Rio Grande do Sul: a catástrofe não é natural
As chuvas torrenciais têm causado uma situação catastrófica no Rio Grande do Sul. O último boletim da Defesa Civil do estado contabiliza 83 mortes até agora, com 364 dos 497 municípios afetados pelas fortes chuvas. O Rio Guaíba chegou ao maior nível da história, alagando boa parte de Porto Alegre. A previsão para hoje (06 de maio) é de mais chuva forte, com risco de granizo.
Mas apesar de ser difícil pensar em um fenômeno mais natural que a chuva, o aumento da intensidade das chuvas e os efeitos catastróficos não são nada naturais, e sim o resultado de um sistema predatório que por séculos colocou o lucro acima da vida e da natureza.
“Aqui em Canoas o quadro é de guerra. Três dos quatro quadrantes da cidade estão alagados. A defesa civil e o exército estão completamente despreparados. Tem sido a solidariedade do povo na raça que tem feito a diferença: resgatando com barcos, jet ski e vans, dando comida, roupa. É um quadro de muita dor e sofrimento, especialmente crianças, idosos, deficientes. Vários conhecidos perderam tudo. Muitos ainda não foram resgatados e muitos procuram parentes. Tem gente na BR chorando, com fome, frio, em acampamentos a céu aberto ou dentro dos carros”, relata João Luiz Braga, servidor municipal e militante da LSR que tem participado no trabalho de solidariedade em Canoas.
Os dados são aterrorizantes. Além de 83 mortos, não 111 desaparecidos, 20 mil desabrigados (quem teve sua casa destruída), 129 mil desalojados (quem teve que deixar sua casa) e no total 873 mil afetados, segundo o boletim da Defesa Civil. Mas todos esses dados aumentam com cada boletim.
As chuvas têm levado a destruição de casas e pontes, interditado estradas e interrompido o abastecimento de água e luz. 75 hospitais funcionam apenas parcialmente e 17 tiveram de suspender os atendimentos. Em Porto Alegre, 70% da população da cidade enfrenta desabastecimento de água, segundo a prefeitura.
Tudo isso se traduz em uma tragédia humana, onde os mais pobres, que moram nas condições mais precárias e de risco, e mais dependem de serviços públicos, são os mais afetados.
A chegada de uma frente fria nos próximos dias levará a uma queda de temperatura, com algumas regiões podendo marcar mínimas de 10°C, aumentando risco de hipotermia para quem ainda não foi resgatado.
Enquanto a resposta tem sido imediata da população em uma onda de solidariedade, seja através de doações, seja ajudando diretamente no resgate e abrigo de pessoas, o poder público mais uma vez se mostrou despreparado.
Não foi por falta de alerta
As mudanças climáticas são uma realidade no mundo inteiro constatada já há bastante tempo. O Rio Grande do Sul enfrenta o seu quarto episódio de fortes chuvas e inundações em menos de um ano. Em setembro do ano passado, houve 54 mortes após a passagem de um ciclone extratropical.
Esse não é um fenômeno isolado ao Sul. Vimos nos últimos anos as tragédias se repetindo em São Sebastião (SP), Petrópolis (RJ), no Espírito Santo, Pernambuco e vários outros lugares.
As chuvas fortes do último ano no Sul, que têm ligação com o fenômeno El Niño, têm sido agravadas pelas mudanças climáticas. O aumento das temperaturas leva a um aumento da evaporação e assim a umidade no ar, ao mesmo tempo que o ar quem tem uma maior capacidade de reter a umidade. Isso significa secas mais intensas onde a chuva demora mais a cair, mas ao mesmo tempo as chuvas tornam mais intensas onde acabam caindo.
Um levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), mostra que o número de dias de chuva extrema (acima de 50 milímetros) em Porto Alegre passou de 29 para 66 ao ano na década 2011-2020 em comparação com os anos 1960. Em Belém, esse total saltou de 49 para 143 na mesma comparação. Em São Paulo, subiu de 40 para 70.
Apesar dos constantes alertas dos cientistas, os governos, quando não assumem o negacionismo descarado, como Bolsonaro, têm priorizado a expansão do agronegócio, extração de combustíveis fósseis e lucros de montadoras com milhões de novos carros rodando as estradas.
Isso vale também para o atual governo Lula. Mesmo se houve uma queda no desmatamento na Amazônia, ele tem aumentado no cerrado. Ao mesmo tempo, o país teve um recorde de queimadas nos primeiros quatro meses deste ano, desde o início da série histórica das medições em 1998, com 17 mil focos de fogo, sobretudo na Amazônia.
Falta de medidas de prevenção
Além de medidas insuficientes para acabar com essa destruição desenfreada, as medidas para enfrentar o “novo normal” também estão longe de serem suficientes.
Após o ano de 2023, que viu mais de 80 mortes causadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSBD) destinou somente 117 milhões, 0,2% do orçamento, para medidas de prevenção e à Defesa Civil. Compare isso ao pagamento de R$ 2 bilhões pagos da dívida pública do estado no ano passado.
Os investimentos em nível federal também têm sido muito abaixo do necessário. Um levantamento mostra que os governos destinaram apenas um total de R$ 19,9 bilhões de 2013 a 2022 para medidas de prevenção de catástrofes climáticas. Compare isso com o Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha que tem um orçamento total até agora de R$ 40 bilhões. O fundo do poço foi novamente durante o governo Bolsonaro, que praticamente zerou os fundos.
Agora os poderes falam de agir com firmeza, a partir de um “orçamento de guerra”, mas não podemos confiar que serão capazes de realmente estar à altura da tarefa. A cada passo, o sistema que coloca lucro e propriedade privada de uma pequena elite em primeira mão e sabota as medidas.
O primeiro obstáculo é o arcabouço fiscal e meta de déficit zero, que possivelmente será ignorado, até certo ponto, mas já tem feito estrago. A falta de preparo em forma de uma defesa civil bem equipada e preparada, com acesso a estoques de alimento e água, atrapalham uma resposta rápida. Equipamentos e alimentos precisam ser comprados, de empresas que vão querer lucrar. A privatização de serviços como eletricidade, transporte, água e saneamento, também atrapalham a coordenação, e essas empresas também não estão no mercado para fazer caridade, e sim lucrar.
Medidas imediatas e construção de uma alternativa
A cobrança de contas de água e luz para os desabrigados devem ser suspensas. É necessário também transporte público gratuito para aqueles que estão sendo alertados para evacuar, mas estão sem condições de transporte. Será necessário também o congelamento de preços de alimentos, combustíveis e água, para evitar qualquer especulação de preços.
Para evitar risco de desvios e corrupção, é importante ter um controle social da distribuição da ajuda através de comitês populares.
Além de um plano de emergência, é necessário um plano para reconstrução de casas e infraestrutura. O pagamento da dívida do Estado deve ser suspenso para que os recursos sejam destinados a um plano de reconstrução, além de recursos federais adicionais. A reconstrução deve ser paga através da taxação de grandes empresas e fortunas, não da população de baixa renda.
Esse plano tem que incluir um programa de moradia pública para dar alternativa àqueles que hoje moram em encostas nas várzeas dos rios. Isso junto com um programa de transporte público e de trilhos para diminuir a dependência de carros e caminhões para o transporte, que irá possibilitar a recomposição de encostas e margens de rios, onde os rios costumam alagar.
Em 2011, chuvas torrenciais levaram a deslizamentos que deixaram mais de 900 mortos em Petrópolis (RJ). Ainda hoje há pessoas esperando por novas casas, mais de uma década depois.
Isso não se deve a falta de recursos ou conhecimento, mas essa simplesmente não é a prioridade desse sistema. Não podemos permitir que isso se repita novamente.
Para começar a reverter os danos ambientais, implementar as medidas de prevenção e recuperar as condições de vida de todos os afetados, é necessário romper com a lógica do mercado capitalista. Uma economia baseada na solidariedade entre as pessoas, não na concorrência e no lucro, usando os recursos de forma democraticamente planejada para garantir a melhoria para todos, sem agredir o meio ambiente – essa é a alternativa socialista.