As eleições municipais demonstram os limites da frente ampla e da conciliação!

As mobilizações independentes da classe trabalhadora, setores oprimidos e camadas populares é o único caminho para vencer a extrema direita

As eleições municipais de 2024 marcaram uma indiscutível vitória das forças de direita do país. O destaque foi para o seu setor mais fisiológico, impropriamente apelidado pela mídia corporativa de “Centrão”.

Fim da polarização?

Como, a esta altura, já foi muitas vezes reiterado, o partido de Gilberto Kassab foi um dos principais destaques da disputa. O PSD elegeu 885 prefeitos, ultrapassando o MDB, que tradicionalmente era a sigla com maior número de prefeituras e, desta vez, ficou com 853. Ambos os partidos estão entre os mais pragmáticos da política nacional. 

O PSD, por exemplo, participa do governo federal de Lula enquanto é pilar de sustentação do governo estadual de extrema direita de Tarcísio de Freitas em São Paulo. O MDB, por sua vez, foi o centro da campanha de Ricardo Nunes para a prefeitura de São Paulo, que contou com o próprio Bolsonaro entre seus apoiadores. Isto não o impede de ter membros como Renan Filho e Simone Tebet, ministros do governo Lula. Posicionam-se da forma mais vantajosa de acordo com seus interesses de turno. O seu DNA segue sendo antipopular. O PT, por sua vez, continua tentando apoiar-se em suas “alas progressistas”, mas isto não impede que estes partidos o abandonem à própria sorte nos momentos cruciais. São lições que deveriam ter sido aprendidas no processo do golpe de 2016.

Ao trombetear a vitória do “Centrão”, a mídia tenta passar a ideia de que a política retorna ao centro, sinalizando um “cansaço” da polarização que foi incontornável em 2022. Isto representa muito mais um desejo do que uma representação adequada da realidade. 

Por um lado, este setor de “centro” tem um enorme peso no controle orçamentário do país. Isto foi consequência do verdadeiro sequestro que conseguiram cometer sobre o fundo público no decorrer do governo Bolsonaro com as diversas versões de emendas impositivas que subsistiram ao “orçamento secreto”. Nestas eleições, a máquina contou muito e fez com que a taxa de reeleição tenha sido a maior desde a redemocratização. Isto lhe permitiu uma enxurrada de recursos públicos nas suas bases eleitorais antes e durante as campanhas, especialmente as de seu setor mais fisiológico, e precisa ser levado em conta na avaliação do significado político e ideológico do voto, já que favorece um componente extremamente prático do mesmo. Ou seja, muitas vezes a escolha acaba girando em torno de quem tenha se feito presente financiando projetos e obras em torno de equipamentos públicos nas comunidades.

Dizer, então, que estes votos representam um arrefecimento da polarização política é, no mínimo, precipitado. Não é verdade que candidatos que tenham se apresentado ao centro e por fora da polarização tenham tido mais sucesso por este motivo. A longa marcha fúnebre do PSDB, tradicional partido da centro-direita desde a redemocratização, é só mais uma nota nesta sinfonia. 

Por um outro aspecto, apesar de a direita pragmática ter sido a força com mais destaque nas eleições, o fato é que ela precisou se posicionar mais politicamente próxima da extrema direita para tal. Aqui também cabe mesma ponderação de que este elemento é apenas parte da explicação e não pode ser tomado isoladamente do peso da máquina estatal na escolha do voto. No entanto, é sim possível notar que, em boa parte das campanhas, este espectro político elegeu uma postura de agitar que se tratava de uma disputa da “direita” contra a “esquerda”.

Os candidatos de direita, assim, combinaram acesso a muito dinheiro, fortalecendo seus redutos eleitorais e até adentrando naqueles antes ocupados pela esquerda; mas também um discurso ideologicamente comprometido com valores identificados a eles (com uma variedade de temas que foi das pautas de opressões e costumes, à defesa do empreendedorismo, passando pela instrumentalização da religião e a defesa de um liberalismo econômico absolutamente ilusório). Na maioria dos casos, mesmo assim, não podiam deixar de fazer acenos, bastante dissimulados, a demandas e pautas populares. Pense-se no exemplo da relação estabelecida por Ricardo Nunes, em São Paulo, e a tarifa zero no transporte público. Mas ainda nesses casos, as campanhas seguiram a linha de se identificar decididamente com a direita. 

O PL é a sigla do “Centrão” que foi mais fundo nesta aproximação. Deu guarida, desde 2022, a Bolsonaro e ao setor político que o acompanha. O resultado em 2024, embora abaixo das expectativas do partido, foi expressivo. O número de votos para prefeituras, ao longo do país, cresceu 236,2%, tornando-se o partido com a maior quantidade de eleitores (15,7 milhões). Para câmaras de vereadores, o partido teve um aumento de 90% dos votos, chegando a 10,1 milhões. Isto resultou em um aumento de 1494 cadeiras nos legislativos municipais alcançando um total de 4957 vagas.

Esta aproximação é combinada com a competição entre essas forças. Deu-se uma intensificação da disputa pelo espaço no espectro à direita da política nacional. Suas alas mais tradicionais aproveitaram o relativo acossamento sofrido por Jair Bolsonaro para recuperar parte do terreno que haviam perdido no período anterior. Na extrema direita em si, novos e antigos desafiantes ao ex-presidente se colocaram no centro do palco, com destaque para Tarcísio de Freitas e Pablo Marçal, ambos catapultados após a disputa eleitoral de São Paulo. Nikolas Ferreira, responsável pela eleição de vereadores em várias cidades, também se destacou. Em vários locais, esta disputa se expressou em candidaturas diferentes, na superfície do processo eleitoral, como foi o caso de Nunes e Marçal ou Fuad Noman e Engler. Um sintoma da luta entre estas frações, mas também da sensação de que não se sentiam seriamente ameaçadas pela esquerda.

Jair Bolsonaro tinha a necessidade de um bom desempenho. Desejava que os resultados servissem como uma moeda a mais em sua negociação com a direita tradicional em torno de uma anistia para seus crimes e recuperação de seus direitos políticos a tempo da disputa de 2026. Seus resultados estiveram longe de catastróficos. No entanto, não atingiram o patamar que ele precisava. Nos dias seguintes à sua divulgação, as consequências começaram a se apresentar: nas negociações para a disputa da sucessão da presidência na Câmara dos Deputados o tema da anistia para os crimes do 08 de Janeiro de 23 saiu de pauta. 

Acontece que Bolsonaro saiu relativamente debilitado do processo. Suas vacilações nas eleições da cidade de São Paulo, flutuando entre Marçal e Nunes foram o sintoma mais destacado da fragilidade de suas atuais posições. Em disputas importantes, tanto com o campo da direita tradicional, quanto com o campo da “frente ampla”, seus representantes terminaram derrotados. Foi o que aconteceu em cidades como Belo Horizonte, Goiânia, Fortaleza, Rio de Janeiro, Belém, João Pessoa ou Manaus. Ainda assim, obteve resultados importantes em capitais e cidades grandes como Maceió, Aracaju, Cuiabá e Rio Branco. O peso que o apoio de Bolsonaro teve em tais resultados variou de acordo com as características das diferentes bases eleitorais, com algumas candidaturas buscando até mesmo escondê-lo. Foi o caso em Aracaju, por exemplo. De toda forma, o problema que o ex-presidente enfrenta é que a cada nova figura que se constrói com o seu apoio, nasce também um competidor por sua vaga de líder da extrema direita. E, neste momento, este espectro político já aprendeu que pode seguir sem ele. Talvez até com mais força. 

A frente ampla não é capaz de garantir vitórias

O conflituoso consórcio da direita fisiológica com a extrema direita saiu vitorioso do processo eleitoral. Isto gera um cenário bastante preocupante para o período que se abre daqui até 2026. Não apenas por conta da disputa presidencial em si, mas por todos os desafios políticos que se colocarão para a classe trabalhadora, os setores oprimidos e as demais camadas populares até lá.

Considerando os resultados, é preciso afirmar que a presença do Partido dos Trabalhadores no governo federal não serviu para impulsionar uma correlação de forças mais favorável para a esquerda. O PT teve um modesto crescimento de 68 prefeituras chegando a 252. Apenas uma capital e um total de seis cidades acima de 200 mil eleitores. Números ainda menores quando se considera que os resultados das eleições de 2020 também foram baixos. O PSOL, por sua vez, não conseguiu reeleger nenhuma das 5 prefeituras que havia conquistado em 2020. O PCdoB recuou de 46 prefeituras em 2020 para apenas 19 em 2024 (uma redução de 41%).

O número de vereadores eleitos dos partidos mais identificados com o governo federal (PT, PCdoB, PSOL, REDE, PSB, PDT e PV) sofreu uma redução de 557 vereadores, mesmo com o PT tendo aumentado suas cadeiras em 460. O PSOL, especificamente, teve uma redução de 1% em sua votação para as Câmaras Municipais. O que pode parecer pouco expressivo. No entanto, é preciso considerar que o eleitorado, como um todo, cresceu 9%. Assim, essa redução ganha uma expressão maior, já que ela representa um recuo importante no conjunto do eleitorado. Em termos de vagas, isso resultou em 13 cadeiras a menos. Enquanto isso, o PCdoB teve uma redução de 48% na sua votação para as câmaras municipais e perdeu 350 vagas.

Acima, mesmo com ponderações, afirmamos que os setores de direita buscaram sim um voto ideologicamente identificado a ela e contra a esquerda. O fato de terem obtido sucesso nestas disputas levanta a questão: o Brasil se tornou um país de direita? 

É importante entender a dinâmica da disputa ideológica que se deu nestas eleições. Em 2022, o DataFolha apresentou o resultado de uma pesquisa em que 49% da população brasileira apresentava opiniões identificadas à esquerda, destes 17% propriamente de esquerda e 32% de centro-esquerda. A direita contava com 34% (9% direita, 24% centro direita). O centro era espremido em 17%. Não há pesquisa com a mesma metodologia em 2024. Contudo, existem aquelas que foram feitas em agosto, antes do processo eleitoral, e demonstraram que na cidade de São Paulo, por exemplo, a direita conta com o apoio de 38% do eleitorado, enquanto a esquerda parte de uma base de 31%. Ainda assim, a cidade possui mais eleitores do PT (44%, incluindo os que se consideram petistas e próximos ao petismo) do que do bolsonarismo (25%, bolsonaristas e próximos ao bolsonarismo). Há um setor de 24% que se declarou neutro.

É razoável a hipótese, frente a ausência de medições precisas, de que a correlação de forças entre esquerda e direita tenha piorado desde 2022. Contudo, é um equívoco encarar isto de forma estática. Esta é uma disputa em aberto. Enquanto a direita tem apresentado as suas concepções, ainda que com máscaras populistas, a esquerda tem se retraído e buscado acenar ao centro. Mas as diferenças entre ambos os polos não são tão distantes a ponto de justificar tamanha timidez da esquerda. E, como tem sido a dinâmica em tempos de polarização, o “centro” não é conquistado por quem lhe oferece mais concessões, mas pelo lado que apresenta mais decididamente o seu projeto.

As eleições de São Paulo são um exemplo disso. Como dito pelo próprio Boulos, na sua entrevista para Mônica Bergamo, sua campanha em nenhum momento deixou de buscar o centro. Os recuos programáticos foram vários, e ignorá-los impede de retirar as lições do processo. A campanha entregou o comando da política de segurança pública para um coronel da PM, elogiou e disse que manteria a rede privada de educação municipal, declarou que não implantaria uma estrutura progressiva nos impostos municipais etc.

É verdade que os questionamentos da imprensa e demais candidatos sobre temas políticos mais gerais (como o aborto, a legalização das drogas etc.) buscavam criar armadilhas. Ainda assim, não é ilegítimo que o eleitorado seja informado do perfil geral do candidato em que pretende votar. E Boulos manteve o mesmo perfil de centro nestes momentos. Por mais razoável que seja tratar o usuário de drogas de forma diferente do traficante, se isto aparece desvinculado da pauta do fim da guerra às drogas que flagela as periferias brasileiras, torna-se, sim, um evidente recuo programático. E em todos estes temas Boulos manteve uma postura de “meio caminho” buscando não afastar o “centro”. 

No segundo turno, lançou uma carta endereçada aos “empreendedores” de São Paulo. O problema aqui é que ela não se prestou a combater ideologicamente a selvageria da competição de todos contra todos em que o capitalismo oferece apenas “saídas individuais” para as pessoas. A carta não serve para convencê-las que as saídas para as dificuldades que enfrentam no dia a dia são coletivas. E que o papel da política é construí-las. Isto em uma situação na qual uma pesquisa da FGV demonstrou que 70% dos autônomos brasileiros (“empreendedores”) anseiam por empregos formais pautados pela CLT. 

Enquanto isto, Nunes, um inexpressivo prefeito tentando a reeleição que não era nem conhecido da população da cidade no início do ano, se colocou contra a legalização das drogas, por mais presença de privatização nos serviços públicos municipais, por maior militarização da segurança pública etc. Como aconteceu em outras candidaturas de direita, buscou algum verniz populista apresentando algumas propostas que empalmavam com demandas reais presentes na cidade, mas isto sem fugir dos aspectos essenciais de seu programa. Quem conquistou os votos de centro? Os resultados mostram que foi o último.

Isto significa que menos acenos ao centro levariam Boulos à vitória? Não é o ponto da discussão. Vencer eleições é importante. Especialmente quando o enfrentamento à extrema direita está em jogo. Mas concorrê-las não se resume a isto. Aproveitá-las como um palco para realizar uma decidida disputa política da consciência da população é ainda mais necessário. Certamente o é em uma conjuntura em que a direita possa ter maioria social, inclusive em setores populares. 

Levada pela possibilidade da vitória, a campanha da esquerda de São Paulo centrou-se em prometer “amor pela cidade” e “bons projetos, baseados em boas ideias, tocados por boas pessoas, dirigidas por um bom prefeito”. Tentou-se fugir da pecha de “radical” e jogá-la para Ricardo Nunes, devido ao apoio de Bolsonaro. Apuradas as urnas, o próprio Boulos, frente à derrota, passou a declarar que a esquerda deve disputar ideologicamente a sociedade. No entanto, as eleições eram uma oportunidade privilegiada para tal. É importante que frente às derrotas se busque mudanças de posturas com vistas à vitória. Mas para isto, é preciso admitir que tal oportunidade foi perdida por decisões políticas conscientes daqueles que estavam melhor localizados para levar esta disputa à frente.  

O exemplo de São Paulo se repetiu ao longo do país. E para além do contexto das eleições municipais, há hoje um governo federal comandado pelo PT e aplicando uma tática de frente ampla que foi repetida na maior parte das disputas por prefeituras. O recurso às alianças amplas e recuos programáticos só se justificam retoricamente por, supostamente, serem o caminho adequado para vencer a direita mais agressiva. É a velha lógica do “mal menor”. As eleições municipais demonstraram sua face real: de mal menor a mal menor, só sobra mesmo o mal. A frente ampla, enquanto saída para o enfrentamento da extrema direita, se demonstrou um caminho para a derrota. Após dois anos de sua chegada ao governo federal, menos pessoas se identificam com a esquerda, embora nada disto seja definitivo. A extrema direita, por sua vez, está longe de derrotada.

Retomar as rédeas da luta nas ruas

As alianças costuradas em torno de Lula não foram feitas com o objetivo de vencer as eleições simplesmente. Antes, o que estes setores buscaram construir foi uma frente para governar o país sob um processo de rearranjo necessário após quatro anos de completo desgoverno por Bolsonaro. Ainda assim, a burguesia brasileira vem se inclinando ao projeto da construção de um governo sem qualquer presença de elementos populares. Algo que julga necessário para o período de incertezas da situação política mundial que se apresenta atualmente. E para tal, o conjunto da mídia vem cometendo atrocidades como apresentar Tarcísio de Freitas ou Ronaldo Caiado como pessoas de um bolsonarismo moderado, ou de centro-direita.

Do lado do governo Lula, a estratégia da conciliação com a direita e tentativas de agradar à elite econômica vêm apresentando consequências. O discurso de que o Arcabouço Fiscal seria o fim do Teto de Gastos já se transformou em contenção de verbas e cortes orçamentários. O “pente fino” em irregularidades dos benefícios sociais agora se apresenta como ameaças sobre o seguro desemprego, o FGTS e o BPC, benefícios dirigidos justamente a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade. A retórica de retomada do investimento público vem paulatinamente se transformando no fim dos pisos constitucionais da saúde e da educação. As bravatas de enfrentamento com Campos Neto se transformaram na manutenção da política de altas taxas de juros por Galípolo à frente do Banco Central. 

A partir dos resultados das eleições municipais a burguesia brasileira aproveitará para chantagear ainda mais o governo. A tendência é que este ceda, e aumente seu diálogo e dependência da direita fisiológica, inclusive suas alas hoje comandadas por Arthur Lira. A pauta econômica tenderá a atender ainda mais os interesses da elite e aspectos populares devem ser mais enfraquecidos do que já estão. 

A construção do caminho para o enfrentamento consequente da extrema direita e da direita tradicional que se aproxima dela é a retomada da mobilização independente da classe trabalhadora e de seus aliados dentre os setores oprimidos e as camadas populares do país. Este potencial ainda está em compasso de espera, mas lutas como a resistência ao PL 1904, e as greves dos diversos setores do funcionalismo federal demonstraram a força que podem conseguir. O alcance da campanha contra a escala 6×1, que conseguiu, inclusive, eleger um representante para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro é um outro exemplo.

Paralelamente, uma alternativa à esquerda do governo Lula precisa começar a ser articulada pelas forças independentes deste espectro político. Na medida em que o governo avançar em uma via de ataques aos direitos da classe trabalhadora, a existência desta alternativa será essencial para que se faça a necessária resistência às políticas de austeridade que estão para serem apresentadas. É certo, que o fortalecimento decisivo deste polo só pode se dar com a retomada das mobilizações da classe e dos setores populares. No entanto, o indispensável trabalho de organização que o cumprimento desta tarefa exige precisa ser constante, mesmo se a chave da correlação de forças entre as classes ainda tomar algum tempo para virar de posição. 

As contradições do capitalismo no Brasil e no mundo seguem se intensificando. O período de poucas lutas sociais pelo qual passamos no país não vai durar para sempre. Neste momento de defensiva, tudo consiste em saber preparar a ofensiva. O enfrentamento à política de frente ampla que irá acentuar as derrotas daqui para frente é um primeiro passo. O retomar das ruas, greves e lutas, por sua vez, abrirá o caminho para que a extrema direita volte para os porões de onde nunca deveria ter saído.

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