“O Brasil nunca mais será o mesmo” – 10 anos das Jornadas de Junho de 2013

“O Brasil nunca mais será o mesmo”. Em 20/06/2013, escrevi para mim mesma um registro sobre o dia, com esse título. Eu era uma jovem militante da LSR e morava em Natal, RN. Era a primeira vez que eu, e toda uma geração, participava de um movimento de massas daquela proporção. De fato, o Brasil não foi o mesmo, e não há ponto de retorno para antes de 2013. Afinal, devemos almejar ou temer por um “novo” Junho?

A expressão “Jornadas de Junho em 2013” foi cunhada por concentrar nesse período uma série de manifestações no Brasil, com milhões de pessoas na rua, impulsionadas pela luta contra o aumento da tarifa. Desde janeiro de 2013 ocorriam manifestações em várias cidades pela mesma pauta, como Porto Alegre, Goiânia e Natal, todas elas com características semelhantes: maioria juventude, com a presença de organizações políticas e movimentos sociais de esquerda, mas prevalecendo a ideia de um movimento horizontal e sem liderança, com decisões tomadas em assembleias em praças e universidades. Todas essas manifestações também foram marcadas por uma forte repressão policial e perseguição de manifestantes. 

As primeiras manifestações após o anúncio de aumento da tarifa em São Paulo e no Rio de Janeiro, no início de junho, também seguiam esse roteiro como em outras cidades, até o fatídico dia 13 de junho.

A tentativa de reprimir que mobilizou milhões

Nesse dia, houve uma dura repressão em São Paulo que foi amplamente divulgada pela imprensa (se antes insistiam em ignorar o que estava acontecendo, no dia seguinte o protesto foi capa do jornal). Foram mais de 200 pessoas detidas, algumas por portar vinagre (usado para aliviar o spray de pimenta), várias pessoas feridas, dentre elas uma jornalista da Folha que foi atingida por bala de borracha no olho – fato que também contribuiu para a imprensa noticiar. Houve forte repressão nesse mesmo dia nas manifestações que ocorriam no Rio de Janeiro e Porto Alegre. 

Foram cenas de guerra pelas ruas às vésperas da Copa das Confederações, e isso não foi um detalhe. O Governo Federal investiu bilhões em obras superfaturadas, enquanto cortou verbas para saúde, educação, moradia e outros direitos. Uma das palavras de ordem utilizadas era “Copa do mundo eu abro mão, eu quero mais dinheiro para saúde e educação”. 

A resposta truculenta da polícia e governos foi a gota que fez o copo transbordar. A partir de então, atos começaram a ser chamados para diversas cidades do Brasil, principalmente nas capitais, com pelo menos dois dias de manifestações – 17 e 20 de junho – coordenadas nacionalmente. Estima-se que mais de dois milhões de pessoas participaram.

A gota que fez o copo transbordar

Foi algo que surpreendeu e chacoalhou o país, mas olhando em retrospectiva era algo esperado. Desde 2010, eclodiram lutas em torno de Belo Monte, Jirau e Santos Antônio, como reação às obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que combinava um duro ataque aos povos originários e ribeirinhos com trabalho precarizado. 2012 foi um ano de onda de greves de servidores federais, principalmente nas universidades e pelo movimento estudantil. Houve uma onda de ocupações por moradia no início de 2013. Havia um crescente de greves, segundo o DIEESE, foram 554 em 2011, 877 em 2012 e 2050 em 2013!

Em 2013, para além dos atos contra aumento da tarifa, havia um contexto de criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, com remoção de famílias para obras da Copa, a entrada da polícia com as UPPs nas favelas do RJ, tendo a morte de Amarildo, ajudante de pedreiro, como um fato político que ganhou projeção. 

Não foi descolado também do que ocorria no mundo todo. A década de 2010 se abre com a Primavera Árabe, em 2011 ocorre o movimento dos Indignados na Espanha e o Occupy Wall Street nos EUA, 2012 a greve dos mineiros na África do Sul e protestos em massa no Sudão. Todas essas lutas com características parecidas – aparentemente espontâneas, lutas de massas com forte presença dos setores mais oprimidos – mulheres, jovens, negras.

Revolta do Busão em Natal

Esse crescente de lutas podia ser percebido também mais localmente. Em Natal, RN, o movimento Fora Micarla em 2011, contra a prefeita da época, ficou conhecido também como Primavera Potiguar, e foi um momento de despertar político para muita gente. Neste ano, o estado foi carinhosamente apelidado de Rio “Greve” do Norte, diante das greves e paralisações do setor rodoviário, polícia civil, educação entre outras categorias. Em setembro, em meio à campanha eleitoral, o anúncio de aumento da passagem gerou uma primeira articulação da Revolta do Busão, com lutas nas ruas, repressão e uma vitoriosa revogação do aumento. 

O resultado da Frente de Esquerda com PSOL e PSTU nas eleições 2012 foi qualitativo, pois mobilizou parte dessa juventude para discutir projeto e programa político, mas também expressivo em números: Amanda Gurgel, na época do PSTU, foi a vereadora mais votada na história de Natal, e junto com ela elegeu mais dois vereadores do PSOL. Em 2013, a Revolta do Busão vai às ruas para novos protestos – formava-se uma geração de ativistas que já vinha participando de todas essas lutas e uma consciência coletiva. 

As Jornadas de Junho foram poucos dias que aceleraram a história. Foi sintoma de algo muito mais profundo – desde a crise desse primeiro ciclo do PT até a crise de um sistema capitalista e suas instituições. Era o ápice de um processo que vinha ocorrendo, ao mesmo tempo que foi um desabrochar de outros novos processos. 

O significado das Jornadas de Junho foi disputado, a quente, em 2013 e segue em disputa dez anos depois. Longe de ser preciosismo ou capricho academicista ou da esquerda, discutir esse significado é fundamental para o futuro.   

As “Jornadas de Junho” em disputa – em 2013

Marcio Silva, militante da LSR e professor da UFPB, conta que estava se deslocando de São Paulo para a Paraíba nas vésperas do 20 de junho e viu uma manifestação passando em frente ao Aeroporto de Congonhas, na Avenida Washington Luís. Eram cerca de 100 pessoas, a maioria jovens do Grajaú, periferia de São Paulo. 

Em junho, e meses seguintes, se estivéssemos no metrô, em São Paulo ou em uma parada de ônibus em Natal, esperando para ir à manifestação com panfletos na mão, as pessoas pediam para pegar. As periferias estavam discutindo e agindo espontaneamente. As pessoas queriam saber mais, participar mais, e em um sentido geral, de forma bastante progressiva, ainda que houvesse grupos de direita, novos, inclusive com perfil de juventude, se organizando para disputar.

Eram milhares de pessoas que, de repente, com uma experiência concreta de que lutar vale a pena. Lutar faz a passagem não aumentar. Isso tudo em meio a um vácuo deixado pelo PT, que ao ocupar o governo deixou de cumprir um papel de organizar a luta e passou a cumprir um papel burocrático nos movimentos e entidades que dirigia. 

A polarização PT x PSDB que forçava muitos da esquerda a apoiarem o PT contra o PSDB, também foi colocada em questão já que, quando os atos começaram a ocorrer em São Paulo, no início de junho, Haddad e Alckmin, na época prefeito da capital e governador do estado, respectivamente, estavam em Paris candidatando São Paulo como sede da Expo 2020 e orquestraram juntos o aumento da passagem. Havia um vácuo, uma crise de representatividade, e diversas forças dispostas a ocupá-lo. Qual o programa, com quais métodos de luta e como se organizar, estavam em disputa naquele momento. 

“Não é por 20 centavos”, como se dizia os cartazes na época, expressava essa indignação generalizada e difusa. Então, ainda que não fosse, exatamente, por 20 centavos, era preciso que fosse, no sentido de definir qual o programa. Na ocasião, a direita já começava a enfatizar a pauta da corrupção, que foi central para as mobilizações desse setor nos anos seguintes. As pautas centrais para nós da LSR, naquela ocasião era (1) passe livre e tarifa zero, (2) a luta por saúde, educação e moradia, (3) contra criminalização dos movimentos sociais.

Desafiar os interesses da elite e empresários

Esses eram eixos que estavam mobilizando e partiam de necessidades concretas, desafiavam interesses de empresários e elite do país e expunha as contradições do governo do PT. Em relação aos transportes, estimava-se naquela época que eram 37 milhões de pessoas no Brasil excluídas do transporte público pelo alto preço das tarifas. Os aumentos não tinham justificativa, pois as pessoas sentiam no dia a dia a qualidade do transporte só piorando e ao mesmo tempo não havia transparência em relação à planilha das empresas contratadas. Em relação aos direitos sociais como saúde, educação e moradia, o governo federal seguia aplicando cortes, além das privatizações e terceirizações que impactaram nesses serviços. Vale ressaltar que em 2014 o governo Dilma reeleito já começa anunciando cortes na educação.   

“Sem partido”, ecoou nos dias 17 e 20 de junho pelas ruas das capitais do Brasil. Partidos de esquerda, que até então eram hegemônicos nas pequenas manifestações, foram hostilizados, em alguns locais agredidos e expulsos da manifestação. 

Os métodos de luta eram um debate vivo. Era estratégia da direita e da burguesia exaltar o apartidarismo, mas mesmo no setor mais progressista a ideia de cada um no protesto como um indivíduo, rechaçando organizações coletivas, era bastante forte. Assim, muitas das decisões ocorriam em espaços como fóruns, assembleias, plenárias. Nós interpretamos parte desse apartidarismo presente nos setores progressistas como reação às traições das direções burocratizadas, e esses espaços amplos eram oportunidade importante de provar, ombro a ombro, a que viemos. Ao mesmo tempo, uma escola de luta para toda uma juventude que estava participando de algo do tipo pela primeira vez, de como construir espaços democráticos.  

“A situação virou. Tentemos estar à altura”, concluía um companheiro no dia 21 de junho, após a maior manifestação desde as Diretas Já. Foi a primeira mobilização de massas que toda uma geração vivenciou. Explodiu em meio a um processo de reorganização da esquerda – a conjuntura não espera esses novos instrumentos da classe trabalhadora e da juventude ficarem prontos. Aliás, esses instrumentos, em si, não se constroem no vácuo – eles são forjados e testados na própria luta. 

Foi um processo que passou por fora de entidades partidárias, sindicatos, movimentos sociais. O Movimento Passe Livre, um pequeno grupo de jovens de São Paulo, foi chamado para se reunir com a presidenta Dilma, reconhecido como principal direção do processo.

Os sindicatos reagem à Junho

Embora poucos sindicatos estivessem presentes de forma organizada e em massa nas ruas nas Jornadas de Junho, esses atos ajudaram a fortalecer a luta sindical e a classe trabalhadora organizada entrou em cena após junho, no que foi chamado de “Jornadas de Julho”.  A burocracia sindical foi forçada a fazer algo após junho e o dia 11 de julho foi um Dia Nacional de Paralisação, convocado por oito centrais sindicais, incluindo a CUT (dirigida pelo PT). Estima-se que, nesta data, foram 66 bloqueios em rodovias federais. A paralisação envolveu trabalhadores do setor da indústria, do comércio e dos serviços e, em algumas capitais, como Porto Alegre e Belo Horizonte, houve paralisação dos trabalhadores do transporte público, o que afetou ainda mais as atividades econômicas. 

Naquele contexto, houve setores que tentaram colocar as Jornadas de Junho contra as Jornadas de Julho. Alguns exaltavam a primeira por colocar muito mais gente na rua, com uma postura debochada de minimizar a importância da segunda. Outros setores exaltavam o que houve em julho, alegando ser “a verdadeira” forma de protestar da classe trabalhadora.

Para nós da LSR, estava colocado conseguir reunir a melhor síntese das Jornadas de Junho com a melhor síntese das Jornadas de Julho, ou seja: mobilização de massas sem controle burocrático combinado com ação direta e organizada da classe trabalhadora. Como próximo passo para avançar na luta defendemos um Encontro Nacional dos Movimentos de Junho. Algo do tipo seria fundamental para reunir a melhor síntese de Junho e Julho e possibilitar dar passo à frente na construção de uma alternativa política e pela esquerda.

As “Jornadas de Junho” em disputa – em 2023

De entusiastas a refratários das Jornadas de Junho de 2013, é inquestionável a importância de discutir esse evento significativo que completa dez anos. Ainda vivemos sob o espectro dele. Desde então, se abriu um processo de polarização social que se desdobrou de várias formas. Hoje, muitos entusiastas na época observam com olhar mais pessimista, em decorrência do que aconteceu depois. 

Há a tentativa de minimizar os protestos ou taxá-los como algo desde o início destinado a ser capturado pela direita. Isso não se verifica, de diversas formas. Uma conexão direta entre 2013 e os protestos de 2015 e 2016, pelo impeachment da Dilma, ignora a composição social diferente – em 2013, mais jovens e um programa mais à esquerda, em 2015 e 2016, uma camada mais velha e classe média alta com uma pauta conservadora.

Também ignoram que, entre esses dois eventos houve eleição em 2014, em que Dilma foi eleita com atos na rua defendendo a “Dilma Guerrilheira”, pessoas vestidas de vermelho, uma das campanhas mais à esquerda que o PT fez após chegar ao governo. Dilma foi eleita dizendo que não atacaria direitos “nem que a vaca tussa” – mas a vaca tossiu logo após a posse com o anúncio de ataques a direitos trabalhistas e previdenciários.

Nessa eleição, o PSOL, com Luciana Genro, teve uma votação expressiva (a segunda maior da história do PSOL). Infelizmente, não houve unidade da esquerda para apresentar um programa que expressasse algo maior do que esses próprios partidos institucionais, convocando os movimentos e organizações que estiveram nas ruas para construir uma alternativa. PSTU e PCB saíram com candidaturas próprias. 

Junho impulsionou movimentos

Um outro fator ignorado é como Junho catapultou os movimentos de luta contra as opressões para outro patamar. Também nas periferias, com manifestações mais expressivas reagindo à violência policial e por direitos. A pauta de direito à cidade, que foi suscitada com os megaeventos com a Copa 2014 ganhou projeção com as Jornadas de Junho, se propondo discutir para quem é a cidade, algo que refletiu em maior organização popular – desde MTST e outros movimentos de ocupação, até ativismo nas favelas e periferias. 

Ainda, foram dezenas de ocupações de Câmaras Municipais em 2013, os protestos contra a Copa em 2014, a luta dos secundaristas ocupando escolas em diversas cidades em 2015-2016, entre outros movimentos. As Jornadas de Junho trouxeram à tona o tema do passe livre que, até então, era tratado como utopia juvenil. O tema foi pautado em diversas Câmaras Municipais e foi aprovado o passe livre estudantil em algumas cidades importantes, como São Paulo.

Por fim, as lutas defensivas enfrentando ataques importantes como terceirização, teto dos gastos, reforma trabalhista e da previdência foram muito importantes, sendo a mais significativa a greve geral em abril de 2017.

Pelo que se apresenta de forma mais evidente aos nossos olhos, a vitória da direita prevalece após Junho de 2013. Passamos por importantes derrotas que desmoralizaram e desanimaram a classe trabalhadora. Mas, é preciso olhar um caldo subterrâneo que começou a ser encorpado em 2013 e segue cozinhando até hoje.  

Um sistema em crise – um mundo novo a construir

É possível dizer que a situação hoje é pior que em Junho de 2013 – os serviços públicos mais sucateados, o custo de vida, incluindo as passagens de ônibus, está mais caro, o trabalho mais precário. O fator subjetivo – a consciência de que lutar e se organizar coletivamente é fundamental para ter vitórias – é um elemento que não é secundário. Não há luta sem pessoas de carne e osso dispostas a construí-las, a aprender com experiências concretas, de conquistas e de derrotas também.

Não há revolução sem o risco da contrarrevolução. Sequer haverá luta por reformas, conquistas imediatas, sem a ameaça de contrarreforma. As mulheres experimentam isso ao redor do mundo, com conquistas e ataques relacionadas ao direito ao aborto. Mas, não é verdade que ficar quieto nos garantirá alguma proteção. A estagnação das lutas não levará a uma estabilidade, pois a instabilidade é justamente a marca dessa “era da desordem” que vivemos globalmente. 

A ideia de evitar um “novo” Junho porque a direita irá capturar, até estarmos prontos – é insustentável. Não é questão de “se”, mas “quando”. Embora não seja possível prever como imediato, um momento como esse irá ressurgir e, a esquerda que hoje tenta frear as lutas, ou se alia ao “mal menor”, só está adiando a construção uma ferramenta capaz de fazer com que, nesse contexto que surgir, generalize-se e seja vitorioso. 

Para garantir que novos Junhos sejam vitoriosos é necessário construir uma força preparada para levar a luta até às últimas consequências, rompendo as amarras desse sistema capitalista e defendendo um projeto alternativo capaz de substituí-lo!

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