O beco sem saída da austeridade e conciliação
Só com mobilização independente da classe trabalhadora podemos derrotar o bolsonarismo, a política neoliberal e construir um futuro socialista!
A posse de Lula foi marcada por uma forte simbologia, com representantes do povo oprimido subindo a rampa junto ao presidente. Levantou a esperança do fim do pesadelo bolsonarista de quatro anos e de uma melhora para o povo trabalhador. Porém, o pesadelo da extrema-direita se mostrou vivo com a tentativa de golpe de 8 de janeiro do ano passado, e mostrou novamente a sua capacidade de mobilização com o ato em São Paulo de 25 de fevereiro.
Infelizmente, a estratégia de Lula para conter a extrema-direita é a mesma que limita avanços sustentáveis para a maioria de população: a construção de uma governabilidade com base na conciliação com a burguesia e com o Centrão corrupto, obedecendo os ditames do mercado e constantes concessões à direita conservadora e aos militares. Existe um outro caminho, ou somos os eternos reféns da busca pelo “mal menor”?
Sem dúvida há vários aspectos da vida que tem melhorado nesse primeiro ano do governo Lula. Houve uma retomada de programas sociais como Minha Casa Minha Vida e Farmácia Popular. O bolsa família teve um adicional de 150 reais por criança até 6 anos, o salário mínimo voltou a subir acima da inflação, o Desenrola tirou muita gente de dívidas impagáveis. O desemprego caiu e também a inflação, mesmo se os preços continuam muito altos.
O crescimento do PIB do ano passado ficou acima do esperado, fechando em 2,9%. Dois fatores importantes para esse resultado foram a safra recorde, com o setor agropecuário crescendo 15,1%, o consumo sendo sustentado pelas medidas mencionadas e um grande déficit no orçamento federal, possibilitado pela PEC de transição.
A economia desacelera
Porém, essa ajuda do crescimento geral não será duradoura. O PIB permaneceu estagnado durante o segundo semestre, os investimentos continuam muito baixos, a produção industrial não cresceu durante o ano e o cenário internacional é bem incerto. Com o novo arcabouço fiscal, o orçamento público vai trazer austeridade e não estímulo.
Ao mesmo tempo, há necessidade de avançar muito além das medidas limitadas implementadas até agora. Grande parte da população vive ainda em condições muito precárias. Segundo os últimos dados do IBGE, apesar de avanços nas últimas décadas, 18,4 milhões de pessoas não têm coleta de lixo, 4,8 milhões não têm água encanada e 49 milhões não têm esgoto. São essas pessoas que são mais afetadas pelos eventos climáticos que se tornam mais frequentes com o aquecimento global, com chuvas torrenciais, enchentes, deslizamentos, mas também secas extremas.
O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa. O governo tenta se colocar como sensível às questões ambientais, mas se o desmatamento caiu na Amazônia, por outro lado, cresceu no Cerrado. O governo mantém os leilões de blocos de exploração de petróleo e não desistiu da sua exploração na foz do rio Amazonas.
O governo continua priorizando o agronegócio, voltado para a exportação, anunciando o maior Plano Safra da história, com R$ 364 bilhões.
“A reforma agrária ficou paralisada durante esse ano. Para vocês terem uma ideia, nos 40 anos do MST esse foi o ano em que houve menos assentamento”, disse João Pedro Stédile.
Os largados da rampa
A situação dos setores mais oprimidos, representados na subida da rampa, continua sendo marcada por violência e precariedade social.
Apesar de o governo agir contra os garimpeiros nas terras yanomami, a situação continua alarmante, com recursos insuficientes e inconstância das ações. Em 2023 foram registradas 363 mortes de yanomamis, principalmente crianças afetadas por desnutrição e malária.
Os casos de estupro e feminicídio estão crescendo e pelo 15° ano seguido o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), foram 155 mortes, a maioria mulheres, negras, jovens e profissionais do sexo.
A violência policial continua a crescer, com a Bahia, sob governo do PT, se tornando o estado com a PM que mais mata. Mas os massacres sob o nome do “combate ao tráfico” continuam também a marcar a situação em São Paulo e Rio de Janeiro.
Se as medidas implementadas pelo governo Lula no primeiro ano foram insuficientes, ninguém achava que tudo iria melhorar em um ano, certo? O problema é que o espaço para medidas sociais tende a diminuir. O novo arcabouço fiscal estipula não só déficit zero esse ano, mas também metas de superávit primário crescentes nos próximos anos. Tudo isso para garantir o pagamento da dívida pública, em si um mecanismo para distribuir renda aos bancos e aos super-ricos.
André Singer, cientista político que foi porta-voz no primeiro governo Lula, chama a política do governo de “reformismo fraco em câmara lenta”.
A maior parte das contrarreformas e ataques dos governos Temer e Bolsonaro permanecem em pé, como no caso da previdência, trabalhista e o novo ensino médio. Nenhuma privatização foi revertida.
Recorde de emendas
Ao mesmo tempo, cresce o poder do Centrão sobre o orçamento. As emendas parlamentares chegaram a um novo nível recorde esse ano, com 47,6 bilhões. O congresso agora controla ao menos 30% das verbas de 7 ministérios. No caso da Saúde, controlam cerca de 40% dos recursos discricionários (que não são fixos e podem servir para investir em melhorias).
Essas emendas são usadas para barganha política e para fortalecer a base eleitoral de parlamentares, não onde as necessidades são maiores. Como aponta uma reportagem da Folha de S. Paulo: “A antiga indústria clientelista dos carros-pipa no semiárido brasileiro foi turbinada nos últimos anos por uma cadeia que agora tem um novo ponto inicial: o volume recorde de emendas parlamentares de Brasília para a compra e indicação dos destinos desses veículos”.
Conciliação é a estratégia
Porém, é um erro dizer que o governo Lula é vítima ou refém do Centrão, como se não pudesse agir de outra forma. A estratégia do governo é de jogar esse jogo e fazer o “possível”, assim perpetuando o poder do Centrão. O arcabouço fiscal foi uma proposta do próprio governo, não uma imposição.
Do mesmo modo, Lula e o governo continuam fazendo concessões aos militares, evangélicos e conservadores.
Além de manter os privilégios aos militares de alta patente, o governo Lula prometeu mais investimentos em sistemas armas e outros gastos do que para saúde e educação no “Novo PAC”. Em entrevista recente, Lula disse que não vai “ficar remoendo” o golpe de 64, provocando duras e justificadas críticas de organizações de direitos humanos.
Como gesto aos evangélicos, o governo discute ampliar as isenções de impostos para construção de igrejas e templos, que inclui receber de volta imposto sobre insumos e equipamentos, algo que pode custar bilhões. Lula também fez questão de destacar que seus indicados ao STF (Dino e Zanin) e PGR (Gonet) são contra o direito ao aborto.
Essa estratégia política de conciliação de classes irá se estender às eleições, infelizmente, agora com o apoio da direção majoritária do PSOL, que enfatiza a mesma linha em nome de uma “frente ampla democrática”, mesmo se com mais ressalvas sobre até onde ampliar as alianças.
Essa estratégia, de “reformismo fraco”, quando não são ataques diretos a direitos, em nome de “governabilidade”, que não atende as necessidades do povo trabalhador por não escapar dos limites do sistema, é uma receita para derrotas que vemos repetir-se em país após país no mundo. Recentemente vimos a vitória de Milei na Argentina com a decepção com o peronismo. Nos EUA vemos a ameaça de uma nova vitória de Trump. E não foi essa também a razão por trás da vitória de Bolsonaro? Por isso não basta torcer para que o governo “dê certo”.
Construir a retomada das lutas
Obviamente, temos uma situação com poucas lutas. Infelizmente boa parte da esquerda não tem confiança de que seja possível reverter a situação e aposta somente em medidas institucionais, dando mais poder a um judiciário que pode ceder direitos com uma mão, mas também muitas vezes julga contra greves e lutas, diminuindo nossa capacidade de lutas. Ou apostando tudo na via eleitoreira.
Por mais importante que as eleições sejam, não são suficientes para mudar as estruturas do poder, sem um movimento de massas.
Precisamos apostar na retomada das lutas, contra a direita e sua política, fora e dentro do governo. Para mudar a correlação de forças atual e derrotar a extrema-direita é necessário construir um projeto alternativo que possa unir as lutas em um movimento de massas.
Isso inclui levantar um programa audacioso de investimentos públicos em saúde, educação, moradia, transporte público, tudo como políticas públicas, com o fim das privatizações e bancado com a taxação de ricos e grandes empresas. Um programa que atenda as necessidades da classe trabalhadora em toda sua diversidade de gênero, étnica e racial.
Só vamos superar as múltiplas crises que vivemos – social, ambiental, a violência opressora e discriminatória, etc. – colocando as riquezas do país e do mundo à serviço das necessidades reais das pessoas e do meio ambiente, numa luta por uma ruptura socialista.