100 DIAS: Lula e a política econômica
Uma das expectativas com a vitória de Lula era a realização de um “revogaço” das medidas reacionárias e retrógradas implementadas pelo desgoverno de Bolsonaro. Várias medidas importantes foram tomadas, como aumento do salário mínimo, da bolsa família, a intervenção contra o garimpo e o desastre ambiental e social na TI Yanomami, entre outros, o que dá uma sensação de alívio.
Mas sem uma luta para superar os entraves postos pelo econômico e político esse alívio será temporário e limitado. Isso fica muito evidente vendo a nova política econômica proposta pelo governo Lula, o novo “arcabouço fiscal”, que mantém a lógica de teto de gastos e austeridade para garantir o pagamento da dívida pública aos tubarões do sistema financeiro.
Desde as eleições houve uma campanha, juntando a mídia burguesa, o mercado financeiro e o Banco Central, para garantir que o governo Lula, mais suscetível a pressões populares, não fuja da “disciplina orçamentária” e deixe os gastos subirem.
Apesar de Lula manter um discurso mais à esquerda, enfatizando a inclusão social, “colocar o pobre no orçamento”, atacar o presidente do Banco Central Campos Neto pelos juros altos e dizer que os ricos têm que pagar mais impostos, há pouco avanço concreto de fato até agora. Pelo contrário, a lógica permanece a de construir uma governabilidade com um congresso dominado pela direita, e não de ir para um necessário enfrentamento com os poderosos interesses do mercado.
Novo arcabouço fiscal – um teto mais flexível
O texto concreto da lei será apresentado nos próximos dias, mas as principais propostas já foram apresentadas. A ideia é substituir o teto de gastos da EC 95, que impedia que os gastos federais subissem além da inflação.
A nova proposta é mais flexível, permitindo um aumento real dos gastos de no máximo 2,5%, mas limitado a 70% do aumento da arrecadação do ano anterior. Por exemplo, se a arrecadação sobe 2% esse ano, os gastos poderão subir 1,4% no próximo. Se a arrecadação não crescer, ou cair, os gastos poderão ter um ajuste real de até 0,6%.
A lógica é garantir o pagamento de juros e amortizações da dívida pública e aplacar os mercados. Junto com o limite de gastos, haverá a meta de superávit primário (que não inclui os gastos com a dívida). A meta é de um a crescimento gradual, de um déficit primário de 0,5% do PIB até um superávit de 1% em 2026, com uma margem de tolerância de 0,25%. Se o superávit for maior, o excedente poderá ser usado para investimentos, se for menor, os gastos do ano seguinte só poderão crescer somente 0,5%.
O mercado ficou feliz com a proposta, dando seu aval com alta na bolsa e baixa no dólar. Longe de ser um revogaço, mantém a lógica neoliberal e traz uma série de armadilhas.
O teto de gastos anterior já se mostrou totalmente falho. Ao mesmo tempo que serviu para implementar cortes profundos, como vimos na educação, proteção do meio ambiente ou programas contra a violência contras as mulheres, o teto teve que ser ignorado com os gastos da pandemia. O governo Bolsonaro também ignorou o teto no ano eleitoral, em uma tentativa descarada de comprar uma vitória eleitoral. O correto seria revogar, ponto.
O limite de 2,5% é muito baixo, comparado com a necessidade de investimentos públicos para começar a sanar a dívida e déficit social e ambiental no país. Durante os governos Lula de 2003-2010, os gastos cresceram em média 5,2%, o que permitiu várias das reformas implementadas, junto com um aumento real do salário mínimo, e ainda sim foram insuficientes. Durante o governo Dilma o crescimento foi de 3,5% e mesmo durante o FHC os gastos subiram mais que o teto proposto.
A expectativa é que com a revogação da EC 95, os pisos constitucionais para os gastos com educação (18% da arrecadação líquida) e saúde (15%) poderiam voltar a valer. Os gastos com emendas parlamentares (2%), e outras medidas fixadas constitucionalmente, como auxílio ao piso da enfermagem e o FUNDEB, também estariam fora do novo teto. Então se a arrecadação cresce 10% em um ano bom, esses gastos também sobem 10%, deixando pouco espaço para outros gastos, incluindo possibilidade de reposição para o funcionalismo público, para não falar de contratações de novos funcionários. Há um grande déficit de funcionários públicos, levando a longas filas no INSS, por exemplo. Em 2022 o número de servidores do Poder Executivo era 569 mil, comparado com 631 mil em 2018, e menor também que em 2010, quando havia 580 mil.
O governo propõe também um piso para os investimentos, que será de 70-75 bilhões, incluindo os gastos da retomada do Minha Casa Minha Vida. É importante a retomada de investimentos públicos, e seria necessário ainda mais, mas é mais um concorrente pelos recursos estreitos de gastos com esse limite.
O limite de 0,6% para anos de crise, junto com o limite de 50% se o superávit não for atingido, impõe uma austeridade justamente quando os gastos públicos são mais necessários. Além dos anos da pandemia, onde os gastos subiram muito além disso, temos o exemplo da crise de 2008, durante o segundo mandato de Lula. A arrecadação caiu em 2009, mas os gastos públicos subiram 16,3% em 2010, o que foi fundamental para amenizar os efeitos da crise e para a retomada. Agora não existiria essa possibilidade.
Cadê a taxação dos ricos?
Para diminuir o déficit e alcançar um superávit, Haddad propõe medidas para aumentar a arrecadação entre 100 e 150 bilhões de reais. A ideia é ampliar a base tributada, fazendo com que empresas que hoje não pagam comecem a pagar, ou diminuindo isenções. Haddad tem mencionado apostas e comércio de eletrônicos, por exemplo. Mas isso ainda é bastante incerto.
Segundo uma nota técnica das Consultorias de Orçamento da Câmara e do Senado sobre o Orçamento de 2023, as renúncias fiscais devem chegar a R$ 456 bilhões esse ano – grande parte implementada pelos governos do PT. Nem todas são ruins, a maior parcela é direcionada ao Simples, que apoia pequenas empresas, ou a isenção do imposto de renda, que deveria aumentar para cobrir uma parcela maior daqueles com baixa renda, mas muito vai para grandes empresas, e deveriam ser revogadas.
A ênfase de Haddad em não implementar novos impostos ou aumentar alíquotas aparenta descartar a possibilidade de taxar grandes fortunas, altíssimos salários e lucros de grandes empresas, o que deveria ser o principal caminho para bancar os gastos sociais.
Privatizações
Não devemos esperar nenhum revogaço das privatizações. Até mesmo antes de assumir, o vice Alckmin deu luz verde à privatização do metrô em Belo Horizonte, que recentemente se concretizou. Apesar de Lula chamar a privatização da Eletrobras de “bandidagem”, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), a trata como “consolidada”. Já está bem evidente quem lucra com isso. A empresa vai elevar em 8 vezes a reserva para remunerar executivos, com diretores ganhando aumento de R$ 60 mil para R$ 360 mil mensais!
Mas o modo petista de privatizar não é através da venda de estatais. Lula mandou barrar estudos de privatização dos Correios, EBC, Petrobras (além do que já é privatizado) e outras, mas também não há planos de reverter o que foi privatizado. O foco é nas Parcerias Público-Privadas, onde o poder público entra com boa parte do investimento e o privado com sua sede por lucro.
Já que as principais metas econômicas são voltadas para garantir o pagamento da dívida, esse sim não tem limite, o que resta não é suficiente para metas sociais. Aí se gera a necessidade de envolver o setor privado para resolver problemas sociais, o que não dá certo. O interesse por lucro é frio e desumano, mas também não resolve os problemas reais. Vemos isso na área de água e saneamento. Ao invés de revogar o novo Marco do Saneamento, implementado no governo Bolsonaro, o governo Lula anunciou um decreto para ampliar a participação de interesses privados, com a finalidade de atrair mais investimentos, tirando o limite de participação que era 25%. Isso colocando que as metas de universalização do saneamento até 2033 não seria possível só com dinheiro público, o que se torna uma profecia autorrealizadora com a proposta de limite de gastos e falta de taxação dos ricos e grandes empresas.
Sabemos que os investimentos privados não são o caminho. Um levantamento de dados internacionais da Public Services mostra que o setor de água e saneamento é o que mais teve reestatizações nos últimos anos no mundo, por falhas nos serviços privados, além de em geral tornar os serviços mais caros.
Juros, bancos e a dívida
O governo tem centrado bastante fogo criticando os altos juros do Banco Central, os mais altos do mundo. No centro da crítica está o presidente do Banco Central, Campos Neto, indicado por Bolsonaro, que de fato tem usado os juros para chantagear o controle dos gastos. Um dos objetivos do novo arcabouço fiscal é mostrar que os gastos estão controlados e que por isso os juros podem ser reduzidos agora, mas as previsões do mercado não apontam uma redução dos juros mais baixos.
É preciso ir além e contra a lógica do mercado, que lucra horrores com os juros altos. Primeiramente, é necessário revogar a autonomia do Banco Central implementada em 2021. Mas, isso não é suficiente. Os juros já eram astronômicos antes disso. É necessário tirar o controle do sistema financeiro de mãos privadas, com a estatização dos bancos e grandes instituições financeiras sob controle e gestão dos trabalhadores. Se não o “mercado”, na verdade um punhado de ricos e especuladores, continuará a ter o poder de chantagem sobre qualquer governo.
Isso também está ligado ao tema da dívida pública, que é um sistema de transferência de dinheiro público nosso ao setor privado. É uma dívida que precisa ser auditada, onde grande parte teve início duvidoso, já foi paga várias vezes, mas continua crescendo com juros sobre juros. O pagamento da dívida deve ser suspenso durante a auditoria, garantindo o pagamento somente a pequenos credores. Assim poderemos liberar recursos para bancar os necessários investimentos sociais.
Governabilidade até a morte?
Há outras medidas implementadas desde o governo usurpador de Michel Temer que deveriam ser revogadas, como a reforma da previdência (que o governo não quer tocar) ou a trabalhista (que talvez terá alguns ajustes).
Além da chantagem do mercado, obviamente há o problema da composição do congresso. Mas a linha do governo é de jogar o jogo de um sistema corrupto, onde pequenos avanços são pagos com grandes concessões que abrirão para novas derrotas.
Esse foi o resultado dos 13 anos de governo do PT, que foi em um período mais favorável economicamente do que temos pela frente. Ao não romper com as estruturas de poder, quando a crise se agravou, o caminho se abriu para o fortalecimento da extrema-direita.
Ao construir seu governo novamente com alianças com a direita, torna o governo um refém da lógica do sistema. Nem um dos aspectos mais odiosos da gestão anterior do congresso (que permanece na figura de Arthur Lira, em acordo com o governo), o orçamento secreto, tem sido revogado completamente. 9,8 bilhões das emendas do relator foram revertidos aos orçamentos dos ministérios após o STF julgar que o orçamento secreto era inconstitucional. O governo, sob forte pressão do congresso, quer agora transformar esse montante em uma nova forma de emenda, só com a diferença que seu destino seja transparente. É uma forma do governo conseguir comprar apoio nas votações, mas pelo preço de fortalecer a lógica das negociatas e de serviços fundamentais da população continuarem a ser vinculado a influência de deputados individuais, perpetuando um sistema clientelista e corrupto, mesmo se eliminar alguma parte da corrupção na contratação e execução por empresas privadas.
Outras metas, outros tetos, outra lógica que possa inspirar à luta e mudar a correlação de forças
Muitos enxergam os limites do governo e não vêem com entusiasmo as perspectivas de mudanças mais profundas. Há medidas pontuais positivas e uma sensação de alívio de se livrar de Bolsonaro, ainda mais após a tentativa de golpe em 8 de janeiro. Mas os limites são bem visíveis, e o argumento que mais se escuta é “o governo está fazendo o que pode”, “não tem como fazer mais com esse congresso”, etc. O problema é que se deixar as negociatas e governabilidade do sistema atual ditar os limites, estaremos aprofundando o problema. Não vai ser possível fazer mudanças suficientes para eliminar o risco de um retorno da extrema-direita ao poder.
Temos que começar reconhecendo que lutamos contra um sistema podre. O congresso, o centrão, Arthur Lira, o STF, são representantes do sistema e não nossos amigos. Lula constrói sua governabilidade defendendo o sistema e tentando fazer acordos com uma ala dos mesmos partidos que ontem apoiava Bolsonaro. Isso deixa espaço ao bolsonarismo para se colocar como “antissistema”, que não são.
Precisamos partir das principais metas urgentes sociais e reverter a lógica. Queremos empregos, moradia, comida boa e barata, água e saneamento, educação, saúde e restaurar o meio ambiente. Começamos aí, a última prioridade é pagar juro para rico. Nossos tetos devem ser para riquezas, supersalários, propriedade de grandes empresas e lucros.
Se o governo colocasse propostas concretas para medidas que são irreais para o mercado e o sistema político, mas necessidades urgentes para a população, seria possível mobilizar apoio nas ruas. A real mudança virá com uma retomada das lutas em confronto direto com as estruturas de poder, mas é algo que precisa ser construído. As negociatas do governo não ajudam, elas desanimam e desestimulam. Por isso é importante manter a independência dos movimentos sociais e dos partidos da esquerda diante ao governo e da lógica das negociatas, construindo nossas pautas e programa de mudança real, com uma alternativa socialista, apostando na construção das lutas, unificando as pautas e calendários de luta.
- Anulação do teto de gastos e outras medidas que impõem uma política de severa austeridade, que tem como objetivo cortar os serviços públicos, transferindo recursos para os ricos e o setor privado!
- Anulação da reforma da previdência que estabelece idade mínima para se aposentar, aumenta o tempo de contribuição e retira direitos.
- Não à reforma trabalhista que abre para retirada de direitos conquistados através do negociado prevalecendo sobre o legislado. Não às terceirizações e precarização das relações de trabalho!
- Reestatização das empresas privatizadas com controle democrático dos trabalhadores! Não às privatizações de empresas e serviços públicos, incluindo através de PPPs, concessões, terceirizações, etc., incluindo o Marco do Saneamento.
- Não pagamento das dívidas interna e externa aos grandes capitalistas para garantir os recursos necessários para os serviços públicos e o desenvolvimento econômico com igualdade social! Auditoria das dívidas controlada pelas organizações dos trabalhadores!
- Pela taxação das grandes fortunas, dos ricos e dos lucros das grandes empresas!
- Estatização do sistema financeiro e grandes empresas que controlam a economia sob controle dos trabalhadores!