Falhas e acidentes mostram a verdadeira face da privatização do transporte em SP
Na manhã desta quinta-feira, 10 de março, os passageiros da Linha 8 do transporte ferroviário de São Paulo enfrentaram mais um dia de atrasos e lentidão. A operação já havia iniciado com falhas, devido a possíveis furtos de cabos e problemas de alimentação elétrica ao longo da via. Mas ficou ainda mais degradada quando um acidente espantoso aconteceu.
Na estação Júlio Prestes, extremidade da linha que fica no Centro, um trem ultrapassou o ponto de parada na plataforma e avançou para os limites do trilho, colidindo com a contenção no fim do trajeto. O operador do trem e um passageiro ficaram feridos. Na tarde anterior, dia 09, o serviço estava tão lento e com um acúmulo tal de falhas, que passageiros resolveram seguir andando pelos trilhos porque se cansaram de aguardar pelos trens.
Na mesma manhã de quinta, o noticiário deu conta ainda de que um trabalhador foi eletrocutado na Linha 9, na região da estação Pinheiros, enquanto trabalhava. O acidente ocorreu por volta das 2h50 da madrugada, e levou Bodney Supplice à morte. O trabalhador era haitiano, e cumpria função de agente de manutenção e atendimento.
“Privatiza que melhora”?
É conhecida a situação de sucateamento dos serviços de transporte das grandes cidades do país. Quando ocorrem notícias como estas, é comum vermos o alarde da grande mídia em torno dos mesmos. Ao mesmo tempo que sempre aparece a mesma solução para eles: a privatização. Evidentemente, o aumento de investimentos públicos para estes serviços essenciais nunca é nem sequer considerado pelos comentaristas rasos dos telejornais locais.
Algo de diferente ocorre com as Linhas 8 e 9, e por uma razão simples. Elas foram concedidas à iniciativa privada em abril de 2021, e são completamente operadas pela Via Mobilidade desde janeiro de 2022 (consórcio entre a CCR, que parte das ações são detidas pela empreiteira Andrade Gutierrez, e a RuasInvest, que possui concessão para operar parte da frota de ônibus de São Paulo).
A privatização não era, enfim, a cura de todos os males como comumente propagandeados pela mídia. O número de falhas e acidentes graves nestas linhas aumentaram desde que elas deixaram de ser operadas diretamente pela estatal estadual CPTM. É evidente que existem dificuldades e os problemas são comuns tanto no sistema ferroviário, como metroviário de São Paulo. Mas, a privatização como solução tem se provado falsa.
Mais diretamente sentidos, contudo, são o encarecimento e a precarização dos serviços prestados à população. Estas não foram as únicas falhas graves desde que a Via Mobilidade assumiu estas linhas. No dia 14 de fevereiro, a operação da Linha 9 chegou a ficar 14 horas paralisada por conta de falhas de alimentação elétrica da mesma. No mesmo dia, a Linha 8 também ficou cerca de 3 horas paralisada por conta de problemas com equipamentos de via próximo à estação Osasco.
Aqui é importante ressaltar. Quem conhece um pouco destes sistemas e equipamentos sabe que falhas podem ocorrer e isto é algo relativamente comum. O que não é comum, nem inevitável, é que estas falhas sejam tão frequentes e se estendam por períodos tão longos até que a circulação de trens seja restabelecida. Ainda admitindo isto, um acidente em que um trem simplesmente sai dos trilhos na extremidade da linha é algo realmente extraordinário. Entre as razões para a explicação destas falhas, sem dúvidas figuram as décadas de subinvestimento no transporte público sob os governos de direita do estado de São Paulo. Contudo, a história não termina por aí.
O custo alto da privatização: saúde e vida dos trabalhadores em risco
Desde que assumiram a operação destas e outras linhas, a Via Mobilidade vem impondo um rebaixamento das condições de segurança e de trabalho, além de regimes de acúmulo de funções, longas jornadas e piora nas condições salariais de seus empregados, quando comparados aos funcionários das empresas estatais.
Como um exemplo, basta pensar que um operador de trem do metrô estatal de São Paulo recebe um treinamento de cerca de 100 dias para ser habilitado a cumprir esta função. O cargo equivalente nas empresas privadas recebe um treinamento de cerca de 30 dias. Os períodos de descanso entre as voltas são reduzidos e as jornadas de trabalho mais longas em média. Embora as condições de trabalho nas estatais tenham muito a melhorar, as impostas pelos patrões da iniciativa privada são ainda mais desumanas e aumentam muito o risco de acidentes.
Dessa forma, acidentes e interrupções graves nas redes de transportes privatizadas têm sido a regra, e não a exceção.
Os exemplos são muitos. É possível citar a L5 do metrô de São Paulo, entregue completamente para a Via Mobilidade em agosto de 2018. Em sua primeira semana de operação sem supervisão da estatal, a L5 apresentou falhas, interrupções e lentidão durante todos os dias, sem exceção. Falhas continuam sendo comuns na linha. É o caso do acidente ocorrido em agosto de 2021, quando uma estrutura metálica da estação Santo Amaro desabou sobre o Rio Pinheiros, ferindo dois operários que trabalhavam na expansão de sua plataforma.
Mesmo quando as falhas não são propriamente dos equipamentos, o regime de trabalho das empresas privadas se mostra prejudicial às condições de atuação dos funcionários em momentos delicados. O episódio mais conhecido foi a interrupção por mais de uma hora da operação da Linha 4 do metrô de São Paulo (também de responsabilidade da CCR), por conta do acionamento de dois botões de emergência em um trem durante o carnaval de 2018. O acionamento de botões de emergência por passageiros, por necessidade ou indevidamente, é algo absolutamente corriqueiro e costuma ser resolvido em poucos minutos.
O caso do haitiano Bodney, desta quinta, também não é o único acidente de trabalho fatal ligado às condições de trabalho da CCR. Em 2014, caso bastante semelhante ocorreu nas obras de construção do metrô de Salvador, também administradas pela empresa. Kim Jong Pyo, operário coreano, foi eletrocutado e veio a óbito durante o turno de trabalho.
Já outras empresas privadas ligadas ao transporte sobre trilhos também têm seus nomes ligados a situações bizarras. A Supervia, que opera o metrô do Rio de Janeiro, é bastante recorrente em casos assim, além de cobrar uma tarifa entre as mais caras do país. Em 2015, o vendedor ambulante Adílio Cabral dos Santos foi atropelado por um dos trens da empresa. Demonstrando que dá muito mais valor ao lucro do que à vida, a Supervia não interrompeu a circulação de trens para o resgate do corpo. Pelo menos três composições passaram por cima do ambulante falecido.
E não se pode deixar de mencionar as crateras imensas abertas pelos consórcios privados envolvidos nas obras de expansão das Linhas 4 e 6 do metrô de São Paulo. Durante a construção da Linha 4 pelo consórcio Via Amarela (do qual a Andrade Gutierrez fez parte, junto com Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS) em torno de dez acidentes de trabalho foram notificados. O mais famoso foi a abertura de uma cratera de cerca de 80m de diâmetro e próximo a 30m de profundidade. Sete pessoas morreram no acidente, que aconteceu em 2007.
No último mês de fevereiro a tragédia se repetiu, sob a batuta da empresa Acciona, na Marginal Tietê, cuja obra de construção da Linha 6 atingiu a tubulação de esgoto da Sabesp, levando à formação de mais uma cratera. Não houve feridos no momento deste acidente. No entanto, no decorrer dos dias após o deslizamento, três operários da Sabesp que atuavam nos reparos necessários foram feridos por uma explosão no local, provavelmente causada pelo acúmulo de gases do esgoto. Ou seja, a privatização de uma empresa estatal, o Metrô, acabou acarretando no acidente de trabalho de funcionários de uma outra empresa estatal, a Sabesp.
Esta lista poderia ser longamente continuada. No entanto, estes exemplos já são o suficiente para demonstrar que em nada a privatização contribui com a eficiência e melhoria dos transportes. Pelo contrário, tais empresas priorizam o lucro acima das vidas de trabalhadores e passageiros, levando a precarização e redução de custos ao limite, piorando as condições de trabalho e de prestação dos serviços.
Tampouco economicamente as privatizações fazem qualquer sentido. Seus defensores costumam dizer que as condições do transporte público não melhoram pela ausência de concorrência, por conta do monopólio estatal. Porém guardam eloquente silêncio quando se trata de encarar o fato de que poucas empresas privadas têm dominado o setor. Só em SP, a CCR e a RuasInvest estão em posse das Linhas 4, 5, 8, 9 e 17 do transporte sobre trilhos; a CCR é a principal concessionária de rodovias do estado, ao passo que a RuasInvest controla parte importante do transporte rodoviário municipal e intermunicipal de São Paulo. Elas dominariam, ainda, a Linha 15, do monotrilho, mas a licitação foi anulada judicialmente por ação do Sindicato dos Metroviários. Em nada as privatizações modificaram o caráter monopolista do setor, apenas voltaram esse monopólio para servir ao lucro privado.
A maior parte das concessões é realizada sob a promessa de remuneração pelo critério de “tarifa técnica contratual por passageiro transportado”. Esta tarifa não necessariamente é a mesma que a paga diretamente pelos passageiros. Na verdade, costumam ser maiores. Em 2020, por exemplo, enquanto as passagens estavam a R$4,40, o governo paulista repassava à Linha 4 R$4,53 por passageiro transportado. Além disso, existe uma previsão contratual do número de passageiros transportados. Se este número não for atingido, o governo de São Paulo arca com o prejuízo, subsidiando a L4 de maneira a que ela receba pelo menos 90% do valor previsto.
Estas condições garantiram um aumento de 55,8% de faturamento entre 2014 e 2019, enquanto o público transportado cresceu apenas por volta de 18%. Um detalhe importante: as tarifas recolhidas pelo sistema metroferroviário são todas depositadas em um Fundo de Compensação utilizado por todas as empresas. Contudo, as empresas privadas (ViaQuatro e Via Mobilidade) têm prioridade de saque sobre o mesmo. Somente quando o faturamento das empresas privadas está garantido o restante é dividido entre o Metrô e a CPTM. É o capitalismo “sem riscos de prejuízo” dado pelo PSDB aos empresários amigos.
Não é demais lembrar que as empresas que lucram com esses esquemas são as mesmas que estiveram envolvidas em grandes escândalos de corrupção, como a própria Andrade Gutierrez. O próprio Ministério Público de São Paulo, que não é particularmente famoso pelo seu rigor quanto à fiscalização das atividades dos governos estaduais de direita, chegou a pedir a anulação do processo de concessão da Linha 5 do Metrô.
O principal motivo alegado pelo MP esteve ligado ao fato de que a RuasInvest possuía, à época, uma dívida previdenciária de cerca de R$2 bilhões. Ou seja, legalmente ela não deveria ter o direito de contratar com o poder público. O MP apontou ainda os riscos advindos do envolvimento da Andrade Gutierrez, já que a empresa era a responsável também pela construção da Linha 17 e abandonou o contrato causando prejuízos aos cofres públicos. Os atrasos na construção das linhas, aliás, são um grande negócio, pois as mesmas empreiteiras que participam da construção, e são responsáveis principais pelo seu atraso, recebem vultosos aditivos contratuais para que as obras sejam retomadas. Além de os consórcios dos quais fazem parte para a operação delas serem indenizados pelos atrasos que elas próprias causam!
Assim, não há outra maneira de classificar a política de PPP’s nos transportes públicos senão como puro e simples saque do patrimônio público. De igual forma, fica cada dia mais demonstrado que a iniciativa privada definitivamente não é mais eficiente do que o Estado para prestar estes serviços à população. Pelo contrário, já que priorizam o lucro e a redução dos custos acima de tudo.
Lutar por um transporte público, gratuito e de qualidade!
Nossas vidas precisam valer mais! Cotidianamente, os trabalhadores pagam caro e sofrem com as más condições do transporte, com vagões lotados, atrasos e falhas constantes. Bodney Supplice e tantos outros pagaram ainda mais, sendo vítimas fatais. Do outro lado, empresários enchem seus bolsos, amparados pelo governo.
No momento de crise econômica pela qual passa o país, as empresas estatais poderiam, ainda que de forma limitada, exercer um papel de intervenção em favor da vida dos trabalhadores. Elas poderiam impulsionar a criação de empregos, ao mesmo tempo em que forneceriam um serviço de qualidade e que poderia ser muito mais barato para a população de conjunto. Para tanto, é fundamental reverter a lógica neoliberal de subinvestimento que se abate sobre o setor há décadas.
O movimento sindical dos transportes, assim como especialistas no tema, levanta a bandeira da reversão de 2% do PIB para os transportes públicos. Igualmente, isto abriria um debate sobre os modais de transportes que o país deveria priorizar, preferindo o transporte coletivo ao individual. Podendo, inclusive, contribuir para a redução de emissão de gases poluentes formando um contrapeso à crise climática que se abate sobre o planeta.
É necessário, enfim, acabar com a lógica neoliberal de privatizações, que beneficia somente os grandes empresários. E retomar a propriedade estatal dos transportes coletivos, com gestão democrática a ser feita pelos trabalhadores e passageiros – principais interessados em melhores condições de trabalho e de serviço.