Violenta repressão a marcha indígena põe em questão para onde vai o “processo de mudança” boliviano

Após vários meses de tensão e falsas promessas de diálogo, o governo boliviano desatou uma violenta repressão contra uma marcha indígena que pretendia chegar à capital, La Paz. Os povos originários protestavam e pretendiam chamar atenção para o problema da construção de uma estrada que irá atravessar o centro da sua região, o Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Secure (TIPNIS).

Trata-se de uma reserva indígena e ambiental da Amazônia boliviana, riquíssima em diversidade biológica e em espécies raras, ameaçada pelo projeto de construção de uma estrada que ligaria os grandes centros produtores de soja brasileiro aos portos do Pacífico no Chile e Peru. Essa estrada está sendo construída pela brasileira OAS, que contou com isso com um generoso financiamento do BNDES da ordem de 330 milhões de dólares. Trata-se de um projeto que beneficiará os grandes produtores de soja brasileiros, e acelerará o processo de devastação e destruição de importantes trechos da Amazônia. Além disso, por pressão das grandes multinacionais do petróleo, 27% da área do parque já foi declarada pelo governo boliviano como área de aproveitamento de hidrocarbonetos. Entre as empresas que cobiçam o parque, está a brasileira Petrobrás, que em convênio com a francesa Total recebeu direitos de exploração de 9,8% do parque.

Contra esse avanço dos interesses privados sobre seu território, os povos indígenas da reunião se mobilizaram em uma marcha que pretendia chegar a La Paz e obrigar o governo de Evo Morales a ouvir suas reivindicações. Depois de usar vários expedientes, desde desqualificar o movimento, dizendo que a estrada seria construída custasse o que custasse, até de tentar dividi-lo dialogando com “lideranças” sem respaldo da organização da marcha, o governo enviou operativos policiais para impedir a continuidade da marcha. Perto do povoado de Yucumo, cerca de 800 manifestantes, com muitas mulheres e crianças pequenas, foram obrigados a parar enquanto tentavam negociar a continuidade pacífica da marcha com representantes do ministério do interior.

No domingo, dia 25 de setembro, a tropa de choque investiu contra os manifestantes desarmados, lançando bombas de gás lacrimogêneo no meio de mulheres e crianças, e prendendo brutalmente dirigentes e organizadores da marcha. As primeiras notícias davam conta que um bebê havia morrido por ter inalado os gases tóxicos, e várias pessoas estavam desaparecidas. Felizmente, logo se descobriu que ninguém havia morrido, e que vários dos desaparecidos estavam em custódia pela polícia em povoados vizinhos.

Esse caso de um governo que se diz representante dos direitos dos povos originários e defensor da “Pachamama” (mãe-terra) reprimindo uma marcha indígena para defender contratos com multinacionais estrangeiras despertou uma onda de indignação por todo o país. A ministra da Defesa renunciou em protesto, e o ministro e vice-ministro do Interior, além de funcionários de menor escalão, foram responsabilizados pela repressão e obrigados a renunciar. Evo Morales teve que ir a público na noite do dia 26 pedir desculpas por esse fato lamentável, e anunciou a paralisação da estrada até que se fizesse um plebiscito regional sobre o futuro do projeto. Isso não impediu que a COB, pressionada por suas bases, chamasse um dia de greve geral em protesto contra o governo e em apoio à marcha indígena. Essa greve geral foi bem sucedida e parou La Paz no dia 28.

Após uma semana se reorganizando, os indígenas do TIPNIS irão retomar sua marcha essa semana, e prometem não parar sua mobilização até terem uma resposta concreta sobre a situação do seu território. Mais uma vez vale enfatizar que eles não se opõem à estrada em si, mas ao seu atual desenho, que atravessa o meio de seu território, que foi definido pela brasileira OAS sem ouvir os representantes da população, num processo de licitação recheado de acusações de irregularidade. E também não é só a estrada, também há a questão das empresas petroleiras que avançam sobre o parque, e da colonização de cocaleiros, que atuam como “vanguarda” do avanço do desmatamento da região, abrindo caminho para a posterior instalação de outras empresas. E para isso contam com o incentivo do governo.

Seis anos após ser eleito prometendo concretizar o “processo de mudanças” iniciado na guerra do gás, o governo de Evo Morales aparece cada vez mais comprometido com interesses contrários ao da maioria da sua base social (multinacionais americanas e brasileiras, a burguesia agroindustrial de Santa Cruz, elementos da oposição de direita que passaram a integrar o governo) e há um questionamento generalizado às suas ações. Em dezembro do ano passado, por pressão das multinacionais petroleiras, ele decretou um “gasolinazo” que aumentava em mais de 100% o preço da gasolina, óleo diesel e outros derivados, afetando duramente a cesta básica familiar. A indignação popular o obrigou a revogar tal aumento dois dias depois, mas esse foi só o primeiro atrito. Agora, com a repressão ao movimento indígena, ele enfrenta uma ruptura dos setores mais radicalizados do movimento popular que antes o apoiavam. A Federação Sindical dos Mineiros da Bolívia emitiu uma declaração de que não apoiava mais o governo e exige a estatização das principais empresas estrangeiras, que ainda controlam a maior parte do setor de mineração e hidrocarbonetos do país. 

Nessa situação, há um crescente questionamento dos movimentos sindical e popular sobre o que deve ser feito. A oposição de direita tenta se aproveitar desse sentimento de desilusão para desgastar o governo e preparar sua volta ao poder. Isso inclui até mesmo o financiamento a certos movimentos indígenas do Oriente, mas isso só mostra que é ainda mais urgente que os trabalhadores e camponeses bolivianos, através de suas organizações, apresentem uma alternativa classista, socialista e independente tanto ao falso nacionalismo indígena do MAS quanto à demagogia hipócrita da oposição de direita. Mais do que nunca, hoje é necessária a construção de uma alternativa política, de massas, socialista e revolucionária, capaz de levar adiante a bandeira da nacionalização dos recursos naturais erguida na guerra do gás em 2003.

Aqui, no Brasil, é dever dos sindicatos, movimentos sociais e ativistas de esquerda construir um movimento de solidariedade para com nossos irmãos bolivianos, que estão se enfrentando diretamente com o capital transnacional brasileiro, que se apropria de seu território e suas riquezas naturais.  

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