Mianmar: Como a revolução pode vencer?
As greves gerais mostram potencial para derrotar o golpe. O movimento de massa deve começar a organizar a sociedade
Mais de um mês após o golpe militar liderado por Min Aung Hlaing, a luta entre o povo e os militares de Mianmar continua. Greves paralisam a vida cotidiana. As greves gerais de 22 de fevereiro e 8 de março foram os destaques do movimento até agora. O exército, o Tatmadaw, reagiu depois de 22 de fevereiro com ainda mais violência, o que deixou muitos mortos.
A vítima mais conhecida desta repressão mortal foi Angel Kyal Sin, de 19 anos. Ela foi morta em 3 de março em Mandalay, a segunda maior cidade do país, enquanto usava uma camiseta com o slogan: “Tudo vai ficar bem”. Houve 38 mortes no dia 3 de março, tornando-o o dia mais sangrento até agora. A primeira fatalidade foi a estudante Mya Thwate Khaing, de 20 anos, que foi baleada no dia 9 de fevereiro e morreu dez dias depois.
Essas mártires do movimento são mulheres jovens, assim como muitos dos líderes do movimento. A classe trabalhadora ocupa uma posição central: a greve tem sido a principal arma do movimento e mais uma vez se mostra particularmente eficaz. Entre os primeiros grupos que entraram em greve, estavam trabalhadores de setores que já haviam estado envolvidos em greve nos últimos anos. Os trabalhadores da saúde estavam na vanguarda após um ano de crise sanitária. Professores e jovens tinham tomado medidas em 2014-15 contra uma reforma educacional, criando um sindicato da educação mais forte. Os trabalhadores do setor têxtil, em rápido crescimento, que agora representa até 900 mil trabalhadores, a maioria deles mulheres, já entraram em greve em 2019 por melhores condições de trabalho. A pandemia global e a queda da demanda por têxteis por parte das principais marcas de vestuário levou a demissões e novos protestos mais recentemente.
As greves gerais mostram o potencial para derrotar o golpe. Quando os trabalhadores fecham tudo, o comando do exército não tem para onde ir. Para realmente afastá-los do poder, o próprio movimento deve começar a organizar a sociedade com base nos interesses e no envolvimento da maioria da população. Uma vitória para este movimento revolucionário teria consequências internacionais. Assim como este movimento viu a saudação de três dedos dos ‘Jogos Vorazes’ se espalhar internacionalmente, o exemplo de greves fortes e vitoriosas pode se espalhar de Mianmar por toda a região e além.
Greves gerais
No período que antecedeu a greve geral de 22 de fevereiro, houve várias ações de protesto para interromper a vida cotidiana. Em 17 de fevereiro, por exemplo, as pessoas falsificaram pane de carros, paralisando todo o tráfego em grandes cidades como Yangon. Nos vilarejos, foram colocados troncos de árvores através das estradas para impedir a entrada de veículos do exército.
Na primeira fase do protesto contra o golpe militar de 1º de fevereiro, trabalhadores da saúde e da educação assumiram a liderança. Eles entraram em greve e este exemplo foi logo seguido em muitos outros setores.
Não há uma longa tradição de sindicatos em Mianmar. Os sindicatos foram restabelecidos no movimento de 1988 contra a junta militar e só estão funcionando legalmente desde 2011. A Confederação Geral dos Sindicatos tinha apenas 65 mil filiados em 2018, numa população de 54 milhões. Há alguns sindicatos particularmente militantes que cresceram com base na ação dos trabalhadores. É o caso, por exemplo, do setor de vestuário, que cresceu particularmente rápido nos últimos anos, e no qual os trabalhadores começaram a exigir sua parte do bolo. Em 2019, houve uma onda de greves por aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Isto foi seguido em 2020 por greves contra demissões arbitrárias, direcionadas a membros do sindicato, e por condições seguras de trabalho durante a crise sanitária. Ao longo do atual movimento contra o golpe, os sindicatos estão crescendo e novos sindicatos estão surgindo.
Em 22 de fevereiro, milhões de pessoas entraram em greve. Não apenas em setores onde já estavam ocorrendo greves, mas em todos os setores da economia. Desde minas e fábricas até restaurantes e vendedores ambulantes informais. Tudo fechou e permaneceu fechado o dia todo. Centenas de milhares de pessoas foram para as ruas em todas as cidades e no campo. Esta greve geral foi chamada de “revolução 22222”, depois dos cinco ‘2’ que apareceram na data de 22 de fevereiro de 2021. O site Irrawaddy.com relatou que em Mandalay, a segunda maior cidade do país, parecia que literalmente cada habitante saiu para as ruas em uma manifestação que, segundo os veteranos do movimento de protesto de 1988, era ainda maior do que esta mobilização histórica. Mesmo em Naypyidaw, uma cidade que foi construída artificialmente entre 2002 e 2012 para servir como capital “segura” para o regime, houve greves e manifestações.
Uma greve que é tão generalizada paralisa todo o país. Isto tem consequências. As ações tomadas por funcionários dos bancos impossibilitaram os líderes golpistas de pagar salários de militares, enquanto eles precisam desesperadamente do apoio de soldados rasos para se manterem no poder. Centenas de funcionários de bancos privados e públicos aderiram aos sindicatos e ao Movimento de Desobediência Civil (MDC). Por causa da greve, as empresas e o governo quase não têm acesso ao dinheiro. Isto lembra um pouco o golpe reacionário de Kapp na Alemanha em 1920, quando os golpistas da direita não conseguiram encontrar uma gráfica que não estivesse em greve e, portanto, não conseguiram fazer com que os anúncios oficiais do golpe fossem impressos.
Isto não significa, é claro, que este seja o “fim do jogo”. A intensificação da repressão pela direção do exército é uma expressão de desespero, o que pode ser extremamente perigoso. A nova greve geral de 8 de março confirmou o potencial do movimento e o fracasso da repressão. Se duas greves gerais não forem suficientes para derrubar o regime, uma greve geral de duração indefinida deve ser convocada. Em vários setores, os trabalhadores já estão em greve desde o início de fevereiro.
O Movimento de Desobediência Civil
O Movimento de Desobediência Civil desempenha um papel importante no movimento, impulsionando-o a partir da base contra os ditadores militares. Esta é uma característica notável da situação. Anteriormente, a Liga Nacional pela Democracia (NLD) de Aung San Suu Kyi era geralmente vista como a organização principal da oposição aos militares. No entanto, sua participação no governo nos últimos anos e sua colaboração com o exército minou a autoridade da NLD. O movimento de protesto foi lançado por trabalhadores da saúde, professores e outros trabalhadores. Eles lançaram o Movimento de Desobediência Civil como uma página no Facebook, com mais de 300 mil seguidores.
Os trabalhadores da saúde ocupam um lugar especial após a crise sanitária mundial que também atingiu Mianmar. Além disso, existe alguma organização sindical no setor. No setor da educação, existe um sindicato relativamente forte, a Federação de Professores de Mianmar, que agora afirma ter 100 mil filiados. A escala do movimento levou até mesmo uma série de empregadores e empresas internacionais a porem fim à sua cooperação com o governo. Foi também a pressão do movimento e o isolamento do regime golpista em Mianmar que levou líderes internacionais como Biden a fazer declarações contra os militares e a impor sanções.
O poder das greves é importante, mas ao mesmo tempo deve ser canalizado pela organização de comitês de greve e comitês de luta regionais. No movimento de 1988, os comitês de greve e os “comitês populares” desempenharam um papel importante. Tais órgãos também são necessários agora. Eles foram importantes então para garantir que o movimento de protesto não fosse sequestrado por velhos “crocodilos”. Agora que a maioria da população de Mianmar está buscando formas de como se livrar completamente do regime militar, será necessário que o movimento crie e controle suas próprias organizações e instrumentos de luta. O Comitê de Greve Geral que foi criado para a greve de 22 de fevereiro foi um começo promissor. Entretanto, seria melhor criar um Comitê de Greve Geral baseado em comitês locais nos locais de trabalho e nos bairros que se coordenam em nível nacional, em vez de começar por cima.
Lições históricas – é preciso um programa para mudanças reais
Apesar da existência de ilusões em conceitos como movimentos “sem líderes”, há sempre uma tendência para o preenchimento de um vácuo de direção. Se os trabalhadores e os camponeses pobres não o preencherem por baixo, sempre haverá candidatos para se infiltrarem por cima. No movimento de 1988, o ex-primeiro-ministro U Nu tentou isso, mas sua tentativa foi frustrada pelo rápido desenvolvimento de um novo partido político de dentro do movimento: a Liga Nacional pela Democracia (NLD). Esse partido assumiu Aung San Suu Kyi, a filha de um antigo líder da luta pela liberdade, como sua nova líder.
Hoje, Aung San Suu Kyi está em uma posição semelhante à de U Nu em 1988. Sua NLD não desempenhou um papel central na organização dos protestos e o regime do qual fazia parte claramente falhou. No entanto, a falta de expressão política do movimento de massas e a autoridade que adquiriu através da repressão permitiram que a NLD recuperasse sua posição. Em 2 de março, uma comissão de parlamentares da NLD criou o Gabinete do Comitê Representativo do Pyidaungsu Hluttaw (CRPH, Pyidaungsu Hluttaw é o nome do parlamento). Este é um governo alternativo com quatro ministros: três políticos da NLD e um acadêmico independente, Dr Zaw Wai Soe, que é o reitor da universidade de medicina que desempenhou um papel central na luta contra a Covid-19 em Yangon. Ele chamou imediatamente todos os funcionários públicos para se juntarem ao Movimento de Desobediência Civil (CDM). O CDM pede explicitamente o reconhecimento da CRPH, entregando assim a iniciativa de volta à NLD.
É normal que na população haja ilusões na CRPH e os protestos exigem, com razão, a libertação de todos os presos políticos. Entretanto, a questão é qual política a CRPH propõe, que táticas usar contra o exército e que alternativa deve ser posta em prática se os líderes golpistas forem expulsos. Um retorno ao modo como as coisas eram antes não é uma resposta adequada para as preocupações da população. A cooperação com o exército, por exemplo, não será aceita.
Para se livrar do exército, a luta deve ser travada tanto no plano político como econômico. Os chefes do exército desempenharam um papel ativo nas privatizações que se alastraram pela economia depois de 1988. Muitas empresas importantes estão em mãos militares, incluindo a Myanmar Economic Corporation (MEC) ou a Myanmar Economic Holding Ltd (MEHL), que comprou algumas partes lucrativas da economia na onda de privatizações. Isto é instintivamente compreendido no movimento: por exemplo, a cerveja da Myanmar Beer ou produtos da operadora de telecomunicações MyTel (ambas parte da MEC) estão sendo boicotadas massivamente.
O movimento precisa de um programa que realmente dê poder ao povo. Isto significa não apenas eleições democráticas, mas o controle do povo sobre os setores-chave da economia para permitir o planejamento democrático da vasta riqueza do país. Isto não acontecerá através da CRPH, mesmo que este órgão, sob pressão do movimento, seja obrigado a adotar um perfil mais radical do que o anteriormente defendido pela NLD. A política de cooperação com o exército falhou, portanto, a NLD teve que abandonar isso. No entanto, nem mesmo isso é suficiente para trazer mudanças fundamentais.
Reações internacionais
Há uma compreensão instintiva no movimento de que a solidariedade é importante tanto internamente quanto internacionalmente. Há uma atitude saudável em relação à questão nacional e aos direitos das muitas minorias no país. Com cartazes de protesto em inglês, os manifestantes apelam explicitamente à solidariedade internacional. Eles não visam tanto as instituições e líderes internacionais, mas as pessoas comuns com uma atenção especial para os movimentos anteriores na Tailândia e Hong Kong. Em alguns lugares, há ilusões sobre o papel dos EUA, mas atualmente isto parece bastante marginal dentro do movimento.
Os líderes capitalistas internacionais nunca demonstraram qualquer interesse pela maioria da população de Mianmar. Quando Aung San Suu Kyi foi liberada e a NLD anunciou que participaria de eleições suplementares para 45 assentos em 2012, o establishment internacional se lançou em Mianmar, na esperança de conseguir negócios lucrativos. Que já havia algo a ser aproveitado havia se tornado evidente após as privatizações e a abertura da economia após 1988: por exemplo, a Total, a Chevron e a Thai PTT aderiram à empresa de petróleo e gás Myanma Oil and Gas Enterprise.
Líderes políticos como Hillary Clinton e outros disputaram para serem os primeiros a tomar chá com Aung San Suu Kyi quando ela assumiu responsabilidades governamentais. O Wall Street Journal observou na ocasião: “O potencial de Mianmar é grande demais para que alguns investidores possam ignorar. Um dos últimos e grandes mercados a serem explorados na Ásia, é rico em petróleo, gás, madeira e pedras preciosas e tem o potencial de ser um grande exportador de arroz e frutos do mar”. (“Firms See Myanmar as Next Frontier”, WSJ 30 de novembro de 2011).
Além disso, os EUA e a Europa queriam limitar a influência da China. Em 2010, já havia 12,3 bilhões de dólares de investimentos chineses no país. O regime chinês espera obter acesso ao Oceano Índico através de Mianmar, importante para a Iniciativa Cinturão e Rota. Hoje, a direção militar – a mesma que na década de 1960 iniciou um regime ditatorial baseado no modelo da China de Mao – está tentando desesperadamente manter o apoio chinês ao golpe. O regime chinês se recusa a condenar o golpe e fala de uma “remodelação do gabinete”. No entanto, a embaixadora chinesa em Mianmar, Chen Hai, teve que reconhecer que a situação atual é “absolutamente o que a China não quer ver”.
Sem dúvida, Chen Hai quer dizer que o regime chinês preferiria não ver protestos em massa na região. O ministro das Relações Exteriores de Cingapura, um parceiro comercial chave de Mianmar, disse que espera que o bloco asiático ASEAN possa desempenhar um “papel discretamente construtivo” para facilitar o “retorno de Mianmar à normalidade e estabilidade”. O primeiro-ministro indiano Modi, que teve bons laços com o chefe do exército Min Aung Hlaing no passado, está mantendo um perfil discreto, tanto quanto possível, sobre os eventos no vizinho oriental da Índia.
As potências imperialistas e regionais podem ter atitudes diferentes em relação aos golpistas militares, mas têm em comum que gostariam de ver o fim do movimento de massas o mais rápido possível.
O que deve ser feito agora?
O movimento atual mostra o poder da classe trabalhadora, mesmo em um país onde a maioria da população está engajada na agricultura. A classe trabalhadora em ação está desempenhando o papel principal, trazendo a população rural em apoio a ela. Eles estão se manifestando principalmente a favor das demandas democráticas e contra a ditadura militar, mas é claro que toda demanda democrática logo assume um caráter social. O rompimento do poder da direção militar também significa inevitavelmente romper sua posição econômica e questionar todo o sistema.
A abertura da economia à iniciativa privada e às empresas estrangeiras a partir de 1988 não significou avanço social para a maioria da população. Todo o sistema deve ser contestado. Somente uma transformação socialista da sociedade pode dar substância real às exigências do movimento. Para isso, os setores-chave da economia, incluindo os recursos naturais, devem ser nacionalizados. Não nacionalizações como as que ocorreram depois de 1963, controladas por um pequeno grupo no topo, mas nacionalizações sob o controle democrático do povo.
Para dar direção ao movimento, deve haver uma discussão sobre quais demandas apresentar e uma alternativa ao sistema atual, na qual o tema do exército desempenha um papel central. São necessários comitês de greve e comitês de ação nos locais de trabalho, bairros e vilarejos para discutir democraticamente os próximos passos dos protestos e para organizá-los com o maior envolvimento possível. Tais comitês também são necessários para organizar a autodefesa contra a repressão. Esses comitês devem se coordenar em nível local e nacional, ao mesmo tempo em que se encarregam de administrar aspectos-chave da vida diária dos trabalhadores e das pessoas pobres, como a distribuição de alimentos, cuidados médicos e outras necessidades urgentes. Um programa e direção claros para o movimento atrairia policiais e soldados da base para o lado do povo. Estes órgãos democráticos do movimento poderiam lançar as bases para um tipo diferente de sociedade. Uma Assembleia Constituinte eleita pela classe trabalhadora, a população rural e os oprimidos através de tais estruturas democráticas poderia acordar um plano para mudar fundamentalmente a sociedade.
Os passos mais urgentes nesta fase do movimento são sua estruturação e a discussão de demandas e alternativas. Ambos os elementos andam de mãos dadas: por um lado, a estruturação do movimento levará inevitavelmente a discussões sobre seu conteúdo e, por outro lado, para mudar a sociedade é necessário desenvolver alavancas para alcançar esta mudança. Revolucionários, como os membros da Alternativa Socialista Internacional, obviamente desempenhariam um papel ativo em tal processo, defendendo a mudança socialista. Em um movimento de massa, um programa socialista pode rapidamente encontrar uma ampla audiência, mas é necessária uma organização de revolucionários para desenvolvê-la, aprimorá-la e introduzi-la no movimento para que se torne um fator material.
O movimento é mais forte quando responde a toda tentativa de “dividir para governar” com luta unificada. Isto significa que a atenção às demandas e sensibilidades nacionais é essencial, especialmente em um país com mais de 135 grupos étnicos. O regime militar tem uma longa tradição de violência contra minorias, desde a expulsão de centenas de milhares de tâmiles nos anos 60 sob Ne Win, até a perseguição de muçulmanos rohinya no noroeste do país que foi ao extremo desde 2015.
A NLD de Aung San Suu Kyi tem sido cúmplice na opressão das minorias. O movimento tem que se opor a isso. Unir os trabalhadores e oprimidos da população majoritária de birmaneses com shan, karan, rakhine, chinês … torna o movimento mais forte. Esta unidade exige respeito e, portanto, o reconhecimento do direito à autodeterminação. Embora não sejamos a favor de simplesmente agitar bandeiras nacionais ou regionais, foi em si positivo que durante a greve geral de 22 de fevereiro, bandeiras de diferentes minorias nacionais foram explicitamente carregadas pelos ativistas. Um programa que reconhece o direito à autodeterminação pode moldar este sentimento instintivo de modo que se torne um argumento poderoso para fortalecer ainda mais o movimento entre todos os grupos étnicos.
Estes são alguns dos elementos centrais de nossa abordagem socialista, que visa derrubar o capitalismo e substituí-lo por uma sociedade socialista com uma economia democraticamente planejada, na qual a enorme riqueza do país e o enorme potencial de sua classe trabalhadora jovem e criativa podem ser utilizados ao máximo para o benefício de toda a população. Tal passo conquistaria imediatamente um enorme público na região e no resto do mundo.
Como chegamos até aqui – a história de Myanmar
Para entender a situação atual, é útil lembrar alguns aspectos do contexto histórico
Da colônia britânica à independência
A região que hoje forma Mianmar foi colonizada pelos britânicos e fazia parte da Índia. Os britânicos eram mestres nos métodos de dividir para governar que prejudicavam a maioria da população no que então era conhecido como Birmânia. A resistência anticolonial, que era particularmente forte entre os estudantes, forçou os britânicos em 1937 a designar a Birmânia como uma colônia separada da Índia.
Um dos líderes mais conhecidos da resistência contra os colonizadores britânicos na Birmânia foi Bogyoke Aung San, o pai de Aung San Suu Kyi. O ditador dos anos 60, Ne Win, também foi um militante de destaque. A direção da luta anticolonial limitou-se a uma visão nacionalista sem resposta fundamental para as condições sociais da maioria da população. As questões sociais eram abordadas apenas em palavras, não em atos.
Aung San foi co-fundador do Partido Comunista no país nos anos 30, mas junto com outros não hesitou em apoiar o Japão contra os britânicos na Segunda Guerra Mundial. O fato de que o Japão, que ocupou a Birmânia durante a guerra, estava do lado dos nazistas e passou a subjugar brutalmente a população local foi “justificado” pelo argumento de que pelo menos os britânicos tinham desaparecido. O inimigo de meu inimigo é meu amigo, foi o argumento para unir forças com o aliado asiático do fascismo. Foi sob a ocupação japonesa que a ‘ferrovia da morte’ foi construída da Birmânia para a Tailândia, uma operação que matou dezenas de milhares e que mais tarde se tornou famosa pelo livro ‘Ponte sobre o rio Khwae’.
O fato de que os japoneses descartaram o regime fantoche na Birmânia por ser muito teimoso e insistir em manter alguma independência, juntamente com o avanço dos Aliados na Guerra Mundial, fez com que Aung San e seus nacionalistas mudassem de lado. Eles formaram a “Organização Antifascista”, mais tarde transformada na Liga Antifascista de Libertação Popular. Eles se voltaram contra os japoneses e iniciaram negociações com os britânicos. Os britânicos retornaram à Birmânia em 1945, mas não puderam mais desempenhar o mesmo papel econômico e militar. Os EUA e a União Soviética emergiram da guerra como potências mundiais dominantes. Além disso, a resistência anticolonial não desapareceu.
Houve uma greve geral na Birmânia em 1946, como parte da onda de revolta geral nas colônias. O Império Britânico teve que concordar com a independência. Em janeiro de 1947, Aung San assinou um acordo com os britânicos para tornar o país independente dentro de um ano. Aung San foi assassinado antes da declaração formal de independência em 4 de janeiro de 1948. Para muitos birmaneses, Aung San continua sendo um herói da luta pela independência. O fato de que ele não foi capaz de desempenhar um papel no caos que se seguiu à independência reforçou isto.
Aung San e os nacionalistas foram particularmente ambíguos em relação a vários pontos fundamentais. O acordo de 1947 estipulava que a Birmânia formaria uma união com direitos para as minorias étnicas que teriam o direito de deixar a união após dez anos. Entretanto, o povo karen, que exigia independência imediata, não foi incluído no acordo! O sucessor de Aung San, U Nu, tentou impor um Estado unitário centralizado sem direitos para as minorias. Isto levou à guerra de guerrilha étnica, que ainda desempenha um papel no país hoje em dia.
Outra questão fundamental era a falta de uma alternativa ao capitalismo. Os nacionalistas afirmavam defender uma “política social-democrata”, na qual partes da indústria eram nacionalizadas. Entretanto, na prática, isto era propriedade conjunta da indústria do governo e de grandes empresas estrangeiras. As exportações de arroz nunca voltaram aos níveis anteriores à guerra. A economia estava se afundando cada vez mais, enquanto o exército estava recebendo cada vez mais recursos. No final dos anos 50, 30% dos gastos do governo eram destinados às forças armadas.
Este é o pano de fundo contra o qual se deu o golpe militar do general Ne Win em 1962. A tentativa de estabelecer uma Birmânia capitalista independente e estável não tinha nenhuma chance na era do imperialismo.
Ditadura militar baseada em modelos chineses e russos
Parte da direção militar em torno do general Ne Win procurou uma saída para o impasse e a instabilidade. Eles se apoiaram na classe média arruinada das cidades e na população rural. Eles olharam para o modelo de Mao na China, ele próprio baseado em uma caricatura do stalinismo russo de 1949, ao invés do modelo dos bolcheviques em 1917. Esta não foi uma escolha deliberada para estabelecer uma sociedade “socialista”, mas sim uma tentativa de se equilibrar entre as classes afim de alcançar uma maior estabilidade. Elementos de uma economia burocraticamente planejada foram combinados com um regime de “ordem e disciplina” no qual os direitos democráticos foram colocados de lado, incluindo os direitos das minorias nacionais. Um Estado monopartidário foi estabelecido sob a liderança do Partido do Programa Socialista Birmanês (BSPP).
Sob o regime de Ne Win, todas as empresas estrangeiras, bancos e grandes empresas foram nacionalizadas. O capitalismo foi eliminado. Os governantes falavam do “caminho birmanês para o socialismo”, mas era uma caricatura de socialismo. Era uma imitação do stalinismo na União Soviética e na China, complementada por retórica budista e nacionalismo. Uma pequena elite manteve todas as rédeas, a oposição foi reprimida.
O regime de Ne Win construiu um exército impressionante. Inicialmente, o regime desfrutou de amplo apoio no campo. O cancelamento de todas as dívidas dos camponeses com os bancos, os empréstimos do governo aos camponeses, a importação de tratores da Tchecoslováquia e outras medidas garantiram este apoio. Houve também um fortalecimento da educação; em 1986, 86% dos homens e 74% das mulheres sabiam ler e escrever.
Mas, ao mesmo tempo, as contradições entre desenvolvimento rural e industrial persistiam e não havia resposta para a questão nacional. A única resposta do regime às contradições existentes foi a repressão combinada com o nacionalismo extremo e a xenofobia. O isolamento econômico e o planejamento muito primitivo da economia com controle burocrático dificultou qualquer desenvolvimento posterior.
Quando os preços das matérias-primas começaram a cair nos anos 80, a situação tornou-se totalmente insustentável. Ne Win realizou uma desvalorização da moeda, houve uma inflação entre 200-500%. Este foi o pano de fundo contra o qual ocorreu o levante de 1988.
Revolta estudantil e greve geral de 1988
Em março de 1988, um estudante foi morto pelo exército. Protestos eclodiram imediatamente na Universidade de Yangon. A polícia respondeu com repressão letal, 41 estudantes morreram por asfixia em carros da polícia quando foram levados para a prisão. O movimento que se seguiu ameaçaria a sobrevivência do regime.
Durante a primavera e o verão, houve grandes protestos pela democracia, reforma econômica e perseguição dos assassinos militares. Os estudantes foram apoiados por sindicalistas que formaram comitês de trabalhadores nas empresas. Monges e funcionários públicos entraram em ação.
Ne Win tentou impedir os protestos, renunciando ao cargo de líder do partido e prometendo realizar um referendo sobre o sistema monopartidário. Nos bastidores, ele continuou a manter o controle. Os protestos continuaram e cresceram.
Em 8 de agosto de 1988, uma greve geral paralisou o país e milhões de manifestantes tomaram as ruas. Centenas de pessoas foram feridas e mortas. Mas a revolta continuou com manifestações, greves e tumultos. O regime estava sob crescente pressão; a repressão só foi possível utilizando soldados de outros grupos étnicos contra os manifestantes. O salário dos soldados foi aumentado em 45% para manter o apoio deles. Sob a pressão dos protestos, o regime prometeu reformas econômicas.
Estes anúncios foram recebidos com júbilo, mas as manifestações continuaram. No final de agosto, houve outra greve geral por tempo indeterminado. Em vários vilarejos e cidades, “comitês populares” assumiram o controle. Os generais estavam impotentes, a rua tomou o controle. O problema era a falta de coordenação e de direção alternativa. A revolta não tinha seus próprios canais organizados e uma direção política para armá-la com um programa socialista democrático.
Várias figuras proeminentes interviram no movimento. A maior parte do apoio foi para Aung San Suu Kyi, uma líder acidental do movimento. Ela havia acabado de voltar da Grã-Bretanha à Birmânia para cuidar de sua mãe doente. Por causa da autoridade de seu pai e da falta de qualquer vínculo com o regime militar ou o seu precursor democrático que não conseguiu trazer mudanças, Aung San Suu Kyi era um símbolo ideal.
O anúncio de eleições levou à formação de um novo partido: a Liga Nacional pela Democracia, liderado por Aung San Suu Kyi. A NLD desfrutou de um apoio maciço em todas as partes do país. Entretanto, a alternativa do partido era tudo menos clara. Desde o início, Aung San Suu Kyi enfatizou as ideias de “unidade” e “diálogo” com o regime militar. As concessões da ditadura não tinham como objetivo o diálogo, mas ganhar tempo para retomar o controle do país. A única “ideologia” do regime foi sempre a preservação de seu próprio poder.
Mudanças após 1988
Como a revolução permaneceu inacabada, os militares foram capazes de retomar o controle da situação. Importantes líderes da oposição foram presos. Um novo homem forte, Saw Maung, que era próximo a Ne Win, emergiu. A nova direção militar assumiu o nome de SLORC (Conselho de Restauração da Lei e da Ordem do Estado), mais tarde renomeado Conselho Estatal de Paz e Desenvolvimento (SPDC). O SLORC removeu todas as referências ao socialismo e mudou o nome do país para Myanmar. As eleições de 1990 resultaram numa vitória para a NLD (o partido ganhou 60% dos votos), mas até então a direção militar havia recuperado o controle após o fim do movimento e não reconheceu os resultados das eleições.
A ditadura militar foi restaurada. Economicamente, porém, houve grandes mudanças: o país foi aberto aos capitalistas estrangeiros que demonstraram interesse nos vastos recursos naturais do país. As empresas tailandesas conseguiram prosperar nas grandes florestas de teca. Mais tarde, seguiram-se empresas do Japão, Cingapura, China, etc. A empresa petrolífera foi vendida a várias empresas, incluindo a francesa Total, a estadunidense Chevron e a tailandesa PTT. Os próprios chefes do exército asseguraram que sua posição econômica fosse preservada durante as privatizações.
A “nova política econômica” não produziu os resultados desejados. A falta de infraestrutura, a corrupção e a impossibilidade de conquistar uma posição no mercado mundial capitalista já dominado pelas potências imperialistas, tudo isso desempenhou um papel importante. Isso levou a tensões no topo, complementadas por novos protestos vindos de baixo. Em 2007, houve ações contra o aumento dos preços da energia. Isto se transformou em manifestações nacionais lideradas por monges budistas. Isto também foi enfrentado com repressão, com pelo menos 31 pessoas mortas.
Eleições em 2010-12 e abertura das relações internacionais
Como em 1988, o movimento de 2007 foi respondido com a promessa de eleições. Mais uma vez, essas eleições só seriam realizadas alguns anos depois. Depois de 1988, só em 1990 é que as eleições foram realizadas; o movimento de 2007 foi seguido pelas eleições de 2010. Estas foram completamente controladas pelo exército e, portanto, boicotadas pela NLD. Nas eleições parciais para 45 assentos (de um total de 664) em 2012, a NLD participou pela primeira vez desde 1990 e ganhou 41 mandatos. O Partido União Solidariedade e Desenvolvimento (USDP) do Thein Sein era o partido do exército.
Após anos de prisão domiciliar, Aung San Suu Kyi ingressou no parlamento e concordou com os militares em formar um governo conjunto. Com a NLD como parceira minoritária, isto era aceitável para o exército. Aung San Suu Kyi abriu portas internacionais que anteriormente haviam permanecido fechadas e, além disso, a participação da NLD no poder era uma arma poderosa para deter os protestos internos no país. A maior fraqueza da NLD era mais uma vez a falta de uma alternativa: o partido tinha uma política neoliberal voltada para os lucros dos grandes negócios, incluindo empresas dirigidas pelos militares e suas marionetes. Além disso, apoiava a repressão contra as minorias e a NLD trazia cada vez mais um discurso nacionalista.
Nas eleições de 2015, a NLD ganhou uma maioria no parlamento, apesar do fato de um quarto das cadeiras ter sido ocupado automaticamente pelos militares. A NLD formou um governo sem a USPD de Thein Sein, mas continuou a cooperar com os militares. As eleições de 2020 confirmaram a posição da NLD, que avançou ligeiramente em termos de assentos. Esta vitória mostrou a grande oposição pública ao exército.