É necessário reconquistar a independência do PSOL

“O papel do PSOL como base de apoio ao governo é fazer destaques às propostas do governo e no final votar o pacote” (José Luiz Fevereiro, Revolução Solidária, sobre por que defendeu o voto no arcabouço fiscal). “Construímos a governabilidade por causa da urgência para o nosso povo” (deputado federal Henrique Vieira e vice-líder do governo na Câmara). “O governo Lula precisa dar certo para evitar a volta da extrema direita ao poder” (Paula Coradi, recém-eleita presidenta do PSOL). “O PSOL está no governo” (Sonia Guajajara, ministra dos povos indígenas).

O 8° Congresso Nacional do PSOL consolidou como política central do partido uma aliança com o governo Lula e o PT. Essa relação com o governo, que ficou evidente pelas falas dos representantes do campo majoritário, é um passo inédito para o partido, colocando em risco seu papel central da necessária reconstrução e reorganização da esquerda no país.

Apesar de ter um número recorde de participantes no processo congressual, com 53 mil filiados votando, o debate foi mais pobre e raso em relação a congressos anteriores. Nas plenárias e congressos estaduais houve pouco espaço para discussão, em muitas só houve apresentação de teses e votação, sem intervenções. 

O próprio congresso nacional, realizado em um centro de convenções caro no centro de Brasília, não tinha o poder para formular propostas, as resoluções tinham que ser apresentadas antes do congresso, reduzindo o mesmo a um espaço de aferição de votos. 

Houve também uma despolitização do debate, onde a disputa era feita em forma de agitação, deixando os delegados e delegadas com o papel de torcedor para “seu” lado, com vaias e constantes interrupções de fala.

Relação com governo Lula

O principal debate no congresso foi a relação com o governo Lula. O Diretório Nacional do partido havia adotado uma resolução ambígua em dezembro que estabelecia que o partido não participaria formalmente no governo ou indicaria nomes, mas faria parte da base de apoio no congresso. Seria permitido, porém, militantes do partido participarem, desde que não ocupassem cargos de direção no partido.

Porém, no congresso ficou evidente que o PSOL atua como um setor do governo, mesmo que com críticas pontuais (candidatura própria à presidência da Câmara contra Arthur Lira e voto contrário ao arcabouço fiscal). 

A ministra Sônia Guajajara, apresentada como “a primeira ministra do PSOL”, respondeu a um convidado internacional sobre como ela via a contradição de ser ministra e o partido não estar no governo “não entendo a pergunta, o PSOL está no governo”.

O discurso que o PSOL preserva sua autonomia e independência, não muda esse fato. Todos os partidos do governo, incluindo o PT, são “autônomos” e “independentes”. A questão é principalmente política.

A resolução de conjuntura votada no congresso foi cuidadosamente escrita para não criticar Lula diretamente. Por exemplo, está escrito: “Com a saída de Ana Moser do Ministério dos Esportes e de Márcio França do Ministério de Portos e Aeroportos, Lula convidou PP e Republicanos…” Então foi Ana Moser que saiu e Lula então escolheu convidar PP e Republicanos?

Na política econômica, a política de Lula segundo a resolução se reduz a: “No plano da economia, a prioridade do governo Lula até aqui foi a queda de braço contra Campos Neto, presidente do Banco Central, em torno da taxa de juros.” 

Enquanto isso, o arcabouço fiscal é mencionado como parte da “ofensiva” do Centrão e exigência do mercado, onde é totalmente ignorado o protagonismo de Haddad e a comemoração da “vitória” pelo PT.

No tema do arcabouço fiscal, várias falas da oposição lembraram que Fevereiro, da Revolução Solidária, no Diretório Nacional em abril defendeu que o PSOL votasse, apesar de todas as críticas, a favor do arcabouço fiscal. No congresso ele defendeu essa posição, argumentando que o papel do PSOL como base de apoio é fazer destaques às propostas e depois votar a favor do projeto do governo. Já que o PT não aceitou destaques sobre o arcabouço fiscal, foi correto votar contra, mas só por isso.

A resolução votada pela maioria tem como primeiro ponto de prioridade: “A defesa do programa eleito pelo povo brasileiro e liderada pelo presidente Lula em 2022”. Além dos limites e problemas desse programa, já é evidente que grande parte das promessas nunca serão implementadas, a não ser que haja uma luta de massas que force a mão do governo. Não haverá nenhum “revogaço” das contrarreformas de Temer e Bolsonaro, seja reforma da previdência, trabalhista ou o Novo Ensino Médio.

“Revogar o teto de gastos” se traduziu no novo arcabouço fiscal, que mantém a mesma lógica de teto de gastos. Isso já está levando o governo a discutir ajustes que irão permitir reduzir os gastos com a saúde em vários bilhões.

O governo vai “dar certo”?

A linha do campo majoritário é, como disse a nova presidenta, Paula Coradi, em uma entrevista recente: “o governo Lula precisa dar certo para evitar a volta da extrema direita ao poder”. É correto votar a favor de medidas positivas que o governo implemente, do mesmo jeito que nos colocaremos contra investidas golpistas por parte da extrema-direita. Mas é necessário ser inequívoco e dizer que não há como um governo baseado em conciliação de classes, tentando administrar a crise do sistema em base em acordos com o Centrão comprados com cargos e emendas, “dar certo”.

O crescimento da extrema-direita no mundo inteiro, e o Brasil não é uma exceção, é um resultado do fracasso dessa política.

Essa linha levará o partido a fazer constantes concessões. Vimos isso por exemplo na reforma tributária, que foi apresentada como algo positivo. Foi uma reforma tributária reivindicada pela Febraban, com concessões ao agronegócio, indústria de armas e igrejas evangélicas, em nome de medidas positivas que não se concretizaram até agora, e boa parte não verão a luz do dia.

Nosso papel não pode ser defender uma suposta governabilidade, o que implica em defender o sistema, mas expor os limites do sistema, levantando a necessidade de superá-lo.

Como combater a extrema-direita

A extrema-direita é uma ameaça real e devemos combatê-la a cada momento. Mas o fato que as eleições não foram suficientes para derrotar o bolsonarismo, está sendo usado para argumentar em prol de uma política de aliança permanente com o PT, já visando as eleições de 2024 e 2026.

A extrema-direita hoje está na defensiva e não conseguirá promover  um novo golpe no curto prazo. Os principais ataques que nossa classe sofre agora vem de propostas oriundas da direita como um todo, onde nem sempre está nítido os limites entre a extrema-direita, direita tradicional ou até o próprio governo: arcabouço fiscal, cortes na saúde e educação, marco temporal, proibição do casamento homoafetivo, reforma administrativa, PEC da anistia, tentativa de reforma eleitoral, privatizações (o metrô de Recife ainda não foi retirado do processo de privatização), as PPPs que podem agora incluir presídios, planos de explorar petróleo na Amazônia etc.

Condicionar a luta contra a extrema-direita ao apoio ao governo ou alianças eleitorais levará a uma linha de colocar a luta independente da classe trabalhadora em segundo plano. O grande risco é que o descontentamento com o governo e todo o sistema político pode abrir um novo espaço maior para a volta da extrema-direita.

Oposição?

A tarefa do partido não é simplesmente agitar publicamente que somos hoje uma “oposição de esquerda” ao governo. Mas temos que ser explícitos que somos uma oposição programática à estratégia central do governo que é a conciliação de classes e também à política fiscal, que mantém a estrutura neoliberal.

Ao mesmo tempo, temos que nos preparar para uma retomada das lutas, que inevitavelmente irá se chocar com os limites do governo. Se essa luta não levar à construção de uma oposição de esquerda forte no próximo período, o resultado pode sim ser uma vitória da extrema direita nas próximas eleições.

A política do campo majoritário do PSOL é de esperar sentado a mudança de correlação de forças, dando muitas vezes ao PT o poder de ditar o ritmo das lutas (quando sabemos que o PT sistematicamente vem segurando as lutas para não atrapalhar suas estratégias eleitorais) ao invés de ajudar a impulsionar as lutas contra todos os ataques da direita, dentro ou fora do governo, mesmo se coloca em risco temas centrais do governo. Para isso ser possível, é necessária uma real independência política do partido. 

Eleições 2024

O campo majoritário encara as eleições 2024 como o “terceiro turno” das eleições de 2022, onde o centro é derrotar a extrema-direita. Isso justifica a repetição de frentes amplas. Porém, na maioria das cidades onde o PSOL terá candidaturas de peso (São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói, Belém e Porto Alegre), o principal concorrente que se vislumbra hoje não vem do bolsonarismo.

Formalmente, a resolução votada limita o escopo das alianças à “esquerda e centro-esquerda”, mas com possíveis “exceções”. Mas a pré-campanha de Boulos já fez negociações com Avante e Solidariedade (esse último fechou com MDB).

Hegemonismo total adiado

Havia uma questão que estava em aberto até o último momento no congresso: a divisão dos principais cargos. Como dito, o objetivo do campo majoritário era acabar com os resquícios de acordo entre correntes que possibilitou a formação do partido e estabelecer um domínio hegemônico.

Além disso, o campo majoritário apresentou no último momento a proposta de suspender o acordo vigente desde do congresso de 2013, que incluía a presidência da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco na ordem de chamada na divisão dos cargos da executiva. Com essa manobra, o campo majoritário ficaria com os três principais cargos. Essa proposta não foi aceita pela Insurgência, uma das correntes do campo Semente (as demais correntes desse campo aceitaram a manobra), que compõe o campo majoritário “PSOL de Todas as Lutas”, e isso levou a um impasse no congresso no sábado à tarde. O congresso foi suspenso e só foi retomado com forte atraso no domingo, quando foi retirada essa proposta, que será discutida no próximo congresso.

Tudo isso contribuiu para a tensão no congresso e o episódio de confronto físico se deu justamente como reação às falas duras e justas da oposição no ponto sobre funcionamento partidário.

Na votação das chapas, o campo majoritário conseguiu a maioria de dois terços com a abstenção de três votos do grupo de Franklin Oliveira da Bahia, da tese “Coletivo

de Independentes e KAAWEE” que estava com a oposição.

Papel do “Agora é hora de ocupar as ruas”

O campo formado ao redor da tese “Agora é hora de ocupar as ruas” (assinada pela LSR, junto com APS/PSOL que Ousa Lutar, Alicerce, Centelhas, Rebelião Ecossocialista e Revolução Ecossocialista), teve uma atuação importante no congresso. Boa parte das resoluções da oposição foi com base nas propostas elaboradas pela nossa tese.

Foi importante ter um campo distinto dentro da oposição, já que há grandes contradições também no interior da oposição. O MES e Fortalecer tinham, por exemplo, votado a favor da federação com a Rede e também da resolução ambígua de relação com o governo Lula. Esses grupos também atuaram junto com o grupo de Franklin Oliveira, que defende a participação no governo Lula e tinha cargo no governo do PT da Bahia (até o congresso estadual votar pela saída do governo Jerônimo). 

A nossa Tese  apresentou também uma resolução separada sobre conjuntura internacional, já que o resto da oposição não concordava em apresentar uma resolução que condenasse o Putin pela guerra na Ucrânia, além de se opor também à OTAN.

Continuar construindo as lutas e uma alternativa socialista

O PSOL ainda tem um papel de destaque como alternativa de esquerda no país e seus militantes jogam um papel importante nas lutas, como vimos recentemente na greve contra as privatizações e São Paulo, a luta pela legalização do aborto, contra o marco temporal e a violência policial racista.

Acreditamos na necessidade de ter um partido que seja porta-voz das lutas e é nelas que vamos fortalecer uma alternativa, apostando na luta da classe trabalhadora, na independência de classe e num programa socialista. Para travar essa luta, será necessário construir um polo revolucionário coerente no partido, mas que também construa nas lutas da nossa classe. Faça parte dessa luta!