Venezuela: Qual caminho para a revolução?
Desde a primeira vitória eleitoral do Hugo Chávez em 1998, a Venezuela tem passado por um período inédito de politização e radicalização das massas, que apostaram em Chávez para acabar com o regime podre das elites e a política neoliberal.
Desde então, Chávez tem implementado medidas anti-neoliberais e importantes reformas, ao mesmo tempo que tem confrontado o imperialismo estadunidense e lançando projetos de integração na América Latina.
Palavras como ”nacionalização”, ”socialismo” e ”revolução”, que durante a ofensiva neoliberal dos anos 90 ficaram quase banidas do vocabulário, voltaram a ser colocadas na ordem do dia.
Os processos na Venezuela já tiveram um grande impacto internacionalmente e uma revolução vitoriosa ia transformar totalmente a situação no continente. Por isso é importante para socialistas acompanhar e contribuir para uma avaliação equilibrada dos processos no país.
Desde 1998 o processo revolucionário passou por várias fases. Durante 2002-2004 a elite do país fez várias tentativas de se livrar de Chávez, como o fracassado golpe abril 2002, a greve patronal de 2003-2004 e o referendo revogatório em agosto 2004. O efeito foi o oposto do pretendido. O movimento por trás de Chávez se radicalizou, levando-o mais à esquerda, mesmo que este tentasse a todo momento conciliar-se com a elite, tentando trazer ela para a ”Revolução Bolivariana”.
Importantes reformas sociais
Com o dinheiro da empresa petrolífera estatal PDVSA, Chávez financiou vários projetos sociais, investindo em educação, saúde, alimentação etc. Por exemplo: 3 milhões de hectares de terra foram distribuídas para cooperativas de camponeses, 3.200 novas escolas foram abertas e 1,5 milhões de pessoas foram alfabetizadas. Com ajuda de milhares de médicos cubanos, milhões de pessoas tiveram acesso ao serviço médico básico.
Algumas fábricas fechadas foram ocupadas pelos trabalhadores e depois nacionalizadas sob uma ”co-gestão” entre os trabalhadores e o Estado. Uma nova central sindical, a UNT, foi lançada para substituir a antiga central patronal CTV. No fim de abril deste ano, Chávez anunciou um aumento de 20% do salário mínimo para o equivalente a 550 reais e a redução da jornada de trabalho para 6 horas em 2010.
No entanto, mesmo com todas essas medidas, a Venezuela ainda é um país com uma maioria de pobres. 25% da população vive com menos de um dólar por dia (cerca de dois reais). Os 10% mais ricos recebem 50% da renda nacional, enquanto os 10% mais pobres ficam com apenas 2%. As camadas mais ricas continuam a se enriquecer com a entrada de dinheiro pelo alto preço de petróleo. O setor privado cresceu o dobro do que o setor público no ano passado e, depois de 8 anos de governo Chávez, o setor privado aumentou sua parcela da economia total. A violência cresce, desde 1999, os homicídios aumentaram em 67%.
A revolução não está garantida
Essas contradições colocam o futuro da ”Revolução Bolivariana” em risco e mostram a falta de estratégia de Chávez para uma ruptura socialista. Muitas das medidas são improvisadas e não chegam às últimas conseqüências.
O apoio a Chávez não é algo garantido para sempre. Existe uma desconfiança profunda em relação aos partidos e burocratas ao redor de Chávez. No início da campanha eleitoral no ano passado não havia o mesmo entusiasmo e participação visto nas eleições anteriores. Só quando o candidato da oposição, Rosales, conseguiu organizar a maior manifestação da oposição em Caracas nos últimos anos, o medo do retorno da velha elite pró-EUA levou a um aumento da participação nas eleições.
Chávez ganhou as eleições com 67% contra 33% de Rosales, e utilizou essa vitória para pronunciar uma nova fase da revolução, a implementação do ”socialismo bolivariano” até 2021. O programa para o ”Socialismo do Século XXI” declarado continha:
• Nacionalização de meios de produção estratégicos, por exemplo eletricidade, telecomunicação, petróleo e gás;
• Uma nova constituição, incluindo a proibição de privatização de recursos naturais e controle sobre o Banco Central;
• A fundação de um novo partido socialista unificado, o PSUV;
• Aumento do poder dos Conselhos Comunais;
• Uma Lei de Habilitação que permite a Chávez fazer mudanças via decretos em 11 áreas durante 18 meses sem consultar o parlamento (um plebiscito será realizado para confirmar as novas leis e a nova constituição);
Os novos passos são positivos, porém o processo continua contraditório. Ao mesmo tempo que Chávez anuncia o ”Socialismo do Século XXI” ele chama os empresários a se juntar a esse projeto.
Nacionalizações
As nacionalizações das grandes empresas e do sistema financeiro é uma medida chave para romper com o poder dos capitalistas, mas Chávez tem implementado essas medidas de maneira limitada e contraditória.
Chávez anunciou que ”o que foi privatizado tinha que ser nacionalizado”. A maior empresa de telecomunicação, CANTV, (privatizada em 1991) e a maior empresa elétrica, Eletricidad de Caracas (privatizada em 1999, durante o governo Chávez!) foram ”nacionalizadas”. Mas as empresas privadas foram pagas com preço de mercado. No caso da CANTV, por exemplo, o Estado comprou a maioria das ações, 86%, mas o resto das ações ainda estão na bolsa de valores de Caracas e de Nova Iorque. O chefe da AES, que tinha comprado a Eletricidad de Caracas, declarou por sua vez que a compensação recebida agora foi o melhor negócio que ele já fez.
Trabalhadores exigem nacionalização
Em fevereiro, 6 mil trabalhadores da CANTV, Eletricidad de Caracas e da Sidor (uma das maiores siderúrgicas que foi privatizada) fizeram um ato exigindo a nacionalização dessas empresas. Eles reclamavam da política de ”estatização” usada, na qual o estado simplesmente adquire a posse da empresa, sem participação democrática e controle pelos trabalhadores. Chávez declarou que a ”co-gestão” não vale para ”setores chave”.
Os trabalhadores da Sidor denunciaram que a exploração na empresa era tal que 70% dos trabalhadores eram contratados por subempreiteiros sem nenhum direito trabalhista. Nesse caso, Chávez disse que estatizará, por ser um exemplo de ”capitalismo bom”.
Orlando Chirino, coordenador nacional da UNT, respondeu:
”Entendemos que presidente Chávez diz isso pois a empresa é propriedade de uma multinacional [Techint] baseada na Argentina, um país que é amigo de Venezuela, como seu presidente, Kirchner. Mas nós perguntamos: desde quando existe uma forma boa ou ruim do capitalismo?”
Também vemos os contratos que Chávez fecha com empresas da Rússia, China e Irã, que não são conhecidos por serem capitalistas ”bonzinhos”.
A ”nacionalização” do petróleo na faixa do Orinoco, considerada a maior reserva de petróleo do mundo, também segue a mesma lógica. Mesmo com a ocupação do exército no 1° de maio, não se tratou de expropriação, e sim de aumentar a participação acionária nas empresas mistas que operam lá, garantindo 60% das ações para a PDVSA. Só uma das empresas se retirou, a italiana Eni-Dacion. Segundo a Folha de São Paulo, Elio Ohed, editor da publicação ”Petroleum World”, disse que os resultados das negociações foram ”positivos” e afirmou que não houve maior radicalização do governo em comparação ao que foi feito em 2005, quando o mesmo processo foi implementado com outros campos petrolíferos.
As nacionalizações devem ser baseadas em expropriação total dessas empresas, que geram seus lucros da exploração dos trabalhadores. A indenização só deve ser dada para pequenos acionistas, que comprovem necessidade.
Essas nacionalizações têm que ser acompanhadas pela introdução do controle dos trabalhadores, como um primeiro passo para uma gestão democrática dos trabalhadores. Isso significa controlar, através de seus representantes eleitos, a contratação, os salários e a administração da produção no dia-a-dia. Os salários dos chefes e supervisores devem ser limitados, e estes devem ser eleitos pelos trabalhadores, com direito de revogação. Além disso, a produção das empresas nacionalizadas devem ser parte de uma plano democrático de produção nacional.
Saída do FMI e Banco Mundial
Chávez também declarou a saída do FMI e do Banco Mundial. Apesar de ser um passo importante, infelizmente não foi acompanhado por uma ruptura com o sistema financeiro capitalista. Chávez não devia nada ao FMI desde 1999 e pagou as dívidas com o Banco Mundial que só venceriam daqui cinco anos. Esse caminho, porém, não pode ser seguido pela maioria dos países pobres, que não tem os petrodólares como a Venezuela. O país continua pagando sua dívida externa e quando Argentina declarou moratório, Chávez ajudou comprando 3,5 bilhões de dólares de títulos argentinos, ao invés de lançar uma ofensiva pelo não pagamento dessas dívidas injustas.
A lógica de tentar se manter dentro dos limites do sistema coloca grandes empecilhos para um avanço maior. O capitalismo não pode ser derrubado pouco a pouco, comprando os recursos dos capitalistas. Em algum momento vai ser necessário fazer um confronto decisivo. Nesse confronto, somente a classe trabalhadora organizada poderá fazer a transição para o socialismo.
“Meia” ruptura não é possível
A história da América Latina tem claros exemplos de que não é possível uma ”meia” ruptura com o sistema. De um lado existe o risco de um retrocesso como aconteceu no Chile em 1973.
Em 2002, a velha elite na Venezuela tentou esse caminho, mais foi barrada por um levante das camadas pobres do país. Existe também o risco da saída nicaragüense. Sem a ruptura com o capitalismo, não vai ser possível abolir a pobreza e mesmo um governo radical sofrerá desgaste, como o governo sandinista, que depois de uma década no poder perdeu as eleições para um governo neoliberal que desmantelou as conquistas de 1979.
RCTV
O não prolongamento da concessão da RCTV segue o mesmo padrão vacilante. Para os socialistas, os grandes monopólios privados de televisão de não são garantias de ”liberdade de expressão”. Na verdade, trata-se da liberdade de desinformação para quem tem muito dinheiro e interesse em enganar a maioria da população. Para garantir a liberdade de informação é necessário nacionalizar os grandes meios de comunicação, garantindo acesso para diferentes grupos políticos segundo sua representação. A concessão para uma televisão privada não é um princípio nem para os capitalistas. Em vários países da Europa, antes da era neoliberal, havia monopólio estatal de TV.
O papel nocivo dos grandes monopólios privados de comunicação ficou evidente durante o golpe contra Chávez em 2002. Canais como RCTV fizeram de tudo para desinformar. Já naquela época Chávez deveria ter nacionalizado, sob controle dos trabalhadores, os canais de televisão que apoiaram o golpe. No entanto, esperou cinco anos até terminar o período de concessão. A RCTV, que pode ser comparada com a Globo, é a mais antiga emissora do país e tem certa popularidade. Segundo a empresa de pesquisa Hinterlaces, 80% da população é contra o fechamento da RCTV.
O novo canal estatal Tves, que vai ocupar o espaço da RCTV, foi lançado as pressas e as instalações da RCTV foram temporariamente tomadas até que a Tves tenha seus próprios recursos.
Por outro lado, a Venevisión teve a sua concessão prolongada até 2012. A emissora, que pertence a Gustavo Cisneros, também apoiou o golpe em 2002, mas mudou de lado em 2004. Analistas contam com que a Venevisión herdará a maior parte do mercado de 163 bilhões de dólares de publicidade que a RCTV tinha. De acordo com a lista da ”Forbes”, Cisneros é o 119° homem mais rico do mundo e o terceiro mais rico da América Latina, com uma fortuna de 6 bilhões de dólares.
PSUV
A fundação de um novo partido socialista unificado, o PSUV, anunciado por Chávez, é uma tentativa de acabar com os antigos partidos, com imagem marcada pela corrupção, e tentar controlar os aparelhos burocráticos desses partidos, removendo políticos impopulares.
No início, vários dos partidos negaram a dissolução no PSUV. Depois da ameaça de Chávez de retirá-los do governo, com exceção do antigo partido stalinista (Partido Comunista Venezuelano), todos os maiores partidos chavistas se dissolveram ou estão se desintegrando. Alguns dos elementos mais à direita do Podemos e Pátria para Todos entraram no PSUV para salvar suas carreiras.
Expectativas
Apesar de não haver ainda nenhuma prova de que o novo partido será realmente construído de baixo para cima, ou que cumprirá a promessa de ser democrático e um instrumento para a transformação socialista da sociedade, não podemos subestimar as expectativas que existem dentro de uma camada de ativistas. Eles vêem o novo partido como uma potencial vitória contra as máquinas reformistas e burocráticas que compõem o governo do Chávez.
O ódio contra a burocracia desses partidos chavistas se expressam nos apelidos populares deles: o MVR (Movimento pela V República) é chamada ”Me Volví Rico” (fiquei rico), Pátria Para Todos virou ”Plata para todos” (dinheiro para todos) e, ao invés de Podemos, ”Pedimos”.
Os sindicatos que não querem se ligar ao partido e querem manter a autonomia sindical também foram atacados por Chávez. Porém, a autonomia sindical deve ser sempre defendida e será importante mesmo depois de uma ruptura com o capitalismo. Lênin enfatizou depois da vitória da Revolução Russa que no processo de transição entre o capitalismo e o socialismo, os trabalhadores ainda precisarão de sindicatos independentes para defender seus direitos. E os direitos dos trabalhadores estão longe de ser garantidos na Venezuela.
Recentemente, os trabalhadores do setor público tiveram que esperar 27 meses pelas negociações salariais. O mesmo acontece agora com os petroleiros. Isso numa situação de aumento da inflação, que corrói o valor dos salários.
Unidade construída pela base
A unidade da classe trabalhadora é fundamental, mas não pode ser imposta por cima. Os Conselhos Comunais e até o próprio PSUV pode ajudar a mobilizar e radicalizar uma nova camada de ativistas caso não seja sufocada pela burocratização e pela tentativa de se exercer controle de cima pra baixo.
O PSUV, para ser uma verdadeira ferramenta da classe trabalhadora, tem que ser baseado em participação de massas com eleições democráticas de seus representantes. Deve existir a possibilidade de revogar qualquer representante pelos órgãos que os elegeram e um verdadeiro debate sobre programa, tática e estratégia. Deve também existir a possibilidade de se organizar correntes dentro do partido.
O programa do partido deve se basear na necessidade de completar o processo revolucionário, derrubar o capitalismo e construir um sociedade socialista. Isso teria que se basear na nacionalização dos principais setores da economia, sob o controle e gestão democrática dos trabalhadores, coordenado por um plano democrático da produção. Esse partido ainda não é realidade, e os primeiros passos não são positivos.
O Socialismo Revolucionário, a nossa organização irmã na Venezuela, luta por um socialismo genuíno. Enquanto apoiamos todas as reformas em prol dos trabalhadores e pobres, afirmamos que a tarefa principal da classe trabalhadora é de tomar o poder político. Para fazer isso temos que construir nossa organização política, armada com um programa socialista revolucionário, e manter nossa independência de classe.