem, que eles não poderiam me culpar, e afirmar para mim mesma que aquilo não era culpa minha.

Eu estava indo para a faculdade quando aconteceu. O dia estava ensolarado e o plano era ir a pé. Era minha segunda ou terceira semana, e as pessoas pareciam bacanas e pensei que lá poderia encontrar alguém. Tinha dúvidas se deveria ir na delegacia e, se tivesse que ir, como era, o que iria acontecer – essas coisas a gente não aprende na escola nem vê pela TV. A minha ideia, a principio, era também avisar as meninas que sabia que moravam na proximidade.

Cheguei na faculdade e essa parte eu não lembro bem. Dentro de mim estava em cacos. Aquela experiência de violência e desamparo era nova para mim, que vivia num ambiente aparentemente seguro e com todo o amparo de meus pais e amigos. Eu e os cacos dentro de mim foram caminhando pela faculdade. Procurei algum rosto conhecido, encontrei uma menina que morava perto de mim. Foi só por isso que consegui falar. Por mim, para minha saúde mental ou qualquer coisa do tipo, estava difícil de verbalizar. No entanto, quando a vi aquilo teve uma proposta maior – evitar que aquilo acontecesse com outra mulher (ainda que um pouco irracional, porque aquilo poderia ter acontecido em qualquer outro lugar, perto de tantas outras moradoras do sexo feminino).

Quando falei para ela, comecei a chorar, mas dizendo que queria avisá-la. A Universidade era nova também, e com isso não tinha um espaço estruturado que pudéssemos recorrer (hoje tem, e fica longe de onde as/os estudantes estão). Caminhamos até a secretaria, e conversei com uma mulher – hoje não consigo lembrar quem é. Ela disse que tampouco sabia o que fazer, mas que naquele dia a professora de psicologia estava por lá e eu poderia conversar com ela. Disse que era especialista em algo do tipo. Eu não sabia se era isso que queria, mas aceitei.

Conversamos. Ela me levou para uma escada lá do fundo. Ficamos sentadas ali, nos degraus. Eu contei o que aconteceu, um pouco fria, às vezes chorando. Eu não lembro exatamente o que ela falou, como não lembro exatamente de nada muito bem. Era tudo confuso, é tudo confuso. No entanto, o teor principal do que a psicóloga falou foi “quando a gente passa por um processo de cidade nova, faculdade nova, se a gente tá muito ansioso, a gente acaba atraindo certas coisas, ou fica desatenta permitindo que elas aconteçam”.

Eu estava muito nervosa na hora, e por isso tenho muita dificuldade de lembrar exatamente como foi. Lembro que ela também reclamou por eu não saber dizer exatamente como aconteceu – e que isso era muito importante, se eu quisesse depor (havia perguntado pra ela como seria caso eu quisesse).

O que a psicóloga disse, na verdade, eu lembrei um ano ou dois depois, que foi quando estava contando para alguém do que aconteceu – foram pouquíssimas as vezes que fiz isso. Enquanto contava, fui lembrando do que ela havia falado. Depois de falar com ela, embora não tivesse clareza de como tinha sido absurdo o que ela tinha feito, eu sentia que queria sair da cidade, largar a faculdade, senti nojo de tudo aquilo que estava passando.

Como disse, isso aconteceu há alguns anos. Desde então, foram pouquíssimas as vezes que falei sobre isso. Levo a minha vida normalmente – embora tenha um certo pavor de andar sozinha na rua, em qualquer horário. No entanto, sempre que ouço histórias semelhantes, fico extremamente fragilizada. Choro, sinto ódio. Talvez eu deveria ter denunciado o agressor. Talvez eu deveria ter denunciado a professora. Talvez eu deveria muita coisa. Hoje, isso se reflete de alguma forma na militância, feminista e socialista.

Toda vez que vejo essas situações, e quando vejo o caso da Globo, com seus programas como Big Brother Brasil; casos como o Rafinha Bastos que ganha dinheiro fazendo piadas machistas e homofóbicas e de todos aqueles que colaboram com essa sociedade opressora, machista e heteronormativa; eu penso que o mais difícil de tudo isso é ver toda essa estrutura que favorece o opressor.

São muitos os que questionam a possibilidade de uma outra sociedade (socialista). Os argumentos são vários. Um deles é que o ser humano não tem como perder a sua podridão, que o ser humano é corrompido e todas essas coisas. De fato, desgraças acontecem o tempo todo, e não sei afirmar mesmo se chegaremos em uma civilização em que as pessoas não irão oprimir outra pessoa, que esteja livre de qualquer desentendimento.

No entanto, o que penso é que depois de tudo que passei e que vejo tantas outras mulheres que passaram por isso, acho que o mais duro é pensar no depois do fato em si, no desamparo que senti e sinto até hoje. O que aconteceu, em si, só penso que foi uma sorte eu ter ficado bem. O depois… o depois foi muito pior.

Sorte por eu ter ficado bem, porque nossa sociedade não nos dá segurança necessária. Ruim depois, por pensar que com tanta tecnologia desenvolvida, com tanta ciência preocupada em curar e tratar de tantas coisas, ainda não há um preparo para amparar pessoas que cotidianamente passam por isso. Pior, a nossa sociedade incita isso, na TV e toda mídia que banaliza o corpo da mulher, na educação de homens para tratarem as mulheres de tal forma, no Estado que se omite de políticas claras para prevenir e prover assistência para casos como esse.

Ao contrário do meu medo que senti, de contar para meus pais e o namorado, todos me acolheram muito bem. Na Universidade, tive pessoas com quem pude contar, como um colega da sala de aula que tinha acabado de conhecer e que se dispôs a me levar até em casa, mesmo morando ao lado da faculdade. Por eles todos sou eternamente grata, e torço todos os dias para que pessoas como eu, como Ariane, como tantas outras mulheres que passaram ou passarão por isso, possam contar.

Eu não posso fazer com que aquele homem seja punido.

Eu não conseguiria hoje, fazer com que aquela professora de psicologia seja punida.

Podemos, no entanto, transformar essa angústia toda em luta. Escrever esse texto é um dos passos para isso. Esperamos que com isso, outras vozes apareçam e somem a essa luta coletiva pelo fim do silêncio, construindo ativamente campanhas pelo fim da violência de qualquer ordem contra a mulher.