Covid-19: a segunda onda de uma tragédia anunciada
“Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, foi o comentário de Bolsonaro na semana passada, enquanto as mortes por Covid batiam recorde diariamente. O Brasil é um dos focos mais preocupantes da pandemia no mundo, com um rápido aumento dos casos e hospitais lotados, impulsionados por uma nova cepa do coronavírus, ao mesmo tempo que o governo sabota todas as medidas para combater a Covid.
Os últimos sete dias até o dia 08 de março foram os piores desde o início da pandemia há um ano atrás. Segundo os dados coletados pela imprensa, 1540 pessoas morreram em média por dia, um aumento de 41% comparado com duas semanas atrás. Os número de novos casos confirmados chegaram a 66553 na média diária, um aumento de 37%.
A segunda, e mais forte, onda da pandemia começou em novembro e acelerou em dezembro. A expressão mais dramática foi novamente no Amazonas, que já tinha sofrido duramente na primeira onda. Todos lembramos as imagens do ano passado, dos cemitérios sobrecarregados, abrindo valas comuns para os caixões. Agora foi pior.
Diante da segunda onda, o governo estadual tentou fechar o comércio em dezembro, mas recuou após protesto de comerciantes e bolsonaristas, que comemoraram nacionalmente a reabertura. Após o natal as medidas foram reintroduzidas, mas já era tarde de mais.
No início de janeiro foi identificado uma nova cepa do coronavírus em uma família japonesa que voltava de uma visita ao Amazonas. Essa nova cepa, designada “P.1”, se mostrou mais contagiante e com capacidade de infectar quem já tinha tido a doença antes. Um estudo da Universidade de Oxford e da Universidade de São Paulo (USP) avalia que entre 25% e 61% de quem já teve a Covid podemser infectados pela nova cepa, que também é entre 1,4 e 2,2 vezes mais transmissível.
Essa nova cepa está entre as que mais preocupam no mundo, junto com a britânica (B.1.1.7), a sul-africana (B.1.351) e a californiana (B.1.427 e B.1.429), e já foi encontrada em 20 países.
As pesquisas mostraram que a nova cepa deve ter surgido em novembro, no mês de eleições. Em dezembro já era responsável por 50% dos casos no estado do Amazonas, e em janeiro por 90%.
Isso levou a uma sobrecarga dos hospitais no estado e um aumento rápido do número de mortes diárias, chegando ao dobro do que foi na primeira onda. Além do governo estadual, a empresa White Martins, que fornece oxigênio aos hospitais, alertou ao Ministério da Saúde que o oxigênio estava acabando, já que a demanda tinha rapidamente sido quintuplicada. Ao mesmo tempo o Ministério da Saúde estava pressionando pelo uso de medicamentos sem eficácia, como cloroquina e azitromicina. O ministério ignorou o alerta por vários preciosos dias, o que agora é alvo de inquérito no STF. Pacientes começaram a morrer asfixiados pela falta de oxigênio, enquanto parentes suplicavam por ajuda.
Já antes do fim de fevereiro havia mais mortos por Covid no Amazonas esse ano do que no ano passado inteiro. Enquanto isso a segunda onda varria o país. A falta de medidas de isolamento social eficientes fez com que a contaminação crescesse rapidamente nas festas de fim de ano.
Enquanto há um espaço especial reservado para Bolsonaro no inferno das pandemias, em geral os governos estaduais também falharam em tomar as medidas adequadas. Demoraram a reconhecer que havia uma segunda onda, apesar doalerta dos cientistas, para não atrapalhar as eleições e o comércio donatal, cedendo à pressão dos empresários.
Ao mesmo tempo estava acabando o auxílio emergencial e não havia compensação suficiente para os pequenos e médios empresários que já sofreram imensamente durante a primeira onda da pandemia. A política dos governos foi de tentar administrar uma taxa de ocupação das UTI um pouco abaixo do colapso, com medidas marginais, como toque de recolher durante as noites.
Nessa situação de cansaço após um ano de isolamento, crise na economia, falta de apoio dos governos, junto com a campanha negacionista dos bolsonaristas, medidas não coordenadas e meia boca se mostraram bem menos eficientes. Em São Paulo, por exemplo, mesmo na fase vermelha, o que seria a mais grave, continuam abertas escolas, igrejas, construção civil, indústrias, etc., levando ao transporte público superlotado e desacreditando as medidas como um todo.
Por isso, nem o cancelamento do carnaval foi suficiente para frear a pandemia, agora com o variante P1, que já foi confirmada estar presente em 17 estados do país. Um estudo da Fiocruz aponta que o P1 já é responsável por 70% dos casos com grande carga viral no Paraná. Em praticamente o país inteiro está sendo batido o recorde de internações. Em muitos lugares os hospitais públicos e privados estão lotados e com longas filas de espera. E nessa filas, as pessoas morrem.
Ao mesmo tempo o governo federal vem cortando as verbas para vagas de UTI para tratar da Covid. No ano passado o Ministério da Saúde chegou a bancar quase 20 mil vagas no país inteiro. No final de dezembro eram 9,5 mil e nos meados de fevereiro 4,9 mil. O ministério alega que isso tem a ver com o fim do estado de calamidade, mas isso era um prazo que já sabiam com meses de antecedência e agora os estados estão recorrendo ao STF para garantir o financiamento.
Vacinação desnecessariamente lenta
Somente 4% da população receberam sua primeira dose da vacina. O governo federal foi criminalmente tardio em fechar contratos sobre fornecimento da vacina, enquanto Bolsonaro ativamente gerava desconfiança contra as vacinas. Quando o Instituto Butantan fechou o contrato com a Sinovac para o fornecimento da vacina Coronavac, Bolsonaro desautorizou que o Ministério da Saúde fechasse o contrato, dizendo que “ninguém quer a vacina chinesa de João Dória”.
Foi só com a crise do Amazonas começando a afetar a popularidade de Bolsonaro que o governo deu um cavalo de pau sobre vacina, tentando agora mostrar iniciativa. Mas vários meses valiosos foram perdidos, e com isso dezenas de milhares de mortes. Além da Coronovac, foi fechado contrato com a Astra-Zeneca, mas essas empresas ainda não conseguiram enviar quantias suficientes.
Enquanto Bolsonaro antes falava que “o Brasil é um mercado grande, quem que tem que vir atrás da gente são eles”, foi revelado agora que o governo negou três vezes ofertas da Pfizer no ano passado. O governo alegou que não concordava com as condições, mas agora estão aceitando e se dizem prestes a fechar o acordo. A vacina já tem registro definitivo no país. A diferença é que ao invés de receber as primeiras duas milhões de doses em dezembro, elas chegarão em maio, cinco meses depois!
Além disso, o governo ainda prioriza a busca por uma cura milagrosa. Após o fracasso da cloroquina, agora Bolsonaro enviou uma comitiva incluindo Eduardo Bolsonaro, Ernesto Araújo e outros, para Israel, para mostrar interesse em um remédio para tratar a Covid, um spray nasal. Esse remédio ainda está sendo desenvolvido em fase clínica. Chega a ser bizarro, além da vergonha passada pelo chanceler Araújo por não usar máscara, o fato que realmente existe uma cura “milagrosa” e eficaz presente lá: a maioria da população já foi vacinada. Foram na final da Libertadores e ficaram maravilhados com a habilidade do gandula…
Porém, por incrível que pareça, tudo não é culpa de Bolsonaro. O Brasil tem um potencial para lidar com esse tipo de pandemia, mas que foi minado por décadas de medidas neoliberais e cortes na ciência. O país tem o maior programa de imunização do mundo, dois grandes institutos de vacinas e universidades públicas com pesquisa de ponta. Mas os governo vem cortando as verbas para pesquisa, algo que se agravou seriamente com o governo Bolsonaro. Além disso, a abertura do mercado farmacêutico solapou a capacidade de produção nacional, perdendo na concorrência para empresas estrangeiras. Nos anos 80, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuticos consumidos no país. Agora são somente 5%, reduzindo o país a uma “montadora” de remédios e dependente da importação de IFAs (ingredientes farmacêuticos ativos).
Mesmo assim, teria sido possível lançar um programa de investimento em pesquisa no começo da pandemia para desenvolver uma vacina nacional. O ideal seria obviamente fazer isso em colaboração com universidades e farmacêuticas ao redor do mundo, mas o interesse pelo lucro impede esse tipo de colaboração. Ao invés de ser dependente de insumos da China e Índia, o Brasil poderia produzir para toda a América do Sul. O Instituto Butantan está desenvolvendo uma vacina própria, mas em ritmo mais lento, pensando na “segunda geração” da vacina.
O que está acontecendo no país serve como um alerta para o que pode acontecer no mundo inteiro. Se demorar para vacinar, ao mesmo tempo que deixa o vírus se espalhar com medidas insuficientes, novas mutações podem colocar em risco a eficácia das vacinas atuais. Por isso não faz sentido os países ricos acharem que estão se salvando correndo na frente com a vacina, mas privando a maioria do planeta, onde a vacina pode demorar mais 2-3 anos, correndo o risco do vírus voltar com vingança aos países ricos mais pra frente.
Já se mostrou que a vacina da Astra-Zeneca não é tão eficaz contra a variante sul-africana do vírus. Ainda falta confirmar a eficácia contra a P1 aqui. Um estudo, ainda preliminar conduzido por cientistas da USP, Unicamp, Universidade de Oxford entre outras instituições indica que o P1 é capaz de driblar a os anticorpos não só de quem já teve a doença como de quem tomou duas doses da Coronavac. Possivelmente isso pode ser superado por uma terceira dose, uma outra vacina, outalvez seránecessário um reforço anual, como contra a gripe. As vacinas ainda podem ser importantes para dar proteção contra as formas graves da doença, mas não impediriam a propagação.
A África do Sul, a Índia e outros países têm levantado a demanda para suspender as patentes durante a pandemia para acelerar a produção. Mas os países ricos, que são sede das gigantes farmacêuticas, impedem isso, e com apoio do governo brasileiro. Os gastos da pandemia são muito superiores aos lucros das farmacêuticas, mas se trata de defender os fundamentos do sistema.
Somente com uma suspensão de todas as patentes de remédios e transferência de tecnologia e conhecimento imediato, junto com a estatização das farmacêuticas sob gestão e controle de trabalhadores, será possível garantir a produção necessária de vacinas para o mundo inteiro.
Para resumir, é necessário combater a pandemia em três frentes:
• Investimento imediato na saúde, com abertura de leitos, contratação de funcionários/as, produção de insumos e equipamento de proteção. Tudo isso como parte de um plano nacional, com empresas públicas, estatizando a capacidade presente necessária e investindo em ampliação.
• Tomar todas as medidas de isolamento necessárias e criar as condições para um verdadeiro lockdown, que pela propagação atual do vírus precisa ser nacional, fechando tudo que não seja realmente essencial. Reintrodução imediata do auxílio emergencial de 600 reais (1200 reais para mães solo), garantir crédito para pequenas e médias empresas, suspender a cobrança de serviços básicos, proibir despejos e cortes de fornecimento de água e luz durante a pandemia. Educadoras(es), funcionários(as), pais e estudantes têm que ter poder de vetar o retorno às aulas enquanto as condições permanecerem inseguras.
• Garantir vacinas para toda a população. Investir na pesquisa e exigir transferência de tecnologia e conhecimento para acelerar a produção o mais rápido possível. Estatizar as farmacêuticas sobre controle e gestão de trabalhadores.