Depois da derrota da Nova Constituição: Impedir o avanço da direita pela construção de uma alternativa socialista! 

Em 04 de setembro, mais de 15 milhões de chilenos votaram no plebiscito sobre a aprovação de uma nova Constituição redigida por delegadas e delegados da Convenção Constitucional (CC). No entanto, mais de 61% dos chilenos votaram pelo “Rechazo”, isto é, pela manutenção da Constituição vigente, criada durante a ditadura de Pinochet e que representa o início do neoliberalismo no Chile. 

A vitória do Rechazo ocorreu após uma campanha marcada pela difusão de fake news. De fato, não houve uma campanha real em defesa da aprovação do novo texto e os principais responsáveis por isso foram as burocracias sindicais e os partidos da frente Apruebo Dignidad (aliança que inclui o Frente Amplio, partido do atual presidente, Gabriel Boric, e o Partido Comunista) ou da frente Socialismo Democrático (aliança que inclui boa parte dos partidos que formaram a base de apoio dos governos passados da Concertación liderados por Michele Bachelet, como o Partido Socialista e o Partido Liberal). Ao invés de organizarem uma campanha de mobilização que poderia garantir a vitória do Apruebo, organizaram de cima para baixo uma campanha midiática que, além de erros em seus planos e prioridades, foi marcada pelo seu distanciamento dos interesses da classe trabalhadora e da juventude. 

O resultado surpreendeu amplas camadas da esquerda, pois muitos apostavam na vitória do “Apruebo”, pois a Constituição de Pinochet tinha sido duramente questionada durante as rebeliões massivas de 18 de outubro de 2019 (18O) e porque o atual presidente, Gabriel Boric, defendia a aprovação do novo texto. Neste sentido, a vitória do Rechazo significou uma derrota para Boric e sua coalização política. Estes priorizaram realizar acordos com a direita durante a Convenção Constitucional, ao invés de organizar uma campanha a partir das ruas para aprovar mudanças reais no texto constitucional e garantir uma vitória do Apruebo.

Apesar de revelar os limites do governo Boric, a vitória do Rechazo não deve ser celebrada. De fato, a derrota do Apruebo abre um novo momento nas lutas e disputas que começaram em 2019 no Chile. Para a direita, a vitória do Rechazo é vista como uma oportunidade para aprofundar os ataques contra a classe trabalhadora. Para o governo de Boric, a derrota no plebiscito tem sido interpretada como um sinal de que é necessário fazer mais negociações e maiores concessões para os setores à direita do governo. 

Para a esquerda socialista e revolucionária, compreender o resultado do plebiscito de 04 de setembro é crucial para superarmos os limites políticos da Rebelião Social de 2019 e que estão associados com a inexistência de uma alternativa política independente e socialista para a classe trabalhadora e a juventude no Chile. 

Por que o Rechazo ganhou?

A vitória do Rechazo não significa que o povo chileno defende a continuidade da constituição criada por Pinochet. Como marxistas, sabemos que plebiscitos e eleições expressam, de maneira contraditória, a consciência das massas. Diferentemente do que alguns afirmam, o resultado não indica um giro à direita na consciência de massas, mas sim um repúdio das massas aos limites da política de conciliação de classes implementada pelo governo Boric e pela aliança Apruebo Dignidad – Socialismo Democrático. O Rechazo também expressa um repúdio ao abandono das demandas das mobilizações de 2019 pela CC, que foi dissimulado pela política identitária. 

Por outro lado, outros enxergam nas fake news a principal razão da vitória do Rechazo. É certo que as mentiras e distorções criadas por grupos de extrema-direita sobre as mudanças que resultariam da aprovação do novo texto constitucional jogaram algum papel. No entanto, a força das fake news cresceu em um contexto de crise das organizações de massas da classe trabalhadora. A única forma de combater os efeitos nocivos das fake news é criando meios de comunicação próprios da classe trabalhadora e suas organizações. Sem partidos ou sindicatos de massas, o vazio existente pode ser ocupado pelos meios de comunicação de massas da burguesia (redes sociais e imprensa) e pelas fake news da extrema-direita. 

Para nós, as causas da vitória do Rechazo têm relação com a ausência de organizações de massas e com os limites do próprio texto da Nova Constituição. Tal como indicamos em um texto anterior[1], a proposta de Constituição aprovada pela maioria da CC era profundamente limitada, pois não indicava mudanças reais e profundas no sistema político e econômico vigente no Chile. O seu conteúdo não representava as demandas das massas revoltosas de 2019 e, por isso, elas não saíram às ruas para fazer uma Campanha pelo Apruebo.

Se, inicialmente, as massas chilenas saíram às ruas em outubro para combater medidas neoliberais propostas pelo governo de Sebastian Piñera, em poucas semanas as revoltas se radicalizaram. Isso ficou evidente com a realização de uma exitosa greve geral realizada em 12 de novembro, na qual a classe trabalhadora defendeu o fim do neoliberalismo, mudanças reais na economia e uma Assembleia Constituinte soberana.

Infelizmente, os chamados “Acordos de Paz” de 15 de Novembro de 2019, firmados e impostos de cima para baixo por todos os partidos da ordem (e isto inclui o Frente Amplio, partido de Gabriel Boric) serviram para institucionalizar e controlar as lutas populares. A finalidade da burguesia chilena era impedir que uma nova greve geral fosse realizada e, assim, prevenir que as revoltas se desdobrassem em uma verdadeira situação revolucionária.  Após os acordos de paz de 15 de novembro de 2019, vimos a vitória de agrupamentos independentes de esquerda no processo de eleição de delegados para a Convenção Constitucional em maio de 2021 e na vitória de Gabriel Boric contra um representante da extrema-direita nas eleições gerais realizadas no final de 2021. No entanto, tanto os delegados constituintes, quanto o novo governo chileno adotaram uma política de conciliação de classes, voltada para a manutenção da “estabilidade política”. 

Sem um partido independente da classe trabalhadora armado com um programa socialista, as posições daquelas e daqueles que ocuparam as ruas durante o 18O foram canalizadas para as chapas independentes. Este foi o caso da Lista del Pueblo, a qual não tinha um programa coerente e classista, apesar de corretamente ter organizado uma coalizão independente por rechaçar a política conciliatória da frente Apruebo Dignidad e do Socialismo Democratico. Por isso, logo depois de uma importante vitória eleitoral, a Lista del Pueblo teve uma atuação fragmentada e que não acumulou forças durante o processo da CC.

Desde então, as condições de vida da classe trabalhadora pioraram muito: além de uma pandemia que castigou especialmente a classe trabalhadora, hoje há uma piora significativa nas condições de vida provocada pela enorme inflação, pelo aumento de preços de alimentos e a progressiva corrosão dos salários ao longo de 2022. A piora nas condições de vida da classe trabalhadora significa que esta apoiará apenas políticas que sinalizam mudanças reais e isto não existia no novo texto constitucional produzido pela CC.

O que foi aprovado era um limitado texto que oferecia bonitas palavras sobre Bem-Estar Social, direitos das mulheres, direitos dos povos originários e outros, sem definir medidas concretas para transformar os direitos em realidade ou sem estabelecer propostas econômicas necessárias para reduzir a alarmante desigualdade social vigente no Chile. Mesmo que o texto da CC avançava ao propor a legalização do aborto, ele não apresentava uma proposta concreta de construção de um Sistema Público e Gratuito de Saúde. Da mesma forma, o texto aprovado pela CC não propunha a estatização do cobre e outros recursos naturais do Chile, mas, pelo contrário, garantia a participação da iniciativa privada na exploração de recursos naturais.

Em outras palavras, o texto aprovado pela CC não atendia as reinvindicações das lutas que começaram em 18 de outubro de 2019. Não é correto afirmar que a classe trabalhadora optou pela Constituição de Pinochet, pois o que houve foi um Rechazo a uma proposta de Nova Constituição sem respostas favoráveis para a classe trabalhadora. É fato, a vitória do Rechazo foi uma vitória da direita, mas isto só foi possível porque, desde a Rebelião Social de 2019, os setores de Centro-Esquerda atuaram para salvar o sistema capitalista e não para oferecer uma alternativa real. Isto foi possível, porque inexiste uma alternativa de esquerda e independente que poderia canalizar a insatisfação da classe trabalhadora para uma saída menos desastrosa que a vitória do Rechazo. 

Depois do Rechazo: avanços da direita, dentro e fora do governo de Boric

A vitória do Rechazo representou uma derrota da coalização que hoje dirige o país. Para a direita, a vitória do Rechazo significou a abertura de espaço para avançar projetos políticos e econômicos do imperialismo e da burguesia que o governo anterior não conseguiu aprovar. Ao mesmo tempo, o governo de Boric concluiu que é preciso moderar ainda mais sua política, o que na prática significa fazer maiores concessões no capital. Por isso, poucos dias após o plebiscito, foi retomada a tentativa de aprovar um tratado de livre comércio entre 11 países da Ásia e do Pacífico (Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietnã), conhecido como TPP-11. O tratado propõe não apenas a abertura de mercados e a efetivação de acordos comerciais, ambientais ou tecnológicos entre os países. O tratado também implica em ataques como a realização de contrarreformas trabalhistas e o aprofundamento do processo de exploração dos recursos naturais chilenos pelo capital financeiro internacional. 

A aprovação do TPP-11 também significará uma redução drástica da taxação de produtos estrangeiros e da regulação da atividade de empresas transnacionais. Isto significa abrir maiores oportunidades para que o empresas estrangeiras dedicadas ao agronegócio se apropriem livremente dos recursos naturais chilenos. Temas como o uso de sementes ou a propriedade intelectual não serão mais definidos pelo Estado chileno, mas por tribunais internacionais dominados pelas grandes corporações e principais potências signatárias do tratado. 

A primeira tentativa de aprovar o TPP-11 foi em 2019, durante o mandato de Piñera. Porém, ela foi barrada pela resistência popular e pelos partidos de oposição. Hoje, após a derrota do Apruebo, a direita resgatou a proposta e ela vem sendo defendida por setores da coalização que sustenta Boric no poder. Em recente declaração, durante a última assembleia geral da ONU nos EUA, Boric afirmou que o TPP-11 não era parte do seu programa e que possui diferenças pontuais, mas que respeitaria as decisões da Câmara Federal e do Senado. Trata-se de uma capitulação, já que o artigo 32 da Constituição do Chile assegura o direito do presidente assinar ou vetar tratados internacionais.

O processo de capitulação de Boric e seu partido à manutenção da ordem capitalista também se expressa na atuação do aparato repressivo do Estado. Além da manutenção dos presos políticos das manifestações de 2019, desde o primeiro dia de governo de Boric, carabineros e forças armadas têm reprimido manifestações com intensa violência. O resultado disto foi o assassinato da jornalista Francisca Sandoval por milicianos durante uma manifestação no 1º de Maio. Também estamos vendo a crescente militarização dos conflitos na região do Wallmapu. Recentemente, o governo Boric contribuiu na detenção de Héctor Llaitul, um representante do povo mapuche. Contra isso, defendemos a libertação de todos os presos políticos de Piñera e Boric, além da punição de todos os envolvidos em casos de violação ao livre direito de manifestação da classe trabalhadora e da juventude. 

O desafio atual: Construir uma Alternativa Socialista!

A situação no Chile permanece explosiva. Diferentemente do que governantes e patrões afirmam, ainda há uma profunda indignação contra a desigualdade social no Chile. A classe trabalhadora chilena vem enfrentando um acelerado processo de degradação de suas condições de vida. A responsabilidade pelas recentes derrotas não reside na consciência atual da classe trabalhadora, mas sim  na política de conciliação de classes de Gabriel Boric e da coalização Apruebo Dignidad – Socialismo Democrático. Trata-se de uma política que distancia cada vez mais o governo e a classe trabalhadora. Com o agravamento da crise capitalista, o distanciamento pode ser maior e o vazio entre ambos pode ser preenchido por forças de extrema-direita que já disputam os rumos do Chile. 

Por outro lado, a piora das condições sociais e as sucessivas capitulações de Boric aos interesses do capital financeiro também podem resultar em uma nova onda de manifestações e greves. Há lutas fragmentadas em curso. 

Poucos dias após a vitória do Rechazo, as ruas de Santiago foram ocupadas por estudantes que lutavam por seus direitos, além de levantarem bandeiras fundamentais como: libertar os presos políticos, derrotar o TPP-11 e defender uma verdadeira assembleia constituinte soberana. Em 22 de setembro, como parte de um dia de homenagem aos dirigentes sindicais assassinados pela ditadura de Pinochet, houve um dia nacional de paralização dos portos no Chile. Da mesma maneira, em 18 de outubro houve o bloqueio de vias por trabalhadores precarizados organizados na Federação de Trabalhadores de Minas. Há ainda articulações para organizar paralizações e manifestações contra o TPP-11. Apesar de limitadas, são sinais das lutas que estão por vir. 

Somente a retomada das lutas poderá mudar o curso das capitulações de Boric ao capital e prevenir o crescimento da extrema-direita no próximo período. No entanto, a conjuntura recente mostrou que também é necessário que os setores mais avançados da classe trabalhadora e da juventude no Chile estejam armados com um programa socialista, capaz de enterrar, de uma vez por todas, o neoliberalismo e o que restou da ditadura de Pinochet no Chile. 

As lutas contra a TPP-11, a privatização da educação e contra o aumento dos preços dos alimentos devem estar associadas à construção de organizações políticas independentes que contribuam para a organização e mobilização do povo chileno. As ações diretas de 2019 que ainda ocupam a memória não bastaram. É urgente construir uma Alternativa Socialista no Chile. 


[1] Fernando Lacerda e Vilma Álvarez. As lutas no Chile: grandes riscos frente ao aprofundamento da crise capitalista. América Latina Socialista, 2, pp. 16-18 (jul/ago/set 2022).

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