“Óbito também é alta”: a tragédia da mercantilização da saúde
Bolsonaro, Prevent Senior e pandemia: a desumanidade do capitalismo
Os trabalhos da CPI da COVID-19 no Senado, instalada desde o início do ano para investigar as ações e omissões do governo federal durante o enfrentamento da pandemia, nos traz fatos escandalizadores sobre o governo de Bolsonaro: defesa de medicamentos e tratamentos ineficazes, descaso com medidas de proteção e a saúde pública, a composição de um “gabinete paralelo” no ministério da saúde, falta de planejamento e estratégia, tentativa de superfaturamento na compra de vacinas, prevaricação, conflitos diplomáticos com a China e mais uma série de denúncias a serem investigadas.
Quando já parecia impossível ficarmos mais horrorizados, eis que surge o caso da operadora de planos de saúde Prevent Senior. Dentre as denúncias, está a submissão de pacientes a uma pesquisa – sem qualquer protocolo, desenho metodológico e consentimento – sobre a eficácia do uso de medicamentos (como a Hidroxicloroquina ou pertencentes ao chamado “kit Covid”) que, segundo a literatura científica mundial, são ineficazes no tratamento de infecções de Covid-19. Contudo, as investigações da CPI indicam, também, uma atuação conjunta da operadora de saúde com o governo federal para, por meio daquela “pesquisa”, garantir modalidades de tratamento da Covid-19 que não seguiam os cuidados promulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros organismos internacionais, o que inclui, por exemplo, isolamento social, uso de mascarás e etc. Assim, a economia não precisaria parar e a burguesia poderia continuar explorando e lucrando sem nenhum empecilho.
As investigações conduziram a denúncias de alteração de prontuários para omitir que a causa da morte era por COVID-19 ou o uso do dito “tratamento precoce” realizado com prescrição indiscriminada de medicamentos ineficazes. Segundo as denúncias, houve coação de médicos por parte de diretores da Prevent Senior, para que aqueles prescrevessem os medicamentos ineficazes. Houve, até mesmo, mudança de receitas.
Quanto mais se investiga a Prevent Senior, mais se evidencia a ideologia presente na cultura organizacional da empresa. Daí partiram aproximações com o nazismo de distintas formas: (1) o uso de serem humanos em pesquisas médicas sem autorização, consentimento ou preocupação com sua morte; (2) o lema da empresa “obediência e lealdade”, o mesmo usado pela tropa de choque do nazismo alemão (a SS); (3) o processo de submissão e massificação dos médicos, que tinham que, em reuniões, cantar com a mão no peito o hino da empresa, repleto de retórica heroica e sacrificial.
Junto com as investigações, surgiram os documentos do Pandora Papers vazando documentos da grande indústria de lavagem de dinheiro e corrupção das chamadas offshore. Os documentos revelam que os donos da operadora de saúde são os beneficiários de quatro offshores que movimentaram, no mínimo, 9 milhões de reais em um paraíso fiscal.
O caso da Prevent Senior não revela somente a barbárie do projeto genocida de Bolsonaro para enfrentar a pandemia de Covid-19, mas que a raiz do problema está na mercantilização da saúde pelo capitalismo. Este, enquanto modo de produção social, reduz a maioria dos seres humanos a mercadorias, pois necessitam vender sua força de trabalho para satisfazerem suas necessidades. Apesar do nazismo, das práticas da Prevent Senior e do governo Bolsonaro serem expressões hediondas do que o capitalismo pode fazer ao desumanizar o humano, o problema não começa ai, pois a raiz reside no fato de que as relações sociais de produção capitalistas são essencialmente desumanizadoras. Embora as semelhanças da Prevent Senior com o nazismo serem nítidas e chocantes, o ponto crucial de análise está sendo pouco debatido: a mercantilização da saúde pelo capitalismo.
O Sistema Único de Saúde e a mercantilização da saúde no Brasil
A questão que deve ser colocada é: o que acontece com a saúde quando ela é tratada como mercadoria? No Brasil, temos a coexistência de dois modelos de assistência em saúde: o Sistema Único de Saúde (SUS), instaurado pela Constituição Federal de 1988; e o modelo de assistência privada, operado pelos planos de saúde que visam o lucro.
De acordo com o que é preconizado pela Constituição Federal, a assistência privada deveria ser apenas complementar em relação ao SUS, pois a saúde é um direito universal imprescindível, porque é necessária à reprodução da vida, de nossa existência. Contudo, de acordo com levantamentos realizados pela 16ª Conferência Nacional de Saúde de 2019, há um crescimento desenfreado do setor privado de saúde, de tal maneira que há uma subversão da ordem constitucional. Em outras palavras, os planos de saúde predominam sobre o SUS.
O principal fator por trás da precarização do SUS é histórico e estrutural: o financiamento, desde a sua criação, tem sido instável e insuficiente. Inicialmente, o financiamento da saúde estava vinculado ao orçamento da seguridade social[1] (OSS), que deveria dispor, para o SUS, 30% do seu total. Essa alíquota não foi cumprida em 1990 e 1991 e sempre foi objeto de disputa. Esta se acirra durante a ofensiva neoliberal e, em 1993, as contribuições previdenciárias deixaram de compor as fontes de financiamento da saúde. A partir daí a saúde fica com uma fontimentações financeiras, a CPMF, que vigorou entre 1997 e 2007.
Somente em 2000, doze anos após a consolidação do SUS na Constituição Federal, é que, por meio de uma emenda constitucional (EC nº 29/2000) foram definidos montantes mínimos a serem aplicados pela União, estados e municípios em ações e serviços públicos de saúde. Em 2009, o gasto público em saúde era de 3,8% do PIB – Produto Interno Bruto (IBGE, 2012), montante muito inferior àquele aplicado por outros países que possuem sistemas universais de saúde (IPEA, 2013).
As políticas de arrocho fiscal e austeridade, cada vez mais agressivas, dificultaram ainda mais o financiamento da saúde. Dentre elas, destaca-se a Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos, a EC 95 (que ficou conhecida durante sua tramitação como “PEC da Morte”), pois ao congelar o financiamento de gastos sociais com saúde, educação e seguridade social até o ano de 2036, consolidou e aprofundou o subfinanciamento do SUS. O congelamento foi justificado para garantir o superávit primário e assegurar pagamento de juros e amortização da dívida pública. Outra fonte de subfinanciamento do SUS está no calote que leva dos planos de saúde. Se uma pessoa com plano de saúde privado sofrer um acidente e for encaminhada a um pronto-socorro do Sistema Único de Saúde (SUS), a Lei 9.656/98 determina que a conta do atendimento seja enviada para a operadora de saúde responsável. Porém, parte significativa das empresas, ao invés de cumprirem a legislação e pagarem as faturas, prefere questionar os valores na Justiça e acumular dívidas com a União, “travando” o pagamento de bilhões de reais que poderiam ser investidos em melhorias no serviço público de saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por fiscalizar o setor e cobrar o pagamento, os planos privados de saúde devem cerca de R$ 2,9 bilhões ao SUS.
Essa manobra dos planos de saúde já revela muito sobre sua perspectiva de atuação. Ainda de acordo com a ANS, o lucro líquido das operadoras de planos de saúde cresceu 49,5%, isto é, saltou para R$ 17,5 bilhões em 2020. Neste ano, os planos de saúde tinham 47,6 milhões de usuários, o que representa uma alta de 650 mil pessoas. A receita total do setor atingiu R$ 217 bilhões, uma alta de 4,7%. O que chama a atenção é que, no mesmo período (ano da mais grave crise de saúde pública deste século), houve redução da taxa de sinistralidade, a qual ficou em 75,4%, uma queda de sete pontos percentuais.
Em linhas gerais, a taxa de sinistralidade indica o percentual gerado pela relação entre o número de procedimentos realizados pelo usuário e o valor pago pela empresa para o plano de saúde. Isso significa que cada vez que um beneficiário realiza um procedimento (consulta, exame etc.) é gerado um sinistro. A redução da taxa de sinistralidade em 2020 indica que tivemos um acréscimo expressivo de pessoas pagando planos de saúde e redução de serviços solicitados cobertos pelo plano. A taxa de sinistralidade é usada como parâmetro para reajuste dos preços dos planos de saúde. Quanto mais sinistros, maior o valor para reajuste, mais caro o plano. Contudo, se houve uma queda de sete pontos percentuais na taxa de sinistralidade, então o valor das parcelas em 2021 deveria ter diminuído, correto? Pois bem, aconteceu exatamente o inverso: usuários de planos de saúde coletivos por adesão começaram a receber seus boletos com reajuste anual de 16%! Além de ser o dobro da inflação do período (o acumulado em 12 meses foi de 8,06%, segundo o IBGE), não deveria existir um reajuste dos preços dos planos individuais ou uma redução, pois houve queda nos custos do setor em 2020 em consequência da redução de cirurgias, consultas, exames e outros procedimentos médicos eletivos durante a pandemia.
Ao que tudo indica, o medo provocado pela pandemia, junto com a sistemática propaganda de crítica ao SUS (levada a cabo não só pelo setor privado, mas também pelo governo federal), fizeram com que a classe trabalhadora buscasse plano privados na esperança de ter celeridade e dignidade em seu tratamento. Todavia, os planos de saúde não têm isso a oferecer e o caso Prevent Senior é, apenas, o exemplo mais escandaloso disso.
Com o subfinanciamento do SUS, abriu-se espaço para o setor privado. No entanto, uma vez que planos de saúde são empresas que buscam lucros, a concepção de saúde como direito fundamental vai por água abaixo. Tudo isso resulta de políticas neoliberais, por meio das quais se transforma direitos fundamentais em mercadoria e fonte de lucro para o capital. Parafraseando Darcy Ribeiro ao problematizar a educação no Brasil, podemos concluir que “a crise da saúde no Brasil não é uma crise; é um projeto”.
Temos assim uma contradição brutal: um serviço de saúde organizado não para o restabelecimento da saúde de seus usuários, mas voltado para o lucro de seus donos. Entre economizar recursos e salvar vidas, a alternativa escolhida é economizar custos. É isso que podemos esperar de um plano de saúde.
As denúncias realizadas por pacientes e familiares que foram atendidos pela Prevent Senior mostraram que, em prol da diminuição de custos de internação nos cuidados com sujeitos hospitalizados, eram oferecidos cuidados paliativos. Obviamente deturpando completamente o que são cuidados paliativos.
Defender o lucro usando como justificativa o paliativismo, além de covarde e criminoso, é um desserviço. Trabalhei por muito tempo como psicólogo hospitalar e, por vezes, junto com a equipe multiprofissional foi preciso estabelecer cuidados paliativos para sujeitos que não tinham mais prognóstico de cura e qualquer intervenção médica seria ineficaz ou iatrogênica. É extremamente difícil apresentar cuidados paliativos para uma família, ninguém quer escutar que um ente querido está à beira da morte e que só nos resta oferecer o conforto possível. Surgem várias reações como desconfiança, fantasias e medos, que os profissionais da saúde precisam desmistificar. Depois do escândalo envolvendo a Prevent Senior, o que podemos esperar é que um trabalho que já era difícil se tornará praticamente impossível. Sempre haverá a sombra da Prevent Senior para alimentar desconfianças, fantasias e medos.
É isso que o capitalismo tem a nos oferecer no campo da saúde: planos de saúde inescrupulosos, sucateamento de serviços públicos, desigualdade de acesso (só acessa quem paga) e serviços que não atendem a nossas necessidades. Apenas quando a saúde se torna um negócio e vidas se tornam mercadorias é que a frase: “óbito também é alta”, faz algum sentido. Frase essa proferida no depoimento da advogada Bruna Morato à CPI da COVID-19, ao defender os médicos que estão fazendo às acusações em relação a Prevent Senior. Segundo o depoimento da advogada para a administração da operadora de saúde, o principal interesse é liberar leitos, morte ou alta tanto faz, desde que a empresa não tenha déficit com uma internação prolongada. Justamente para defender a vida, dignidade, autonomia e os direitos da classe trabalhadora é que defendemos: um SUS 100% gratuito, de qualidade e que tenha seu financiamento assegurado. Para tanto é preciso a Revogação da EC 95 – “PEC da Morte”, que justamente limita os recursos da saúde, a taxação dos bilionários, lucros e das grandes empresas para financiar a saúde. Defendemos ainda a estatização das operadoras de saúde pois, é sob controle dos trabalhadores e não de empresários, que teremos uma saúde pública que atenda as nossas necessidades. Por isso, tão importante são os conselhos municipais, estaduais e as respectivas conferências. Sobretudo, o fundamental é retirar Bolsonaro e Mourão do governo e abolir sua, e qualquer, agenda neoliberal. As políticas de cunho neoliberal operam para o ataque e desmonte de toda seguridade social. Principalmente durante esse período crítico de pandemia é que fica evidente os limites e equívocos dessa estratégia neoliberal, pois foram justamente as políticas públicas assistenciais e de saúde que salvaram vidas, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Como mostrado pelos vazamentos do Pandora Papers, os donos da Prevent Senior, enriqueciam em seus paraísos fiscais às custas de vidas humanas. Estamos diante de uma decisão importantíssima: defender um sistema gratuito de saúde pública, construído e gerido pela classe trabalhadora ou continuar fazendo dessa assistência um negócio para alguns empresários continuarem lucrando e montarem suas offshores em paraísos fiscais. Trata-se de uma escolha entre a permanência da lógica nefasta do capital ou a construção de uma sociedade em que o centro são as necessidades de milhões, uma sociedade socialista!
Fontes:
7 pontos-chaves para entender o caso da Prevent Senior in: Nexo Jornal. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/09/22/7-pontos-chaves-para-entender-o-caso-da-Prevent-Senior
Após Lucro de 50% na pandemia, planos de saúde coletivos sobem 16% in: Associação Médica Brasileira. Https://amb.org.br/brasilia-urgente/apos-lucro-de-50-na-pandemia-planos-de-saude-coletivos-sobem-16/
Documento Orientador Elaborado pela Comissão Organizadora da 16ª CNS in: https://conselho.saude.gov.br/16cns/assets/images/apresentacao/sobre_doc_orientador.pdf
Financiamento Público da Saúde: Uma História à Procura de Rumo in: Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada (IPEA) http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1580/1/td_1846.pdf
Lucro das operadoras de planos de saúde tem alta de 49,5% em 2020 in: Valor Investe https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2021/05/26/lucro-das-operadoras-de-planos-de-saude-tem-alta-de-495percent-em-2020.ghtml
Paciente e médico confirmam denúncias contra a Prevent Senior in: Agência Senado
Planos de saúde devem R$ 2,9 bi ao SUS; valor compraria 58 milhões de doses de vacina in: Repórter Brasil. https://reporterbrasil.org.br/2021/06/planos-de-saude-devem-2-9-bi-de-reais-ao-sus-valor-compraria-58-milhoes-de-doses-de-vacina/
[1] Seguridade Social diz respeito à saúde, à previdência e à assistência social