Alagados do Pantanal ocupam terreno na luta por moradia
“Aqui estão as famílias vítimas do governador Serra, que na enchente perderam tudo, mas não a coragem”. Essa frase está estampada logo na entrada, numa faixa, no acampamento Alagados do Pantanal, uma ocupação de trabalhadores num terreno, até então abandonado, no bairro do Jd. Curuçá, São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo. Trabalhadoras/es que foram criminosa e propositalmente alagados, em vários bairros da grande pantanal de SP, impulsionados pelo movimento Terra Livre – Campo e Cidade, ocupam essa área desde a noite do dia 17 de abril, e contam atualmente com cerca de 80 famílias cadastradas e participantes do processo. Uma gente que tem transformado seu sofrimento e tristeza, em indignação, esperança e luta.
Indignação:
No início de dezembro do ano passado, com as chuvas de verão, ficamos aproximadamente 70 dias dentro da “água” do Tietê (e o que mais estivesse nela), andando em andaimes dentro de casa, com água até o umbigo, peito. Vários perderam empregos, móveis e eletrodomésticos, sem contar aqueles que perderam as vidas. As recentes inundações naquela região ultrapassam em muito a questão ambiental, pois foram causadas diretamente pelo governo Serra que fechou a barragem da Penha e abriu as do Alto Tietê.
Intimidando e deixando a população no desespero para forçar a saída de suas casas, tudo isso para demolir essas moradias e “limpar terreno” para a construção do Parque Linear Várzeas do Tietê, importante marco nas campanhas eleitorais e para a Copa do Mundo 2014. Denunciamos esta política fascista de “desenfeiar” a cidade, tirando a pobreza e o povo do campo visual da burguesia e de seus turistas.
Numa situação de calamidade pública, em que a imagem dos governos Serra-Kassab poderia sair arranhada, a população é criminalizada pelas enchentes. Os argumentos na mídia vão desde alegações que a população suja e entope ruas, bueiros e rios e causa a inundação, até o ponto de nos chamar de irresponsáveis por termos “escolhido” locais tão insalubres e perigosos para morar.
E justamente essa situação torna-se favorável aos governos quando muitos setores da sociedade cobram do Estado uma intervenção para “salvar” as pessoas “que não querem abandonar suas casas”, mas que podem morrer “afogadas” ou com “doenças” nas áreas de risco. Cria-se assim a legitimidade para a retirada forçada das pessoas de seus lares.
O governo Serra inunda a região e Kassab faz o cadastramento para o bolsa aluguel e destrói as casas. Ficamos reféns deles, que nos oferecem uma bolsa-despejo, disfarçada de bolsa aluguel, benefício que já acabou para muitos, que estão retornando ao Pantanal.
Não bastasse o terrorismo de Estado aplicado contra os “pantaneiros”, cria-se um quadro capaz de impulsionar dois setores estratégicos da economia burguesa: construção civil e bancos. Explico: o governo está demolindo nossas casas para nos vender “apertamentos” do CDHU. As casas prometidas pelos governos não são para morar, são para comprar. E mesmo o governo Lula sai daí beneficiado, pois é largamente propagandeado o programa “Minha casa, minha vida”. Nossa resposta: “Minha casa, minha luta”!
Luta:
Muitos deixaram suas casas. Outros tantos pegaram o bolsa-aluguel e agora veêm suas moradias sendo derrubadas. A água baixou e as pessoas retornaram e retomaram suas vidas. E à medida que souberam da má-fé dos governos com suas táticas, aumentava também a sua indignação e sede de justiça. Houve reuniões – duas, três, incontáveis. Trabalhadoras/es que viram suas coisas boiarem, alguns após 30 anos no bairro, começaram a organizar uma ação radicalizada de luta urbana, a ocupação de um terreno abandonado, ainda na zona leste.
Cabem aqui alguns esclarecimentos. Os ocupantes são trabalhadoras/es, empregados e desempregados, donas de casa, além dos apoiadores e dos militantes do movimento. A ocupação de prédios ou terrenos urbanos é historicamente uma forma legítima de luta pela moradia, devido às desigualdades sociais na distribuição do espaço urbano, especulação imobiliária, etc. Não somos invasores, vândalos, somos trabalhadores em busca de condições dignas de vida, que são obrigações do estado fornecer. Não moramos na várzea do rio porque gostamos do cheiro do Tietê, mas porque não há políticas de habitação para quem ganha pouco e somos jogados cada vez mais para as periferias. Além disso, os terrenos são muito caros, os salários muito baixos.
Sobre a questão jurídica, tomo a liberdade de reproduzir as palavras do militante Delze Laureano: “juridicamente o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto, para esse sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade. Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Se ninguém tem sua posse, como conseqüência lógica, não pode o Poder Judiciário, baseado somente no registro, dar as garantias de ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante ao detentor do título de domínio, o direito de indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão no imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade” (Folheto Terra Livre, Minas Gerais, abril 2009, “Invasão ou ocupação de terras?”).
Na noite de 17 de abril, aproximadamente 50 famílias se reuniram. Em meio a medo e incertezas, todas seguiram em frente rumo ao seu objetivo: ocupar um terreno, pressionar o poder público, fazer as denúncias devidas. Naquela noite, materializada na ocupação, tristeza, sofrimento e medo deram lugar à esperança.
Um fato que é necessário ressaltar, foi uma interessante questão de gênero na ocupação. No ato de entrada das famílias no terreno, o número de mulheres era visivelmente superior ao de homens. Durante os dias que se sucederam, essas mulheres conseguiram convencer muitos dos seus companheiros que aquela era a resposta para dar a seus problemas, que a solução estava na luta. É vital lembrar do caráter central e do peso que as companheiras mulheres jogaram neste episódio da luta urbana.
Na manhã seguinte, após panfletagem e conversa com os moradores vizinhos à ocupação, recebemos amplo apoio: 9 de cada 10 famílias eram simpáticas à ocupação.
No acampamento, todo o trabalho foi divido em comissões. Quase todos os dias há assembléia, começando com o balanço da luta e construção. Percebemos que além de nossas pautas políticas, uma enorme tarefa é a paulatina quebra do individualismo, do personalismo (tão vitais ao capitalismo) e a construção da própria coletividade, das vivências, da partilha.
Houve repressão da polícia, que três dias depois do início da ocupação, resolveu não permitir que entrasse água e comida. Um absurdo! Só foi possível amainar esse conflito graças à ação do deputado estadual Raúl Marcelo (PSOL-SP), que intermediou a situação.
1) O fim imediato do processo de remoções e de derrubada das moradias;
2) Fim do terrorismo e da falta de respeito aos direitos humanos, nas ações do governo na área inundada;
3) Construção imediata das casas para abrigar as famílias atingidas e concessão sem custo, em troca das casas removidas;
4) Indenização pelos prejuízos causados pela enchente, resultado do fechamento da barragem da Penha e abertura das barragens do alto Tietê;
5) Desapropriação do terreno ocupado na Vila Curuçá e linhas de crédito para material de construção, pois nós mesmos faremos nossas casas!
Há muito a ser construído ainda. Há muitos valorosos militantes e apoiadores na luta e quem quiser se aconchegar, será muito bem vindo.
Na luta, nós vamos resistir! Pela nossa casa, pela moradia, pela terra livre lutaremos todo dia!