O mundo da “permacrise”
“Permacrise” foi escolhida a “palavra do ano de 2022” pelo dicionário Collins. A palavra é definida como “um período prolongado de instabilidade e inseguranças” e descreve bem a situação global atual, marcada por guerras, fome, pandemia, aumento de preços e iminente crise econômica, além da crescente crise climática. Uma nova crise agora se aproxima, que pode combinar crise econômica com inflação alta, podendo ser ainda mais grave que a “estagflação” dos anos 1970. Tudo isso são aspectos do impasse do sistema capitalista, levando a um aprofundamento de uma crise social e política.
A empresa de pesquisas Ned Davis, que conseguiu acertar nas previsões das crises em 2008 e 2020, afirma que a chance de uma nova recessão global é de 98%.
A economia mundial já estava caminhando para uma nova crise antes da pandemia. Os fatores que sustentaram o crescimento do último período, como a globalização e aumento do comércio mundial, o crescimento na China e o acesso a crédito barato, já estavam se esgotando.
A pandemia, a nova guerra fria, a guerra na Ucrânia e os crescentes efeitos das mudanças climáticas são novos fatores com consequências profundas para o próximo período.
A volta da inflação e risco de crise de dívidas
Um fator imediato que está levando o mundo a uma nova crise é a volta da inflação, após um longo período com preços relativamente estáveis. Nos EUA e Europa, a inflação é a mais alta em 40 anos. Na Turquia, a inflação agora está em 85%, e na Argentina, deve superar 100% esse ano.
São vários fatores por trás do aumento dos preços, mas todos são reflexos do fato que o capitalismo é um sistema baseado na competição desenfreada pelo lucro, levando à anarquia do mercado.
Um fator importante por trás dos preços mais baixos tem sido a globalização. O principal aumento da capacidade das indústrias tem sido em países com salários extremamente baixos, na China, no sudeste asiático, América Latina e etc. Com base nisso foi lançada uma ofensiva também contra os salários nos países capitalistas mais ricos. Agora vemos uma reversão dessa tendência, com crescimento do protecionismo, ritmo mais lento do comércio mundial e desacoplamento das economias da China e dos EUA.
A principal ferramenta para frear a inflação no arsenal capitalista é aumentar os juros, provocando desaceleração, crise e aumento do desemprego, afetando em cheio o povo trabalhador.
A política dos governos para superar as últimas crises profundas, de 2008 e 2020, tem sido de aumentar o acesso a crédito barato, com enormes pacotes de estímulo para o sistema financeiro. O total de dívidas em nível global, públicas e privadas, tem chegado a um nível recorde, ultrapassando 300 trilhões de dólares pela primeira vez. O aumento de juros que vemos agora na Europa e EUA, na situação atual de endividamento recorde, pode desencadear uma crise mais profunda.
Pandemia e guerra agravaram os problemas
Além da crise aguda causada pelos lockdowns, a pandemia gerou problemas nas cadeias de abastecimentos e gargalos que ainda não foram superados. O preço de transporte por navios de contêineres subiu dramaticamente.
Sobre esse cenário vieram ainda os efeitos da invasão da Rússia na Ucrânia. Esses países são importantes exportadores de grãos e fertilizantes e a guerra contribuiu para o aumento no preço dos alimentos. O embargo econômico contra a Rússia e a resposta do governo Putin levou a uma crise energética na Europa, região que depende em grande parte do fornecimento de gás da Rússia para sua indústria e aquecimento das casas. As estimativas são de que a diminuição do fornecimento de gás tenha custado 5% do PIB para a Itália e 3,3% para a Alemanha. Cresce o número de domicílios que enfrentam a pobreza energética (sem conseguir aquecer seus lares) na Europa e há estimativas de que 75% das famílias na Grã Bretanha serão afetadas nesse inverno.
China pisando no freio
A China não deve alcançar sua meta de crescer 5,5% esse ano, o que já era a meta mais baixa em 30 anos. No último trimestre, a economia só tinha crescido 3,9% em comparação com um ano atrás.
Vários fatores contribuíram para a desaceleração na China. Os efeitos da nova guerra fria com os EUA têm afetado investimentos e a exportação. A China representava a metade das importações da Ásia para os EUA em 2018, caindo agora para pouco mais que um terço.
O mercado imobiliário, setor chave da economia doméstica, enfrenta uma crise há um ano. Além do estouro do que pode se mostrar ser a maior bolha imobiliária da história, o país enfrenta uma crise demográfica, com uma diminuição da população, afetando o mercado imobiliário, consumo e oferta de mão de obra.
A política de Covid Zero de Xi Jinping, com lockdowns severos de regiões inteiras diante de quaisquer novos casos da doença, tem afetado fortemente a economia.
O congresso do partido “comunista”, o PCC, confirmou o inédito terceiro mandato de Xi, que na prática tomou o total controle do partido e do Estado. Essa é uma tentativa de centralizar o poder para enfrentar as múltiplas crises, que não temsaída dentro do capitalismo de Estado burocrático de Xi.
A tomada de controle e abolição dos limitados direitos democráticos em Hong Kong é um alerta para Taiwan, que é mais um ponto de tensão com os EUA, já que Taiwan é um fornecedor chave de semicondutores. A guerra fria entre EUA e China é um fator chave por trás de todos os processos no mundo de hoje, com os interesses geopolíticos se impondo sobre os interesses econômicos imediatos.
Crescentes efeitos da crise climática
Os últimos oito anos foram os mais quentes da história, diz o relatório da ONU para a cúpula do clima no Egito em novembro, a COP27. “Estamos na rodovia para o inferno climático, e ainda com o pé no acelerador”, constatou António Guterres, secretário geral da ONU.
Os efeitos das mudanças climáticas esse ano foram dramáticos e tendem a piorar. As secas atingiram a produção de alimentos na Europa, China, África e outros lugares. Os níveis baixos dos rios em várias regiões vêm afetando os transportes fluviais e a produção de energia. De outro lado, vimos chuvas mais intensas e enchentes, como no Paquistão, que deixou um terço do país submerso.
O aumento dos preços dos alimentos tem levado ao aumento da fome. Segundo o Índice Global da Fome, a população em 44 países passa por níveis “alarmantes” de fome, incluindo Chade, Madagascar, Iêmen, Síria, Burundi, Sudão do Sul e Somália. São 828 milhões de pessoas subnutridas no mundo, um número que vinha crescendo já antes da pandemia.
Crise política
Nessa situação de crise permanente, a polarização social continua a se aprofundar, com o surgimento de fenômenos de extrema direita como Trump e Bolsonaro. Na Suécia e Itália, novos governos com uma maior influência da extrema-direita têm chegado ao poder, lançando ataques a imigrantes. Em Israel foi realizada a quinta eleição em quatro anos, com a volta do direitista corrupto Netanyahu ao poder, com apoio de reacionários e racistas. Na Grã Bretanha, o governo de Liz Truss do partido conservador, que assumiu após a renúncia de Boris Johnson, só durou 45 dias. Ela foi substituída por Rishi Sunak, um político mais rico que o rei!
Nos EUA, o Partido Democrata do presidente Biden parece ter perdido o controle majoritário do congresso, apesar da “onda republicana” não ter se concretizado. De qualquer forma, o país mais poderoso do mundo está longe de qualquer tipo de estabilidade.
Por outro lado, temos visto vitórias importantes da centro-esquerda na América Latina. Porém, esses novos governos não têm tido uma política de enfrentar os limites do sistema. Uma repetição da política de conciliação de classes em uma situação de crise e polarização política profunda irá levar a novas derrotas. Já vimos o governo de Pedro Castillo no Peru entrar imediatamente em crise, a derrota da nova constituição sob Gabriel Boric no Chile e o aprofundamento da crise na Argentina sob Alberto Fernández.
As lutas e a construção de uma alternativa
Mas também vemos o potencial das lutas. As lutas pelos direitos das mulheres e contra o racismo, junto com a luta da juventude contra as mudanças climáticas, vêm varrendo o planeta. A luta heroica das mulheres no Irã, contra o assassinato de Mahsa Amini e o regime opressor, mostra que mesmo os regimes mais autoritários não estão seguros quando as massas perdem o medo.
Vemos também um avanço das lutas sindicais. Nos EUA, há uma onda de sindicalização de setores precarizados, como Amazon e Star Bucks. Na Europa, vimos uma série de greves na Grã Bretanha que não víamos há décadas. Na França houve uma greve nacional de trabalhadores do transporte e outros setores no dia 18 de outubro e na Bélgica houve uma greve geral no dia 9 de novembro, com centenas de piquetes. No dia 13 de novembro, centenas de milhares marcharam em Madri contra cortes na saúde.
O que falta ainda é uma expressão política à altura dessas lutas, que possa uní-las e armá-las com um programa socialista, que possa romper com a lógica desse sistema capitalista que só tem crise permanente a nos oferecer. Essa é a nossa tarefa.