Momentos decisivos da luta contra a reforma administrativa e o desmonte dos serviços públicos

Na última semana vimos um crescente número de aliados de Bolsonaro, dentre eles Arthur Lira (PP), presidente da Câmara Federal, afirmarem que possivelmente a Proposta de Emenda Constitucional 32 de 2020 (PEC-32), conhecida como “Reforma Administrativa”, não será aprovada neste ano. O pano de fundo desse possível recuo é a situação profundamente adversa para Bolsonaro hoje: novos escândalos de corrupção após o vazamento dos documentos no “Pandora Papers”, o inevitável indiciamento pela CPI da Covid-19, o aumento descontrolado dos preços de alimentos, combustível e outros produtos básicos etc.

Além disso, foi decisiva a ação do movimento sindical organizado, em especial de servidores públicos, que  pela pressão direta em aeroportos, gabinetes e em campanhas públicas de denúncia sobre o real significado da suposta “reforma administrativa”. Muitos deputados ficaram preocupados com as consequências eleitorais de aprovar uma contrarreforma que, se aprovada, terá duras consequências que resultarão da aprovação da PEC 32-2020 para a classe trabalhadora e a juventude em um período em que a fome, a pobreza e o desemprego crescem descontroladamente.

No entanto, ainda não há uma vitória na luta contra a PEC-32. Na realidade, os próximos dias são decisivos – tal como tem sido afirmado pelas entidades mais combativas do Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais (FONASEFE) – e caso não exista resistência, podemos sofrer uma dura derrota. Por isso, compreender o que está em jogo, manter a mobilização e mostrar como a luta contra a “reforma administrativa” está articulada com a luta pelo Fora Bolsonaro/Mourão e sua agenda neoliberal é uma tarefa para todas e todos nós.

A “Reforma Administrativa” atinge toda a classe trabalhadora

Em 23 de setembro, a Comissão Especial que analisava a PEC-32 aprovou o texto-base apresentado pelo relator, Arthur Maia (DEM). Foram 28 votos favoráveis e 18 contrários ao sétimo parecer sobre a Reforma Administrativa, o qual havia sido apresentado no mesmo dia. Isso significa que, o próximo passo para aprovar a contrarreforma é a precisa e ser votada em Plenário, pelos deputados e, se aprovada, segue para o Senado. Como se trata de uma alteração constitucional, são necessários votos de, pelo menos, 3/5 dos deputados e deputadas, ou seja, 308 votos, em dois turnos de votação. Já no Senado, são necessários 49 votos, em processo que também ocorre em dois turnos.

Essa PEC tem sido vendida por seus defensores como uma modernização do Estado. Mas a verdade é que se trata de mais uma expressão da ofensiva neoliberal, mais um ataque à classe trabalhadora que está na mesma esteira de inúmeros ataques que compõem a agenda do governo Bolsonaro: Reforma Trabalhista, Marco Temporal sobre terras indígenas, privatização dos Correios, e Reforma da Previdência.

Envolta por propagandas enganosas sobre um suposto combate aos privilégios dos servidores públicos, a verdade é que a Reforma Administrativa é um ataque direto a todos os usuários de serviços públicos – e não apenas aos servidores públicos. Todos aqueles que usam o SUS, o SUAS, as escolas e universidades públicas e todo e qualquer serviço público serão afetados. De fato, a Reforma Administrativa implementa uma mudança no papel do Estado: o coloca como um subsidiário do mercado e, justamente por isso, atinge diretamente os mais pobres. Ao colocar o mercado como protagonista e o Estado como complementar, o resultado é uma presença ainda mais precária do Estado em setores que não são lucrativos para a iniciativa privada.

Há alguns pontos que merecem destaque justamente por demonstrarem que a PEC 32 não é só um ataque ao conjunto dos servidores públicos, mas a toda a população.

O primeiro ponto diz respeito à estabilidade do servidor público. A propaganda sobre a “reforma administrativa” prega que a estabilidade é um aspecto negativo, pois seria fonte de acomodação dos trabalhadores e resultaria em atendimento/atuação precários, porque, supostamente, os servidores não podem ser punidos e perderem os seus empregos. Ora, isso não é verdade: há mecanismos de avaliação e, se for o caso, de punição e mesmo demissão de trabalhadores do serviço público quando não cumprem suas funções e/ou cometem alguma infração. Mas a demissão ou a punição é sempre pensada em favor do serviço público, não de uma ordem de um político preocupado com sua carreira. A estabilidade garante a impessoalidade e a imparcialidade de um servidor: é a garantia de que o atendimento será à população, não ao contratante (isto é, secretários, ministros, prefeitos, governadores ou presidentes).

A estabilidade é o que possibilitou, por exemplo, um servidor do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Miranda, evitar a compra da Covaxin, um processo com vários indícios de corrupção e favorecimento de políticos (ligados diretamente a Bolsonaro) que optaram por lucrar com a morte durante a pandemia de COVID-19. É a estabilidade que evita os esquemas de “rachadinhas” – prática na qual os trabalhadores indicados por um certo político devem destinar parte do seu salário aos seus chefes (e o fazem porque pouco é melhor do que nada). Em outras palavras, o combate à estabilidade não resolverá, mas aprofundará problemas como corrupção ou desvios de trabalhadores nos serviços públicos, pois abrirá espaço para apadrinhados e práticas clientelistas.

Se há problemas nos serviços públicos hoje, eles resultam da precarização resultante da ausência de financiamento, agravada qualitativamente pela Emenda do Teto dos Gastos aprovada após o golpe de 2016 que congelou investimentos em áreas como educação, saúde e seguridade social. A precarização dos espaços e dos serviços públicos também se manifesta como uma precarização do trabalho:  aumento do trabalho, ausência de contratações, necessidade de realização de tarefas sem formação para realiza-las adequadamente e uma série de outros fatores que realmente fazem com que, aparentemente, o servidor público não esteja trabalhando adequadamente. No entanto, é necessário que compreendamos as condições nas quais seu trabalho é realizado e o quanto muitos estão adoecidos e/ou em sofrimento por isso.  

Outro ponto do texto aprovado autoriza a contratação e a parceria com empresas do setor privado e organizações sociais para gestão dos serviços públicos. Na prática, isso significa a privatização dos serviços públicos. Esta medida deixa evidente a tentativa de alteração de lógica de funcionamento do Estado e dos serviços públicos.

Em um dos novos artigos propostos (o 37-A), apresenta-se a possibilidade de firmar “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares”. Na prática, isso poderá resultar em maior aparelhamento do aparato estatal por políticos e partidos no governo, ao possibilitar que estes realizem contratos com as empresas que lhe são mais afins para ampliar lucros, usando a estrutura e os trabalhadores do Estado. Apresentada como uma inovação, na prática a medida resultará em precarização ainda maior dos serviços públicos: onde pode ser lucrativo, o Estado trabalha para a iniciativa privada; onde não o é, o atendimento ao público fica abandonado.

Um último ponto que merece destaque é a tentativa de tirar a prerrogativa do Legislativo na regulamentação de mudanças nos serviços públicos previstas na PEC, a transferindo para o Executivo, inclusive por Medida Provisória. Isso significa que, ao invés de passar pela câmara dos deputados e dos senadores, qualquer alteração pode ser feita diretamente pelo presidente. Seria dar poder total para Bolsonaro – ou qualquer outro presidente subordinado aos interesses do capital – o poder de fazer mudanças para prejudicar ainda mais os servidores e os usuários de todo e qualquer serviço público.

A resistência contra a Reforma Administrativa

Os serviços públicos nunca existiram de acordo com o que foi promulgado na Constituição Federal de 1988, pois esta veio à existência em uma conjuntura de ofensiva neoliberal, que busca máximo de Estado para banqueiros e especuladores e mínio de Estado garantindo direitos para a classe trabalhadora. Ainda que alcançasse, sabemos que há limites muito grandes nas políticas sociais e nos serviços públicos dentro da ordem do capital, pois eles sempre serão insuficientes para resolver a desigualdade social que assola a classe trabalhadora. No entanto, a “Reforma Administrativa” é um retrocesso nas (poucas) possibilidades que temos de ter acesso à saúde, à educação e a uma série de itens que deveriam ser básicos para todas as pessoas.

Por isso, a luta contra a Reforma Administrativa é uma luta de todas e todos e está ligada às lutas contra o governo genocida de Bolsonaro. A pandemia de Covid-19 revelou a importância dos serviços públicos. O assustador número de mortos pelo vírus que resultou do negacionismo e das inúmeras ações de Bolsonaro para garantir lucros seria ainda maior se não existissem serviços públicos. Da mesma forma, foi o Sistema Único de Saúde e a estabilidade dos servidores públicos que garantiram que parte da população tenha sido vacinada.

A “Reforma Administrativa” é parte de uma agenda do capital para a classe trabalhadora, a qual busca desmontar direitos historicamente conquistados para fazer valer os interesses do mercado e do lucro de banqueiros e patrões. Foi para aplicar tal agenda que Bolsonaro foi escolhido pelo capital. Impedir a aprovação de medidas como a PEC-32 é parte crucial da luta pelo Fora Bolsonaro/Mourão.

Uma parte organizada da classe trabalhadora, compreendendo a centralidade desta luta, tem realizado dias de paralisações e ações de resistência para impedir a aprovação da PEC-32. No mês de setembro, com protagonismo de entidades organizadas no FONASEFE, uma série de ações foram organizadas para impossibilitar a aprovação do texto.

Nas últimas semanas ocorreram protestos no aeroporto de Brasília, particularmente nos horários de chegada de Deputados Federais à capital federal, nos quais escutamos e proferimos gritos com palavras de ordem como “se votar não volta” e “À PEC da rachadinha eu digo não / em defesa da saúde e educação”. Além disso, grupos de sindicalistas têm circulado na Câmara dos Deputados, conversando e pressionando os deputados indecisos e a favor da PEC para votarem contra. Houve, ainda, manifestações feitas em diferentes pontos de Brasília e em diversas outras cidades do país.

Estas ações foram decisivas para mudar o voto de deputados que já começam a fazer cálculos eleitorais para o pleito de 2022. Apesar dos limites da luta, a aposta nela se mostrou acertada: o atraso nas votações e as campanhas públicas criaram pressões que podem ter impossibilitado a aprovação da PEC-32/2020 neste ano. Todavia, a ameaça não está eliminada.

É preciso avançar na organização e na mobilização – sem isso, não derrotaremos este projeto do capital para os serviços públicos. A “Reforma Administrativa”, o genocídio que matou mais de 600 mil brasileiros e todos os ataques dirigidos por Bolsonaro se originam de uma mesma raiz: um sistema capitalista em crise cada vez mais destrutivo.

Por isso, paralisações e ações como ocorreram em setembro são importantes, mas não o suficiente. Para, de fato, derrotar o projeto do capital de desmantelamento dos serviços públicos, a classe trabalhadora deve avançar em sua organização e criar as condições para a realizar uma nova greve geral, principal instrumento de luta e pressão da classe trabalhadora que serve não somente para organizar a resistência contra ataques de Bolsonaro, mas reverter derrotas como a Emenda do Teto dos Gastos aprovada pelo golpista Michel Temer e a Contrarreforma da Previdência aprovada pelo genocida Bolsonaro! Acima de tudo, a greve geral poderá colocar a luta pelo #ForaBolsonaro/Mourão em um patamar superior.

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