Mantendo viva a memória de resistência
Entrevista com Ana Maria Ramos Estevão, autora do livro “Torre das Guerreiras e outras memórias”
Entrevistamos Ana Maria Ramos Estevão, mulher, preta, nordestina, militante da LSR e autora do livro “Torre das Guerreiras e outras memórias”, em que relata sua trajetória de lutas e resistência sob o regime de ditadura civil-militar no Brasil.
Nascida em Maceió, Alagoas, em 1948, Ana Maria mudou-se junto com sua família para São Paulo. Em 1969 iniciou o curso de Serviço Social e aproximou-se do movimento estudantil e da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de esquerda que enfrentou a ditadura. Ana Maria foi presa três vezes, antes de ser exilada em Paris.
“A Torre das Guerreiras e outras memórias” é o primeiro registro escrito por uma mulher sobre a época. Em seu livro ela nos conta como foi presa, torturada e as estratégias de sobrevivência. Ana Maria registra todas essas fortes memórias que reúnem informações singulares sobre a história da resistência em nosso país, em um ato contra o apagamento do que foi a ditadura militar no Brasil.
Como foi se tornar uma jovem militante em plena ditadura militar?
“A década de 60 foi um momento em que a juventude se deu conta de muita coisa. Foi uma década em que se concentraram as contradições do nosso modo de vida, a juventude passa a descobrir mais a América Latina, com os movimentos da Contracultura, o Woodstock e outros exemplos.
Então a esquerda está descobrindo Cuba, a Guerra do Vietnam, lendo muitos autores falando que o Brasil sustentava outros países como os EUA, a Inglaterra ou Portugal, estes desde o nosso passado escravista colonial.
Minha participação nas discussões dos grupos de esquerda da igreja, a história de engajamento político do meu pai, tudo isso também foi o contexto que me levou à militância.”
Como foi esse resgate da memória?
“Depois que voltei do exílio e eu passava pela região do presídio, que já tinha sido demolido, ele estava lá ainda na minha cabeça. Só quando fui pesquisar para escrever o livro, que eu realizei na minha mente que tinha mesmo acabado. Por isso escrevi, para não perder essa memória antes que eu morra. Como podemos construir um futuro se não sabemos o passado?
Conheço muitas outras mulheres que compartilharam o quanto gostariam de fazer o mesmo, mas não sentem que conseguem. O fato de eu conseguir escrever atesta a capacidade dos bons psicanalistas que tive e foi também um desejo coletivo das mulheres guerreiras que não conseguiram descongelar suas dores.”
Como foi o convívio com outros exilados?
“Durante toda minha vivência no Tiradentes nós cantávamos muitas músicas latinas, como músicas da revolução cubana, lembro de todas elas até hoje. Chorar pela América Latina era chorar por um projeto que foi ceifado. No exílio, tínhamos muitas conversas com outros exilados, aquilo nos deixava cada vez mais humanos, ao contrário do que acontecia na América Latina que estava cada vez menos humana com as ditaduras. Mas tem uma passagem sobre a “mama italiana” que eu conto no livro, como aquela mulher me ajudou e cuidou de mim em um trem enquanto viajávamos, sem nunca ter me visto, sem nos conhecermos. As pessoas me chamam de otimista, porque apesar de tudo que aconteceu na minha vida eu tenho fé na humanidade.”
A sua geração demonstrou enorme disposição de luta e sacrifício. Valeu a pena?
“Acho que a minha geração contribuiu muito para as possibilidades que existem hoje. No livro falo disso na passagem do cadeirante no ônibus, o fato de ele poder estar ali circulando, ou outras vitórias, como a lei para que mulheres possam descer do ônibus a noite fora dos pontos regulares, todas essas coisas que são “pequenas” conquistas, mas que só vieram com muita luta. Acho que valeu a pena sim, acho que faria tudo de novo.”
Como você avalia termos hoje um presidente que defende um regime militar?
“É uma conjuntura mundial que permite o aparecimento dessas coisas. Para a história quatro anos não é nada, dá pra fazer muita coisa, muita destruição, mas para o tempo histórico é pouco e minha fé é que passa. Temos que pensar que tivemos nossas mentes colonizadas, o neoliberalismo convenceu as pessoas de que essa é a melhor forma de viver. Contudo, há muitas iniciativas interessantes, desde grupos evangélicos pela democracia, que vão de porta em porta falando que temos que lutar, até sendo entrevistada por uma jovem mulher, já é uma vitória!”
Como você vê a possibilidade de um golpe do Bolsonaro e como organizar a luta hoje?
“Eu acho que não é um golpe no sentido clássico de golpe, com tanques na rua, fechamento de sindicatos, essas coisas. Hoje as fake news são armas. Eles deram um golpe contra a Dilma. Podem fazer outro para anular a eleição. Mas para isso acontecer ele vai ter que mudar muita coisa, vivemos uma crise internacional, o próprio Bolsonaro perdeu muita popularidade internacionalmente.
Acho que temos que nos organizar mais localmente, nos bairros, é o que temos que fazer. Nos movimentos como o clube de mães, o grupo de mulheres contra a carestia dos alimentos, todos que cito no livro, é onde temos que atuar.”