Voto em Dilma para derrotar a direita tucana é um tiro que pode sair pela culatra
A surpresa da realização de um segundo turno nas eleições presidenciais entre Dilma Rousseff e José Serra tem provocado um amplo debate entre os trabalhadores e a juventude. A corrente Liberdade Socialismo e Revolução – LSR posiciona-se claramente contra ambos os candidatos e defende o voto nulo no segundo turno junto com a reafirmação das bandeiras de luta levantadas pela campanha presidencial de Plínio pelo PSOL.
Para nós, a posição da esquerda socialista no segundo turno eleitoral tem que servir para construirmos um terceiro turno das lutas contra os ataques do governo eleito em 31 de outubro, seja Serra ou Dilma. O apoio, mesmo crítico, a qualquer dos dois não ajuda nessa direção.
Temos visto, porém, que o pavor e repúdio diante da possibilidade de um retorno da aliança ‘demotucana’ ao governo federal fazem com que uma parcela significativa da vanguarda dos trabalhadores e da juventude admita a possibilidade de um voto na candidata da coligação encabeçada pelo PT e PMDB. O raciocínio é o do voto contra a direita explícita, o voto no ‘mal menor’ ou simplesmente no ‘menos pior’.
Essa lógica foi adotada por setores organizados dos movimentos sociais e da esquerda. Até mesmo a Executiva Nacional do PSOL, contra a posição da LSR, admite o voto crítico em Dilma para derrotar Serra como uma possibilidade, assim como a do voto nulo. A maioria dos parlamentares eleitos pelo PSOL já anunciou sua disposição de votar criticamente em Dilma ao contrário da disposição do ex-candidato presidencial Plínio que anunciou que votará nulo.
Para nós, porém, o suposto tiro contra Serra acabará saindo pela culatra. A lógica do ‘mal menor’ acabará reforçando o aspecto mais nefasto do ‘lulismo’ – sua maquiagem de esquerda utilizada para conter as lutas sociais em benefício das elites dominantes e do status quo. Desmascarar essa falsa imagem de esquerda do ‘lulismo’ e reconstruir uma verdadeira esquerda socialista no Brasil é uma das tarefas centrais dos socialistas no atual momento histórico.
É evidente que a simples idéia de que alguém que foi capaz de promover ações como a violenta e covarde invasão da PM na USP contra estudantes, funcionários e professores no ano passado, possa tornar-se presidente da República, já é motivo de justificados arrepios. Quem se lembra de FHC e suas políticas neoliberais tem motivos de sobra para repudiar o PSDB.
José Serra é um tradicional representante de tudo contra o que lutamos. Mas, esse “tudo contra o que lutamos”, já há algum tempo, precisa de algo mais que um representante “tradicional”, precisa de renovação. Nos estertores de FHC, a aliança ‘demotucana’ provocou tanta raiva popular que, junto com o acúmulo de forças dos movimentos sociais, se mostrou incapaz de dar continuidade às políticas desejadas por banqueiros e grandes capitalistas nacionais e estrangeiros.
Lula acabou sendo um mal necessário para a burguesia. Chegou ao poder sobre a base da raiva popular contra os neoliberais tradicionais e por isso suscitava desconfianças nas elites do poder. Mas, rapidamente ganhou a confiança dos principais setores da burguesia. A Veja e a Globo podem continuar fazendo seu joguinho reacionário, mas Itaú, Bradesco, Odebrecht e Votorantim continuando repassando milhões para a campanha de Dilma (e para Serra também pois não são bobos).
O governo de Lula e Dilma foi motivo de festa e jubilo para banqueiros, para o agronegócio e capitalistas de todos os tipos, como Lula gosta de repetir para um público selecionado. Em 2009, no auge da crise internacional, quando o PIB nacional caiu 0,26% e milhares foram demitidos ou tiveram seus salários rebaixados, o Itaú teve um crescimento em seus lucros da ordem de 29% em relação ao ano anterior. O total de lucros foi de 10 bilhões de reais, o equivalente aos gastos totais com o Bolsa Família no ano.
No mesmo ano de 2009, 380 bilhões de reais foram pagos a título de juros e amortizações da dívida pública. Isso representou 35,57% do orçamento federal comprometido com um punhado de 20 mil investidores que controlam cerca de 80% dessa dívida. Enquanto isso, os gastos com educação e saúde foram de pouco mais de 7% do orçamento federal. O programa Bolsa Família mereceu menos de 1%.
O passado de Lula, suas ligações com os movimentos sociais organizados e sua capacidade de diálogo quase direto com setores amplos de massas mostraram-se instrumentos valiosíssimos para quem esperava conter uma explosão social do tipo que se viu na Venezuela ou Bolívia, só para citar dois exemplos de anos recentes.
Enquanto as políticas assistenciais focadas, como o Bolsa Família, funcionaram muito bem como complemento dessa política pró-banqueiros, o governo combinava repressão e cooptação dos movimentos sociais. Lula praticamente comprou as Centrais sindicais com dinheiro do imposto sindical e transformou-as em correia de transmissão do governo.
A fábrica de pelegos do governo Lula foi um fator importante para derrotar a resistência sindical e popular e enfraquecer a esquerda que não se rendeu e não se vendeu. Foi assim que Lula conseguiu aprovar sua contra-reforma da previdência de 2003 e nesse ano vetou o fim do fator previdenciário prejudicando milhões de trabalhadores.
Assim como em 2006, neste segundo turno a campanha do PT acusa os tucanos de privatistas. Não passa de estratégia de marketing estimulada pelas pesquisas qualitativas de opinião que indicam grande rejeição popular às privatizações, como já foi assumido pelo marqueteiro de Lula em 2006. Os tucanos são privatistas, mas o PT no governo não deixa por menos.
O governo Lula não reverteu nenhuma das privatizações de FHC e manteve políticas privatistas. Lula privatizou bancos estaduais e rodovias federais, ampliou os leilões de bacias de petróleo e gás, baseia o PAC nas Parcerias Público-Privadas (o modo petista de privatizar) e usa o BNDES para fomentar fusões e aquisições estimulando a formação de mega empresas privadas. Até na educação, o governo repassa verbas públicas para escolas privadas ao invés de investir esses recursos na ampliação massiva de vagas em instituições públicas garantindo qualidade, infra-estrutura, assistência estudantil, valorização de professores e funcionários, etc.
Apesar do radicalismo neoliberal dos primeiros anos de Lula (explosão dos juros, Meirelles no Banco Central, contra-reforma da previdência, superávit primário nas alturas para pagar a dívida pública, etc), a resposta do governo diante da crise de 2008/09 seguiu o padrão internacional. De Bush/Obama a Sarkozy, praticamente todos os governos burgueses esqueceram temporariamente a ladainha neoliberal sobre o Estado mínimo e usaram dinheiro público para salvar as empresas e tentar estimular a economia contra o espectro da depressão econômica. No Brasil, não foi diferente.
Lá fora, porém, o pêndulo das políticas econômicas já voltou para o lado das medidas neoliberais radicais. Cortes e ataques aos direitos dos trabalhadores são as respostas dos governos para a bomba relógio das dívidas públicas. Aqui, o ritmo é diferente. A ilusão na bonança eterna é o que fomenta o apoio a Lula que chega aos 80%.
Serra e Dilma firmaram um verdadeiro pacto informal nessas eleições no sentido de não entrar em nenhum debate mais sério sobre a crise internacional e suas prováveis conseqüências sobre o Brasil no próximo período. Ambos sabem que, apesar de toda a retórica cínica sobre aumento da aposentadoria e do salário-mínimo, terão que passar o facão sem dó. Na pauta temos mais um duro ajuste fiscal, uma nova contra-reforma da previdência e outras medidas tiradas do saco de maldades.
O estelionato eleitoral de 2010 deverá ser lembrado com um gosto amargo por todos aqueles que hoje douram a pílula de Dilma para engoli-la mais facilmente.
Muitos movimentos sociais, de mulheres e da comunidade LGBTT reagiram enfaticamente e com razão à cruzada conservadora e moralista ligada à campanha de Serra (e parcialmente de Marina Silva no primeiro turno) contra a legalização do aborto e os direitos dos homossexuais. Alguns tiram a conclusão de que o voto em Dilma é a melhor resposta. Ilusão!
A reação de Dilma à cruzada conservadora da direita religiosa foi uma vergonha. Dilma renegou a defesa da legalização do aborto e firmou um compromisso com lideranças religiosas de que não encaminhará nenhuma proposta ao Congresso nessa direção ou que estimulem o casamento homossexual. Outros pontos progressivos presentes no PNDH-3, relacionados aos crimes da ditadura militar e os direitos dos sem-terra, por exemplo, já foram renegados anteriormente pelo governo Lula.
No campo da reforma agrária, o governo Lula é uma decepção absoluta, tendo assentado menos famílias que o próprio FHC! A situação não será diferente com Dilma ou Serra. Ambos irão, como fizeram Lula e FHC, priorizar o agronegócio primário exportador. A reforma agrária terá que ser arrancada com muita luta, ocupações e mobilizações unindo trabalhadores do campo e da cidade e provocando a ruptura com esse modelo econômico.
Do ponto de vista da política externa, que muitos dizem ser o aspecto mais “progressista” do governo Lula a ser continuado por Dilma, não há muito que celebrar. A postura aparentemente mais independente do atual governo não impede que o Brasil jogue um papel nefasto no Haiti, por exemplo. As tropas de ocupação brasileiras liderando os capacetes azuis da ONU jogam um papel de repressão contra o que consideram “desordem”, matam dirigentes sindicais e ativistas populares, além de conter a revolta desorganizada de um povo extremamente sofrido. A política brasileira no Haiti é cúmplice do papel do imperialismo estadunidense.
O governo brasileiro é o bombeiro latino-americano. Joga o papel de freio da radicalização da luta popular e segura a mão de quem ameaça enfrentar-se de frente com o imperialismo. Foi assim no levante que derrotou o golpe contra Chávez em 2002 na Venezuela ou no conflito aberto com as oligarquias da região da ‘media luna’ na Bolívia em 2008.
É verdade que um governo Serra traria de volta um punhado de vermes da política nacional que hoje estão mais distantes dos centros de poder nacional. Mas, o que dizer do vice de Dilma? Por acaso, Michel Temer é menos nefasto do que ACM Neto? Ou será que Sarney é ‘menos pior’ que Kátia Abreu? Collor e Renan Calheiros por acaso são um mal menor diante de Yeda Crusius?
Mas, o problema do PT não é apenas estar mal acompanhado. O PT hoje é o principal instrumento político de aplicação das políticas que beneficiam o grande capital, em especial, o financeiro. O PT herdou dos governos anteriores e assumiu com vigor a corrupção e o aparelhamento do Estado para fins escusos. A total adaptação ao que existe de mais podre no Estado burguês brasileiro, são marcas desse ex-PT.
Sua máquina partidária está repleta de novos-ricos, administradores de fundo de pensão e gestores estratégicos do grande capital. O velho PT não existe mais há tempos, apesar de alguns requentarem o prato azedo quando lhes interessa (principalmente nas vésperas de um segundo turno).
O caráter retrógrado do argumento de que vale tudo para derrotar a direita ‘demotucana’ se reflete na demagógica campanha para renovar as supostas credencias esquerdistas de Dilma e Lula. Uma coisa é entender, ainda que discordando, que uma parte dos trabalhadores tape o nariz e vote em Dilma pensando em derrotar Serra. Mas, outra bem diferente é engolir a montanha de propaganda demagógica requentando virtudes que Dilma e o PT há muito relegaram ao baú das velharias.
Há quem chegue ao ponto de denunciar a luta dos estudantes e trabalhadores contra o governo federal, no caso das universidades federais, dos petroleiros e bancários, por exemplo, como sendo ações que beneficiariam a direita. Esse é o verdadeiro caráter do ‘lulismo’: conter a organização e a luta independente dos trabalhadores e da juventude. Mas, entre a maquiagem pré-eleitoral do esquerdismo de Dilma e a luta dos trabalhadores, não temos dúvida de que lado estamos.
Nesse contexto não faz sentido fazer exigências a Dilma e cobrar dela compromissos do ponto de vista da esquerda e dos movimentos da classe trabalhadora e da juventude. Isso só serviria para fomentar ilusões de que um governo Dilma estaria em disputa e poderia ser ganho pela esquerda. Essa batalha já foi perdida com Lula.
Um governo Dilma não deverá ser disputado pelos trabalhadores e a esquerda, mas sim derrotado, tanto quanto seria um governo Serra. Para conseguir isso, a esquerda socialista autêntica e os movimentos sociais deverão superar suas limitações políticas e sua fragmentação.
O acúmulo da esquerda socialista até aqui poderia ter sido muito maior se uma Frente de Esquerda tivesse sido formada nas eleições e uma Central unitária tivesse sido construída com todos os setores classistas e independentes do governo e dos patrões. Ainda assim, as greves de bancários, metalúrgicos e servidores públicos, assim como as lutas estudantis e populares, que não deixaram de existir apesar do ‘lulismo’, são indicações de que a força de nossa classe de nossa luta se mantém e temos como avançar.
A corrente LSR está a serviço dessa luta. Estaremos juntos.