O que a esquerda socialista no Brasil pode aprender com as eleições no Equador e no Peru?
Equador e Peru são países que dividem fronteiras e têm em comum conosco, não só a floresta amazônica, mas também cicatrizes e feridas profundas criadas em uma história marcada por dominação colonizadora e, mais importante, a permanência da resistência de populações originárias que enfrentam cotidianamente incursões do capital contra sua cultura, seu território e suas riquezas.
Recentemente, os dois países passaram por processos eleitorais que oferecem lições sobre a importância de socialistas no Brasil dialogarem com movimentos sociais e entidades das populações originárias da América Latina. São dois países que foram duramente atingidos pela pandemia de Covid-19,
As eleições no Equador e no Peru oferecem importantes indicadores sobre o que a esquerda no Brasil enfrentará no incerto pleito eleitoral de 2022. A derrota do Correismo para um neoliberal convicto no Equador e a inesperada vitória de um “esquerdista” no primeiro turno das eleições no Peru devem ser debatidas e analisadas seriamente pela esquerda socialista, em especial aquelas e aqueles que não abriram mão de construir uma alternativa socialista ao capitalismo.
Eleições no Equador: Quem foi o culpado pela vitória da direita neoliberal?
No Brasil, diversos setores da esquerda concluíram que a vitória da direita neoliberal no segundo turno ocorrido no último 11 de abril teve como principais culpados a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), setores do movimento sindical como a Frente Unitária dos Trabalhadores (FUT) e líderes e setores do Pachakutik (Movimento de Unidade Plurinacional, formação política criada para canalizar politicamente a insatisfação do movimento indígena orientado pela CONAIE).
De fato, após o primeiro turno, realizado em 07 de fevereiro, diversos setores da CONAIE e do Pachakutik, defenderam uma política equivocada: o voto nulo no segundo turno. Porém, o chamado pelo voto nulo por dirigentes do movimento indígena ocorreu após uma polêmica apuração marcada por intervenções fraudulentas que explicitamente buscavam desfavorecer o Pachakutik e seu candidato, Yaku Pérez, quem ficou de fora do segundo turno por uma diferença de apenas 0,29%.
Quando o segundo turno começou, as pesquisas de intenção de voto indicavam uma vitória do candidato do Correismo, Andrés Arauz, contra o representante da direita neoliberal francamente conservadora, Guillermo Lasso. Porém, explicar a virada que resultou na virada de Lasso como resultado de uma política equivocada defendida pela direção do Pachakutik é um reducionismo absurdo que ignora tudo o que ocorreu no país nos anos anteriores e a forma como a crescente adesão do Correismo ao neoliberalismo deixou marcas profundas nas lutas de classes.
Em especial, houve o afastamento do movimento indígena, o qual, durante os primeiros anos do governo de Rafael Correa, ofereceu seu apoio. Tal diálogo do Correismo com o movimento indígena foi crucial para a realização da Assembleia Constituinte de 2008 que aprovou, pela primeira vez na história do país, uma constituição que introduziu elementos de cosmovisões de populações originárias e reconhece os direitos dos povos indígenas, assim como da natureza e colocava duras restrições ao processo de exploração destrutiva que é realizado pelo agronegócio.
Porém, Correa rapidamente decepcionou expectativas e esperanças ao aprovar a extração de gás e minérios em territórios indígenas. Cumpre assinalar, o Correismo liberou a exploração de territórios que o seu próprio governo tinha proibido explorar. Medidas políticas assim avançaram drasticamente durante o governo de Lenin Moreno, quem foi eleito como o continuador de Rafael Correa e, a partir de 2017, acelerou e intensificou a aplicação de inúmeros ataques contra os indígenas e a classe trabalhadora como um todo.
A adesão de Lenin Moreno ao receituário neoliberal foi tão intensa, que Rafael Correa o acusou de traidor. De fato, a resposta do novo presidente às consequências da crise capitalista mundial foi retirar direitos, aprovar medidas econômicas neoliberais e se submeter completamente ao imperialismo norte-americano, com o qual firmou acordos militares e econômicos. Expressão disso foi o abandono da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), um bloco regional conformado sob o protagonismo do chavismo venezuelano para assegurar cooperação econômica na América Latina e do Caribe, no qual o Equador ingressou por iniciativa de Rafael Correa e seu vice, o próprio Lenin Moreno.
Além disso, Moreno eliminou diversas conquistas progressistas aprovadas pela Constituinte, realizou uma política econômica voltada aos banqueiros e flexibilizou (eufemismo para retirou) direitos trabalhistas. Em 2019, acreditando que poderia dar um salto na agressividade de suas políticas neoliberais apresentou um pacote de contrarreformas que cortava subsídios aos transportes e aumentava preços dos combustíveis. Esta medida foi a gota d’água que fez com que o acúmulo de frustrações explodisse em um espontâneo e massivo levante popular marcado por ações que mobilizaram trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, juventude e mulheres (vale lembrar que, em 2014, sob o governo de Rafael Correa, as mulheres viram o direito ao aborto ser criminalizado). No entanto, o protagonismo dos levantes de 2019 foi do movimento indígena e sua poderosa organização, criada nos anos 1980, a CONAIE. Moreno respondeu com virulenta repressão que serviu apenas para intensificar a luta nas ruas e, no fim, foi derrotado. Moreno teve que retirar o pacote de contrarreformas neoliberais e se converteu em um defunto político que não tentou dar continuidade à sua vida política disputando as eleições de 2021.
As ações populares no final de 2019 escaparam completamente ao controle do Correismo. De fato, o governo de Moreno e os partidos da ordem apelaram à ONU e à Igreja Católica para mediarem negociações com o movimento indígena e, assim, prevenirem o desdobramento do levante em uma verdadeira revolução. Infelizmente, isto somado com o a situação profundamente desfavorável para as lutas criada pela pandemia de COVID-19, houve um arrefecimento das ações populares e indígenas e a insatisfação e revolta das ruas foram canalizadas para o processo eleitoral de 2021.
Nas eleições de 2021, Rafael Correa e o Correismo tentava se reaproximar dos movimentos sociais e dos sindicatos dizendo que o Correismo não tinha relação alguma com o atual presidente, acusando-o de traidor e apresentando uma coalizão política nova (Unión por la Esperanza) e diferente daquela que colocou o Correismo no poder (Alianza País). Ao mesmo tempo, tentaram sinalizar para o capital que fariam um governo em seu favor, apresentando um programa moderado e colocando como candidato, Andres Arauz, um economista que ocupou cargos técnicos no Banco Central do Equador e foi ministro na gestão de Correa. O resultado foi trágico para o Correismo no primeiro e no segundo turno.
No primeiro turno, os partidos progressistas e de esquerda que se diferenciaram do Correismo – o Pachakutik (principal vitorioso que absorveu votos da maioria que ocupou as ruas em 2019) e o Izquierda Democrática– receberam o maior número de votos nas eleições para o poder legislativo. Isto, por si só, mostra o peso do desgaste que o Correismo carrega por ter sido o principal agente instrumentalizado pelo capital em seus ataques contra as populações indígenas e a classe trabalhadora. E, certamente, foi o recurso à fraude que garantiu a chegada de Lasso ao segundo turno, processo contra o qual Arauz não se insurgiu por ter avaliado, equivocadamente, que seria mais fácil derrotar Lasso.
Porém, no segundo turno, Arauz foi derrotado por uma figura corrupta e que expressamente defendia um programa em favor dos super-ricos e totalmente conservador. Porém, na derrota de Arauz e sua coalizão, o fator decisivo não foi o voto nulo chamado pelo movimento indígena e, em especial, Yaku Pérez. A derrota de Arauz foi forjada pelas concessões de Correa ao agronegócio, pela submissão ao FMI e ao imperialismo que guiaram o governo de Lenin Moreno e sempre estiveram presentes em alguma medida no período em que o executivo foi encabeçado por Correa.
A derrota do Correismo foi expressão do crescente distanciamento do Correismo da base eleitoral que elegeu Rafael Correa em 2007: uma classe trabalhadora e um movimento indígena cansados de neoliberalismo e corrupção. A derrota do Correismo de 2021 é uma demonstração de que a política de conciliação de classes não encontra espaço nesta conjuntura de crise econômica, crise sanitária, crise ambiental etc. Mulheres que perderam o direito ao aborto, indígenas que perderam terras, trabalhadores que perderam direitos sociais e ativistas que apanharam da polícia que derrotou o pacote de Moreno carregam a memória dos erros do Correismo. Se Arauz queria derrotar Lasso, precisaria sinalizar para o povo porque ele não seria um novo Lenin Moreno.
Há que se sinalizar que apesar da eleição de um ex-banqueiro corrupto e conservador que governará para os super-ricos ser, de fato, uma derrota, esta foi apenas parcial. O governo de Lasso não será tranquilo, mesmo em nível institucional. Lasso não dirige a maioria da assembleia legislativa e só conseguirá aprovar reformas se negociar com o Correismo (o que será mais um teste histórico para o chamado “progressismo” e sua história de traições). Da mesma forma, partidos que canalizaram a insatisfação popular, em especial o Pachakutik, ganharam grande força na assembleia legislativa e certamente criarão obstáculos institucionais para Lasso.
Há contradições importantes no Pachakutik e na CONAIE que provavelmente se manifestarão durante o governo de Lasso. É preciso lembrar que a CONAIE, em 2019, ao invés de escutar as demandas das ruas, não buscou derrubar Moreno e priorizou a saída negociada que envolveu a ONU e a Igreja Católica. Esta postura contraditória com os movimentos se manifesta no programa difuso e contraditório do Pachakutik. De fato, Yaku Pérez, antes de cometer o erro sectário de chamar voto nulo no segundo turno, também fez declarações favoráveis ao golpe que ocorreu na Bolívia em 2019. Isto significa que há um sério risco de a CONAIE e o Pachakutik conduzirem setores expressivos do movimento indígena para um isolamento que pode, até mesmo, fortalecer a direita e um sistema político que não favorece seus interesses e bandeiras.
Por outro lado, se o Pachakutik for capaz de instrumentalizar suas conquistas eleitorais em favor da organização dos movimentos sociais e da intensificação de lutas como os levantes do final de 2019, então o governo de Lasso provavelmente durará pouco. Será mais um presidente derrubado em uma longa lista que revela a combatividade dos setores populares e indígenas na América Latina. Em 2019, a classe trabalhadora equatoriana demonstrou que não aceitará passivamente mais ataques contra suas condições de vida. Porém a eleição de Lasso em 2021 demonstra que essa força nas ruas não basta para vencer. É preciso forjar uma alternativa que aprenda com os erros do Correismo e ultrapasse os seus limites. Mais do que nunca, está posta a necessidade de se construir uma alternativa de esquerda para se derrotar a direita e fazer a esquerda avançar rumo à construção de uma sociedade capaz de fazer valer tudo aquilo que os movimentos indígenas tem defendido historicamente.
Peru: Por que uma contraditória “extrema-esquerda” foi para o segundo turno?
Diferentemente do Equador, no Peru não há fortes movimentos sociais ou uma organização política de indígenas tão forte e importante como a CONAIE. De fato, a luta repressiva contra o Sendero Luminoso marcou decisivamente as lutas de classes no país. A repressão estatal não serviu apenas para esmagar a maior organização maoísta do continente latino-americano, que utilizou indiscriminadamente métodos terroristas que atingiram inclusive camponeses, trabalhadores e indígenas. Mas a suposta luta contra o “terrorismo” do Sendero Luminoso pelo Estado, em especial durante a ditadura de Fujimori, foi crucial para reprimir o conjunto da classe trabalhadora e suas organizações no país. De fato, em qualquer momento que setores combativos da classe trabalhadora começam a se organizar, a grande mídia e os governos combinam esforços para combater e prevenir “ameaças terroristas” provenientes das organizações de esquerda.
Isso não significa que inexistem lutas no país, pelo contrário. O ativismo e a combatividade da classe trabalhadora e da juventude fizeram com que três presidentes fossem derrubados desde 2016 – ano em que Pedro Pablo Kuczynski foi eleito presidente utilizando uma plataforma populista de luta contra a corrupção (pauta extremamente sensível desde a já citada ditadura de Alberto Fujimori).
O sinal mais recente da combatividade e profunda insatisfação da classe trabalhadora e da juventude no Peru foi o levante marcado por massivas manifestações ocorridas em novembro de 2020. A chamada juventude bicentenária foi às ruaspara repudiar o sistema político existente que empossou, por meio de uma manobra golpista, Manuel Merino como presidente. Apesar de uma repressão brutal, que inclusive assassinou dois jovens ativistas (Inti Sotelo e Bryan Pintado), a chamada juventude bicentenária (em referência a sua proximidade com os 200 anos de independência do Peru que serão completados em julho deste ano) ocupou as ruas e obrigou o congresso, apenas seis dias após a nomeação de Merino, a indicar um novo presidente e convocar eleições gerais para 11 de abril de 2021.
O processo eleitoral foi marcado por uma enorme fragmentação, tanto da esquerda quanto da direita, e teve um resultado surpreendente, inclusive para a esquerda peruana. Entre a esquerda, esperava-se que Verónika Mendonza e sua coalização Juntos por el Perú, obtivessem as maiores conquistas para assembleia legislativa e o avanço para o segundo turno das eleições presidenciais. Isto porque, em 2016, como candidata da coalizão Frente Amplio, Verónika ficou em terceiro lugar com 18,8% dos votos e sua coalizão elegeu vários deputados. Porém, Frente Ampliodecepcionou a população ao cometer vários erros oportunistas, especialmente capitulando às pressões por compor um governo empossado após manobras golpistas do legislativo, ao invés de vocalizar e canalizar as demandas da juventude e da classe trabalhadora em luta que clamavam por uma nova Assembleia Constituinte e novas eleições gerais.
Esses erros políticos resultaram em um racha na coalizão Frente Amplio e dizimou sua base eleitoral. Verónika Mendonza, apesar de ter tentado se diferenciar dos erros da coalizão Frente Amplio, não conseguiu eliminar o peso criado pelas capitulações frente à crise do sistema político peruano e o rebaixamento do programa político na campanha eleitoral de 2021 para evitar o rótulo de “esquerdista” ou “terrorista” não deu resultados favoráveis, pelo contrário houve uma grande derrota eleitoral: Verónika ficou em sexto lugar, com apenas 7,8% dos votos.
Ao mesmo tempo, uma formação política marginal – com raízes no maoísmo stalinista que sempre marcou um setor da esquerda no Peru – foi capaz de atrair e canalizar em votos a insatisfação popular demonstrada nas ruas em 2020. Perú Libre e seu candidato a presidente, Pedro Castillo, foram os principais vitoriosos do primeiro turno. Castillo e seu partido são descritos como forças de “extrema-esquerda” que resgatarão o terrorismo do “Sendero Luminoso”. De fato, a direção do partido de Castillo é composta por stalinistas que afirmam seguir o “marxismo-leninismo” e as ideias de Mariátegui. Mas não é isso que assusta as elites peruanas, mas sim o apelo de massas da plataforma antineoliberal do Perú Libreque, apesar de inúmeros limites, critica a desregulamentação do mercado em favor do capital, defende a nacionalização de setores chaves da economia e, dialogando com o movimento que foi às ruas em 2020, propõe a realização de uma Assembleia Constituinte nos primeiros meses de seu governo.
Além disso, Pedro Castillo, um professor da educação básica é uma figura que não esconde seu passado como sindicalista que dirigiu uma vitoriosa greve da educação em 2017 e sua distância em relação às elites peruanas. Seu perfil foi perfil foi capaz de atrair a atenção de um povo que buscava alguém de fora do establishment político. Parcelas significativas de camponeses, indígenas, trabalhadores e a juventude que repudiou o sistema político vigente nas ruas em novembro de 2020 apoiaram eleitoralmente Castillo e seu partido no pleito de 11 de abril.
No entanto, Castillo e seu partido não são isentos de contradições e isto pode afetar os resultados do segundo turno (o qual ocorrerá em 06 de junho). Em primeiro lugar, sendo coerentes com o conservadorismo social do stalinismo e do maoísmo que atravessa o Perú Libre, Castillo apresenta posições explicitamente contrárias a temas como o casamento de casais homoafetivos, a “ideologia de gênero” e a descriminalização do aborto. Além disso, após o início da campanha para o segundo turno, para responder às acusações amplamente difundidas pela direita conservadora e neoliberal, Pedro Castillo e a direção do Perú Libretêm moderado seus discursos. Por um lado, Castillo tenta se apresentar como uma figura mais independente em relação ao Perú Libre. Por outro lado, a direção do Perú Libre passou a afirmar que se opõe ao capitalismo, mas não defende um sistema socialista ou comunista. Todo o foco da campanha tem sido sobre a pauta da Assembleia Constituinte – a qual, de fato, galvanizou os movimentos do final de 2020.
Apesar destas contradições, não votar em Castillo no segundo turno é um erro. A sua rival é Keiko Fujimori, filha do ditador que hoje está preso por corrupção. Keiko e seu partido também são alvo de inúmeras denúncias de corrupção e isto marca enorme rejeição popular. Uma vitória de uma Fujimori seria uma grande derrota para todas e todos que rejeitaram o sistema político apodrecido que predomina no Peru e rejeitam a Constituição herdada dos tempos de ditadura fujimorista. Além disso, Keiko Fujimori, se eleita, certamente defenderá medidas político-econômicas que apenas castigarão ainda mais uma classe trabalhadora que já vive em condições sociais terríveis. Derrotar Keiko Fujimori é crucial para que a classe trabalhadora e, inclusive os movimentos LGBTQI+ e feministas que lutam contra as opressões tenham um terreno mais favorável para defender suas bandeiras e seus direitos. O mecanicismo que atravessa a defesa do voto nulo no segundo turno por organizações de esquerda no Peru é o mesmo presente naquelas organizações no Brasil que ainda não compreenderam que o golpe de 2016 foi uma derrota para nossa classe.
Uma possível vitória de Castillo, quem até o momento (05 de maio) lidera as pesquisas, não resultará em um governo tranquilo, ainda que neste momento votar nele seja a melhor opção que a classe trabalhadora tem. Diferentemente do Equador, apesar do Perú Libreter a maior bancada na assembleia legislativa, o novo presidente enfrentará um parlamento hegemonizado pela direita, com forte presença de um partido de extrema-direita, Renovación Popular. A sobrevivência política de Castillo dependerá de sua capacidade de responder aos anseios populares que se manifestaram em novembro de 2020. Infelizmente, suas posições conservadoras podem prejudicar sua relação com a juventude que foi às ruas em 2020, marcada por uma consciência simpática às pautas das lutas feministas e contra a opressão LGBTfóbica. Da mesma forma, a inexistência de uma forte organização de populações indígenas, como a CONAIE, e a fragilidade do movimento sindical no Peru deixam a conjuntura que será enfrentada por m possível governo Castillo ainda mais difícil. Tudo isso também indica como a tarefa de organização da classe trabalhadora em entidades de massas capazes de fazer a sua luta avançar, é algo urgente para a classe trabalhadora, as populações indígenas e a juventude no Peru.
Lições para socialistas internacionalistas
O agravamento da crise do capitalismo pela pandemia de Covid-19 criou uma conjuntura extremamente complexa e volátil para a esquerda socialista. Se tratamos de dois processos eleitorais aqui, é porque queremos tirar conclusões para uma das disputas que tem atravessado toda a esquerda no Brasil e marcado os debates internos do PSOL: o que fazer nas eleições de 2022?
Acreditamos que aquelas e aqueles que ainda não se renderam à ordem capitalista e buscam construir uma alternativa socialista revolucionária, têm muito a aprender com os complexos e contraditórios processos que estão em curso no Equador e no Peru e apresentamos a seguir algumas das principais lições.
Lição 1: Conquistas eleitorais para a esquerda dependem cada vez mais das lutas
No Peru e no Equador, os processos eleitorais foram antecedidos por movimentos massivos nas ruas. Quando os processos eleitorais ocorreram, as elites e os governos da ordem ainda tremiam frente à possibilidade dos levantes de massas se desdobrarem em revoluções. De fato, mesmo a derrota parcial no Equador é um indicador de que canalizar politicamente a insatisfação popular presente nas ruas é uma tarefa para a esquerda, caso contrário amargará derrotas.
Antes do processo eleitoral do Equador, o atual presidente, Lenin Moreno, foi transformado em um defunto político pelos levantes populares que derrotaram em sua tentativa de implementar um pacote de medidas neoliberais que torturaria o povo equatoriano. Da mesma forma, as manifestações que ocorreram no Peru, em especial em novembro de 2021, foram o fator decisivo que obrigaram uma direita golpista a convocar eleições. Vale lembrar um outro exemplo latino-americano: na Bolívia, uma asquerosa e violenta direita golpista viu sua manobra ser derrotada por movimentos sociais que organizaram bloqueios de estradas, paralisações e manifestações. Sem isso, a vitória do MAS de Evo Morales em outubro de 2020 contra a direita golpista teria sido impossível.
As classes dominantes em uma conjuntura marcada por polarização social, não entregará o executivo sem ter uma faca no seu pescoço colocada por ações da classe trabalhadora organizada. Esta lição é crucial para nós. Bolsonaro, a todo momento, flerta com a aventura golpista e esta é uma alternativa que não está totalmente descartada. Mesmo aqueles que priorizam apenas as eleições de Lula em 2022 precisam escutar o recado presente nas experiências da Bolívia, do Equador e do Peru: se quiserem seu candidato disputando as eleições em 2022 e ocupando a cadeira da presidência no caso de uma vitória, precisam garantir isso ocupando as ruas desde já. Isto já tinha sido demonstrado pelo erro que a direção do PT, da CUT e outras entidades cometeram, após o golpe de 2016, na luta pelo Fora Temer: apostaram na tática de apenas sangrar Temer até as eleições de 2018, período em que apresentariam um candidato para voltar ao executivo. Um grave erro que vemos se repetir hoje entre setores que não priorizam a luta pelo #ForaBolsonaroeMourão, em favor de uma aposta em 2022.
Lição 2: Há cada vez menos espaços para programas que servem dois senhores
Nesse contexto de crise profunda, a proposta de servir dois senhores (de um lado, acenar para o grande capital; de outro, realizar programas sociais focalizados e parciais para os setores mais precarizados da classe trabalhadora), que já era insustentável durante o período de crescimento dos primeiros governos lulistas, foi profundamente derrotada nas duas disputas eleitorais apresentadas aqui. Os candidatos que expressaram, de alguma maneira, a adesão à política de conciliação de classes foram derrotados e perderam apoio significativo ao longo da campanha eleitoral.
Andrés Arauz no segundo turno das eleições no Equador e Verónika Mendonza no primeiro turno das eleições no apostaram que ainda existiria um espaço para uma política que, em disputas anteriores, possibilitou avanços para suas organizações políticas. No entanto, com a polarização social criada pelo agravamento da crise capitalista, está cada vez mais difícil conquistar apoio da classe trabalhadora com um programa que tenta agradar elites, patrões e latifundiários.
Uma classe trabalhadora castigada pela pandemia de Covid-19, acontecimento agravado pelo desmonte dos serviços públicos realizado por programas que aderem ao neoliberalismo, não apostará mais naqueles que prometem mais do mesmo e enfeitam medidas neoliberais com algumas pequenas concessões aos setores mais precarizados. Morrer sem oxigênio por vírus ou morrer de fome é a alternativa que a classe trabalhadora enfrenta hoje, enquanto banqueiros, patrões e especuladores estão ficando ainda mais ricos.
A ausência de uma resposta que não mostra um explícito e inequívoco compromisso com a classe trabalhadora foi castigada no Equador e no Peru. É provável que os defensores da política de conciliação de classes no Brasil não vão aprender com isso, já que não defendem uma estratégia de romper com os limites impostos pelo sistema. O que torna ainda mais urgente o PSOL considerar esta lição proveniente das eleições do Peru e da Equador, no processo de construção de seu programa e suas táticas eleitorais.
Lição 3: A insatisfação do povo com os partidos da ordem
Independente dos resultados das eleições para presidência no Equador e no Peru, o fato é que os partidos mais votados para o legislativo no Peru e no Equador foram novas alternativas políticas de esquerda. Perú Libre e Pachakutik saíram das eleições no Peru e no Equador com as maiores bancadas legislativas. Enquanto isso, aqueles que apoiaram medidas neoliberais ou capitularam para propostas da direita diminuíram ou perderam espaços. Mesmo um trotskista que foi eleito deputado no Peru em 2016, após ter capitulado aos erros da Frente Amplioe depois ter tentado corrigir com um giro sectário, perdeu sua cadeira.
Isto mostra a importância de uma alternativa política que se diferencie dos partidos da ordem, inclusive aqueles de centro-esquerda. É preciso que a esquerda socialista canalize a rejeição a um sistema político que favoreceu as mortes por Covid-19, é atravessado por corrupção e atua em favor do enriquecimento de super-ricos, por meio de uma alternativa política que não esconde sua posição antissistêmica.
No caso do Peru, há um importantíssimo acontecimento. Antes das eleições, Rafael López Aliaga e seu partido, Renovación Popular, apareciam como as principais forças que obteriam vitórias no pleito de abril de 2021. López Aliaga, aprendendo com o Brasil, buscou se apresentar como o Bolsonaro peruano. No entanto, apesar de ter crescido, o Renovación Popular não obteve conquistas maiores e López Aliaga não foi para o segundo turno. Fator atuante nisso, foi a existência de uma alternativa de esquerda disputando os votos anti-establishment. A existência de uma alternativa de esquerda que se apresentou como algo novo, fora do sistema impediu o crescimento de López Aliaga e colocou um candidato de esquerda no segundo turno – o que, apesar de inúmeras contradições, é algo muito melhor do que um cenário em que a classe trabalhadora teria que escolher entre uma Fujimori e um populista de extrema-direita no segundo turno.
O PSOL aparecer como uma alternativa política de esquerda que não é parte da ordem é parte central de sua sobrevivência política na conjuntura. Se continuar a se apresentar como uma alternativa de esquerda ao PT, as vitórias eleitorais que obteve nas eleições municipais de 2020 podem ser amplificadas. Mas não só isso. O PSOL como uma alternativa que não é parte desse sistema político podre e atravessado por corrupção, pode ser o elemento crucial para impedir avanços ou derrotar eleitoralmente o bolsonarismo, a extrema-direita e seus partidos.
Lição 4: Organizar, organizar, organizar
No Peru e no Equador, apesar de avanços e conquistas para a esquerda, há derrotas e obstáculos que se desenham no cenário posto após as disputas eleitorais. Em qualquer um dos casos, certamente as bandeiras dos movimentos indígenas, as mortes por Covid-19 e os anseios da classe trabalhadora e da juventude não serão atendidos pelo legislativo e pelo executivo após as eleições – mesmo no Peru, caso Castillo vença, pois sua vitória apresenta condições mais favoráveis para a esquerda apresentar suas bandeiras e realizar suas lutas, mas enfrentará um legislativo hegemonizado pela direita.
As ameaças que se desenham só podem ser prevenidas se a esquerda for capaz de avançar organizando aquelas e aqueles que se manifestaram nos levantes de 2019 no Equador e de 2020 no Peru. Os contraditórios avanços de formações alternativas revelam que novos e jovens ativistas repudiam o sistema político que atua em favor de elites que sempre se enriqueceram às custas da classe trabalhadora e das populações indígenas e que estão em busca de uma alternativa política.
A capacidade da esquerda de apresentar e construir uma alternativa socialista ou novas organizações é central para fazer as lutas sociais avançarem. Também será crucial para impedir divisões entre aqueles que lutam por um outro mundo. A alienação do Correismo em relação ao movimento indígena foi o fator decisivo na vitória de Lasso. Da mesma forma, uma possível separação entre, de um lado, o movimento feminista e o movimento LGBTQI+, e, de outro, a esquerda peruana em um possível governo de Castillo no Peru terá efeitos desastrosos, como o distanciamento entre organizações apoiadoras de Castillo e a juventude que se manifestou em novembro de 2021, marcada por preocupações com pautas feminista e LGBTQI+.
Em tempos de nacionalismo de extrema-direita, é importante lembrar que a classe trabalhadora não tem nação e resgatar o internacionalismo que sempre foi parte do movimento revolucionário e produziu o que há de melhor no marxismo latino-americano, como a obra do peruano José Carlos Mariátegui. Aprender com as lições das lutas e da situação enfrentada por companheiras e companheiros no Equador e no Peru é algo que pode contribuir para nos prepararmos para os duros desafios que se desenham no horizonte em nossas lutas para derrotar não só Bolsonaro, mas para destruir o sistema que o criou.