Chile: as mobilizações colocaram de joelhos o governo de Piñera
Os estudantes chilenos já completaram três meses de mobilizações massivas. Qualquer marcha de menos de cem mil pessoas já é considerada pequena no Chile. A luta dos estudantes está começando a pôr um fim em quatro décadas de abuso patronal.
A ditadura pró-empresarial privatizou a educação, a saúde, a previdência, a construção de moradia para os setores mais pobres. Converteram todas as necessidades mais básicas da população em um grande negócio para os empresários privados. O Chile, com base na repressão e massacre, se converteu no paraíso do neoliberalismo e no exemplo de um país “bem sucedido”.
Todo esse triunfalismo era realidade para os empresários e, com sorte, para os 10% mais rico da população. Mas não era assim para a maioria dos trabalhadores e pobres deste país, o que provocou nos anos 1980 enormes protestos populares contra o regime ditatorial até que finalmente a ditadura chegou ao fim.
A “volta á democracia” nunca foi real já que 21 anos depois ainda temos a Constituição da ditadura e as leis repressivas desse regime. Isso vale especialmente em relação a um Código Trabalhista que persegue a organização sindical, fazendo com que ainda seja normal que, quando os empresários “descobrem” a intenção dos trabalhadores de se organizarem em sindicatos, estes sejam despedidos sem nenhum tipo de direitos.
A isto se deve acrescentar um sistema eleitoral binominal totalmente fraudulento, pensado para defender os interesses dos ricos e que hoje também está desacreditado. A maioria das pessoas já não se sente representada pelos deputados e senadores que são eleitos com base nesse sistema anti-democrático.
Vinte anos de governos da Concertación e zero de mudanças
Em 1989 os trabalhadores votaram massivamente na Concertación (aliança do Partido Socialista, da Democracia Cristã, do Partido Radical e do Partido Pela Democracia), para pôr fim à ditadura, suas leis e suas políticas econômicas privatizantes implementadas por Pinochet.
Mas a realidade foi muito diferente. Não só não se mudou as políticas privatizantes da ditadura, como muito ao contrário, continuou-se privatizando durante os governos da Concertación. Privatizou-se inclusive empresas que não haviam sido tocadas pela ditadura, como foi o caso do cobre, principal riqueza deste país, o saneamento básico e, claro, aprofundou-se a privatização da educação que é a principal razão porque hoje os estudantes se mobilizam já há quatro meses.
Quais são as razões para as mobilizações dos estudantes
Em maio deste ano os estudantes começaram a se mobilizar contra o lucro e por uma educação pública e gratuita para todos os estudantes. Mas essa demanda, que parece simples e de fácil solução, na verdade ataca o centro nevrálgico do sistema capitalista em sua versão neoliberal. Ataca não só os interesses dos empresários donos dos colégios ou universidades privadas, mas também dos bancos que ganham enormes lucros emprestando dinheiro aos estudantes e suas famílias. Os jovens ficam endividados por mais de 20 ou até 30 anos.
É claro que todos os defensores do neoliberalismo gritam ao céu e dizem as reivindicações dos estudantes não são possíveis, que não há dinheiro no Chile para isto. Então os estudantes têm exigido a reestatização do cobre para se possa obter os recursos necessários para uma educação pública, gratuita e de qualidade.
Isso terminou por atingir todos os apologistas do capitalismo neoliberal, já que aponta diretamente para o coração do sistema capitalista e ataca seus interesses e os do imperialismo e de um modelo que converte em mercadoria as necessidades mais básicas dos trabalhadores, tirando o máximo de lucro para seus bolsos e contas bancárias.
O governo apostou na repressão e no desgaste do movimento
No ano de 2006 (sob o governo de Bachelet, da Concertación) houve uma enorme luta dos estudantes secundaristas, que exigiam praticamente as mesmas demandas que hoje os universitários levantam e foi o primeiro aviso da tormenta que se avizinhava na educação.
O governo da Concertación e a direita que hoje está no governo conseguiram desencaminhar esse movimento com todo tipo de promessas que seriam solucionadas com morosas leis no Parlamento, algo que nunca levaram a cabo e, como palhaços, acabaram culpando-se uns aos outros, como estão fazendo agora.
Como em 2006, o governo de Piñera e os empresários que o acompanham nos ministérios apostaram no desgaste do movimento. Mas desta vez os estudantes aprenderam a lição de 2006 e não pensam em diminuir a mobilização sem obter um acordo concreto com o governo e não reconhecem nenhuma representatividade aos deputados e senadores.
Como alternativa, os jovens levantaram a necessidade de realizar um plebiscito e que seja o povo quem decida o que fazer com a educação. Além disso, estão exigindo uma Assembleia Constituinte para substituir a atual constituição pinochetista. A segunda proposta tem maior apoio entre os estudantes, porque um importante setor não vê no plebiscito uma solução para o conflito.
Junto com as supostas negociações, o governo lançou mão de uma brutal repressão. A polícia militar chilena (forças especiais) foi levada massivamente para as ruas para combater os estudantes. Arrancam os estudantes das faculdades e liceus ocupados, atacam-nos com carros lança-águas e com gases lacrimogêneos em grandes quantidades para impedir suas marchas. Chegaram até a assassinar (na noite de 25 de agosto) um jovem secundarista de 16 anos, Manuel Gutiérrez Reinoso, que empurrava a cadeira de rodas de seu irmão inválido, na comuna de Macul em Santiago.
Mas, a brutal repressão obteve o efeito contrário do esperado pelo governo. Os estudantes elevaram o nível de sua luta e não sentem temor algum de enfrentar as forças repressivas do governo de Sebastián Piñera.
O terror da ditadura não surte efeito entre os jovens
É importante lembrar que os jovens estudantes que hoje se mobilizam nas ruas têm em média pouco mais de 20 anos. Para eles a ditadura é parte da história e não tem em mente o medo da repressão que as gerações passadas tinham e menos ainda surte efeito sobre eles as ameaças veladas e abertas que usa o presidente Piñera, que declarou que devemos relembrar “no que terminou antes a divisão em nosso país”, em clara alusão ao golpe de Estado de 1973.
Estas mesmas ameaças já foram usadas antes pela Concertación para frear os trabalhadores quando estes se mobilizavam.
Hoje, com essas corajosas mobilizações estudantis, se põe fim à paz dos cemitérios e à chantagem dos empresários sobre a necessidade de paz social.
O chamado à greve geral de 24 e 25 de agosto da CUT
Em 24 e 25 de agosto, havia um chamado da CUT por uma greve geral de dois dias. Mas, nestes dois dias não tivemos uma paralisação geral propriamente dita. O que tivemos foi um enorme protesto em nível nacional, onde a maioria dos manifestantes era formada por jovens estudantes.
Isto se explica primeiro porque a CUT agrupa fundamentalmente os trabalhadores do Estado, os trabalhadores dos ministérios. Os trabalhadores da saúde e os professores constituem sua coluna vertebral, mas a CUT não organiza a maioria dos trabalhadores do setor privado. Uma razão ainda mais importante é a baixa sindicalização dos trabalhadores chilenos, dadas as leis trabalhistas repressivas da ditadura que ainda possuem validade.
Mas outro problema central é a autoridade quase nula que tem a direção da CUT, encabeçada por Arturo Martinez, que, como a maioria das instituições conta com baixo apoio entre os trabalhadores que a veem como algo alheio a eles.
Mas isso não significa que as demandas da CUT não tenham apoio entre os trabalhadores. Muitos deles, apesar de todos os inconvenientes, foram a seus locais de trabalho e, quando entrevistados pela TV e rádios, diziam que apoiavam o chamado para a mobilização, mas que eles não podiam faltar a seu trabalho, porque seriam despedidos e, dado o alto nível de endividamento com o comércio e bancos, isso seria algo grave para eles e suas famílias.
É preciso organizar uma greve geral seriamente
A direção da CUT faz todos os anos um chamado à greve geral, mas depois não faz nada de concreto para organizar e construir uma mobilização deste tipo. A raiva contra o sistema é algo real, mas para que os trabalhadores façam parte de uma greve com estas características, devem sentir que o chamado é sério e ver os dirigentes se jogando de verdade na mobilização.
Para organizar uma greve geral são exigidos vários passos anteriores e não basta um simples chamado e marcar uma data. É preciso que os trabalhadores criem comitês pró-greve nos locais de trabalho cuja principal tarefa deve ser convencer a maioria dos trabalhadores da necessidade dessa ação, realizando assembleias de base e um trabalho permanente que responda às ameaças dos patrões e do governo de turno.
Junto com isso também é preciso organizar os comitês pró-greve nas universidades e liceus e, dado o baixo nível de sindicalização que existe entre os trabalhadores, deve-se organizá-los nos bairros onde vivem. Não devemos esquecer que cada trabalhador é um morador de um bairro.
Depois vem a coordenação em nível local, regional e nacional. É preciso criar Assembleias locais que coordenem os comitês pró-greve dos trabalhadores, de estudantes e moradores. As organizações locais são as mais efetivas, isso foi demonstrado historicamente quando os trabalhadores construíram os Cordones Industriales para defender da maneira mais efetiva os seus interesses. A coordenação também deve ser reproduzida em nível regional e nacional.
Precisamos construir uma alternativa política dos trabalhadores
Dado o papel nefasto que jogam todos os partidos tradicionais, não devemos esquecer que eles são parte do sistema. Governo e Concertación hoje não passam de dois lados da mesma moeda, ambos defendem o atual sistema e são os que implementaram e se beneficiaram do atual sistema educacional que permite o lucro.
Lamentavelmente, o Partido Comunista (PC), que poderia ter jogado um papel diferente, só se interessa em ser parte do atual sistema. Eles possuem os principais dirigentes do Colégio de Professores e da Federação de Estudantes da Universidad de Chile (Fech) e da Confech. Mas em vez de impulsionar o movimento, dedicaram-se a negociar com o governo de Piñera e tentar frear as lutas estudantis.
Eles acusam de ultra-esquerdistas o resto dos dirigentes que se opõem a suas políticas e se esforçaram por tirar as demandas mais anti-sistema, como é o caso da reivindicação de reestatização do cobre e a necessidade de uma Assembleia Constituinte. Eles querem mostrar-se frente ao governo e à Concertación como um partido “respeitável” e “confiável” ao sistema.
Nada se pode esperar dos partidos que integram a Concertación e também do PC. Só nos resta a urgente tarefa de construir uma nova alternativa política dos trabalhadores, que esteja disposta a romper com o sistema e defender os interesses dos trabalhadores e dos jovens estudantes que hoje estão lutando contra o lucro, a desigualdade e as injustiças.