O apoio do PT ao congelamento dos salários dos servidores públicos: erro de análise ou expressão de uma escolha consciente pelo capitalismo?
Nas últimas semanas, em diferentes textos, a LSR tem apontado como a crise precipitada pela pandemia tem sido usada por governos e patrões para fazer avançar uma agenda de retirada de direitos sociais e destruição dos serviços públicos. Além do genocídio consciente defendido pelo Presidente da República, há inúmeros projetos do capital sendo implementados com a finalidade de favorecer o mercado e os lucros em detrimento de necessidades sociais e de vidas.
O último ataque foi a aprovação, hoje (06 de maio), do chamado “projeto de lei de socorro aos estados” (PLP 39/2020 que substitui o PLP 149/2019). O projeto foi votado pela primeira vez pelo Senado no último sábado (02/05/20). O projeto prevê ajuda fixa de R$125 bilhões para os estados e municípios. O texto aprovado colocou como condição para receber o socorro, um conjunto de contrapartidas: congelar os salários da grande maioria dos servidores públicos por um ano e meio; deixar de contar o tempo de serviço para que adicionais salariais sejam concedidos; proibição do aumento de despesas obrigatória; e proibição de concursos e contratações nos serviços públicos.
O texto aprovado foi construído pelo presidente do senado, Davi Alcolumbre (DEM), em conjunto com a equipe econômica de Jair Bolsonaro. Trata-se de mais um, dentre vários exemplos, que demonstram o consenso existente nos ataques aos direitos sociais de trabalhadoras e trabalhadores. Na votação do senado realizada em 02 de maio, o consenso entre governo federal e legislativo foi demonstrado por uma ilustrativa votação: 79 votos favoráveis e apenas 1 voto contrário de Randolfe Rodrigues (Rede). Isto significa que toda a oposição a Bolsonaro votou a favor do projeto, inclusive as alternativas de “centro-esquerda”, isto é: três senadores do PDT (inclusive o senador Cid Gomes), dois senadores do PSB, dois senadores da Rede e seis senadores do PT.
O fato de que os senadores do PT tenham votado contra os servidores públicos em um projeto defendido por neoliberais convictos não é surpreendente e nem algo novo na trajetória do partido. Quando se trata de defender o neoliberalismo, o PT demonstra ser um organizador de derrotas nas ruas apesar de vez ou outra chamar para enfrentamentos nas ruas (algumas vezes, dividindo palanque com Fernando Henrique Cardoso e Rodrigo Maia, tal como ocorreu no último 1º de maio) ainda que predominantemente, quando está em governos, apoie uma agenda privatizante, pró-mercado e de precarização dos serviços públicos, mesmo que para isso tenha que utilizar a Polícia Militar ou criminalizar movimentos grevistas, tal como fez o governador da Bahia, Rui Costa contra a greve das universidades estaduais.
Após a votação do dia 02 de maio, o projeto foi apreciado pela Câmara dos Deputados (em 05/05) e voltou para o Senado que acaba de aprovar. Graças aos esforços de parlamentares do PSOL na Câmara de Deputados, que contaram com o apoio, ainda que tardio, de deputados do PT e PCdoB defendendo a supressão do artigo que atacava os servidores públicos. A partir desses esforços, a derrota não foi maior: a educação pública foi excluída do congelamento (ainda que o texto esteja ambíguo, pois afirma-se, também, que só serão excluídos do congelamento os servidores que estão diretamente envolvidos na luta contra o coronavírus. O texto aprovado também exclui do congelamento algumas categorias (forças armadas, saúde, policiais, agentes socioeducativos, etc.) e libera reajuste para policiais.
Não há nada de surpreendente na aprovação do texto. O governo de Jair Bolsonaro e os parlamentares do Senado ou da Câmara de Deputados defendem o mesmo projeto neoliberal pró-mercado contra os direitos da classe trabalhadora e contra os serviços públicos. Em plena crise, aproveitam a oportunidade para repetir a mesma receita de desmonte dos investimentos em serviços públicos quando foi esta mesma agenda que deixou o sistema de saúde desarmado para enfrentar a pandemia de COVID-19 e resultando no colapso da saúde pública em diferentes estados.
No entanto, é preciso analisar o significado político da votação que aprovou o texto-base realizada em 02 de maio. Pois é uma votação que revela quais são as alternativas políticas reais que podem ser construídas para derrotar Bolsonaro e Morão, assim como sua agenda neoliberal.
Neoliberalismo com face humana: projeto do PT para a classe trabalhadora
Por que os senadores do PT votaram junto com José Serra (PSDB), Major Olimpio (PSL), Fernando Collor (PROS) e Flávio Bolsonaro (Republicanos)? Foi apenas um erro de avaliação ou parte do projeto que passou a ser, cada vez mais, defendido pelo PT desde a “carta ao povo brasileiro” durante a campanha eleitoral de Lula em 2002?
O agravamento da crise promovida pelo COVID-19 e a explícita demonstração de que a pandemia ainda vai piorar tanto em número de infecções, quanto em número de mortos deveriam se fatores que apontam para a centralidade da luta para salvar vidas da classe trabalhadora. A indiferença de Bolsonaro com o seu “e daí?” em resposta a uma pergunta sobre o elevado número de mortos no país é a expressão mais cruel, ainda que honesta, do projeto neoliberal, para a classe trabalhadora no Brasil. Hoje, mais do que em qualquer momento da história, precisamos ser diretos em nossa mensagem: há um projeto que defende o genocídio de mulheres, negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores para salvar os lucros e o mercado e outro que busca defender a vida e, para tanto, busca fazer com que os bancos e os patrões paguem pela crise.
No último período, com as crises e disputas internas no interior do governo Bolsonaro, há diferentes setores da burguesia se reorganizando para começar a construir uma alternativa que seja capaz de aprovar a agenda pró-mercado, latifundiários, empresários e banqueiros. É neste contexto que o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), parou de se apresentar como “Bolsodória” e tenta se apresentar como um governador ponderado. Da mesma forma, Ronaldo Caiado (DEM), ex-bolsonarista e defensor do trabalho escravo nos latifúndios, que hoje governa o estado de Goiás tenta se diferenciar do presidente da república. Também foi por isso que Sérgio Moro, figura fundamental no golpe de 2016, decidiu, junto com outras ratazanas, abandonar o barco do bolsonarismo.
No campo da centro-esquerda, há diferentes figuras tentando se credenciar como alternativas humanas ao bolsonarismo e a direita tradicional. Este é o caso do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), do ex-governador do Ceará, Ciro Gomes (PDT) e do ex-presidente Lula (PT). Incluem-se neste hall de partidos que buscam um desfecho eleitoral positivo para suas legendas, o PSB e a Rede. É justamente essa aposta eleitoral em 2022 que explica o voto de todos esses partidos no pacote de governadores.
O projeto dos setores de centro-esquerda não é apresentar uma alternativa para a classe trabalhadora que precisa escolher entre morrer de fome ou de infecção por vírus, mas sim colaborar em um novo governo envolvendo os partidos mais tradicionais de direita, tal como ocorreu no período dos governos de Lula e Dilma. A opção por voltar ao governo custe o que custar, significa abrir mão de qualquer projeto político alternativo. PCdoB, PT, PDT e PSB estão a reboque da oposição de direita e centro-direita a Bolsonaro. O centro desses partidos é evitar colisões com a direita tradicional e, assim, se credenciarem como alternativas que podem impedir a explosão de uma panela de pressão que está fervendo durante a atual crise social.
Isto ocorre porque perderam qualquer perspectiva de atuar para além do neoliberalismo. Enxergam que suas possibilidades de conquistar espaços na institucionalidade está articulada com sua capacidade de se mostrar como alternativa viável para os donos do mercado. Por isso, manter a ordem a qualquer preço é a palavra de ordem que dirige as ações das figuras públicas da centro-esquerda.
Somente assim podemos compreender porque o 5º Congresso do PT, realizado em junho de 2015 (quando as primeiras iniciativas golpistas contra Dilma Rousseff já estavam em curso), o PT deliberou por manter a aliança com o MDB. Seis meses depois, em 02 de dezembro de 2015, Eduardo Cunha (MDB) abriu processo aceitando pedido de impeachment da então presidente da república. Da mesma forma, a escolha pela disputa dentro da ordem explica porque o Diretório Nacional do PT no início de abril deste ano deliberou, apesar de alguns votos minoritários, contra chamar “Fora Bolsonaro”. Em caminho semelhante, o governador do Maranhão, Flávio Dino, afirmou ver em Hamilton Mourão (vice-presidente) uma saída para a crise criada por Jair Bolsonaro.
Construir uma alternativa dos trabalhadores
A votação unânime do PT, do PDT e do PSB no senado pelo congelamento dos salários dos servidores públicos não é uma anomalia, mas sim parte da normalidade que caracteriza a atuação institucional desses partidos. É por isso que é necessário, mesmo defendendo a unidade na ação com as bases desses partidos quando há alguma disposição para a luta, não podemos abrir mão do projeto de construção de uma alternativa programática de esquerda e socialista a esses partidos, alternativa que se expressa, por exemplo, na construção do PSOL.
Hoje, se a prioridade é defender as vidas da classe trabalhadora, não devemos realizar qualquer concessão ao programa do capital para a classe trabalhadora. Ao invés de se identificarem com os ataques encabeçados por Bolsonaro e Guedes no executivo ou por Maia e Alcolumbre no legislativo, a tarefa de parlamentares que representam trabalhadores é defender todo e qualquer interesse objetivo da classe trabalhadora e não votar pelo desmonte dos serviços públicos.
A construção de uma alternativa socialista dos trabalhadores se dá enfrentando publicamente e resolutamente os partidos da ordem. Não será votando junto com Flávio Bolsonaro, Davi Alcolumbre e José Serra que se conquistará novamente a confiança da classe trabalhadora. Ao fazer isso, o PT está repetindo o mesmo erro que possibilitou o bolsonarismo florescer entre setores populares. A decepção por ver um partido supostamente dos trabalhadores defendendo a agenda neoliberal dos mercados custou um enorme preço para todas e todos na classe trabalhadora hoje. Por isso, construir uma alternativa política e social ao PT é uma tarefa central para os socialistas. No sucesso desta tarefa reside a possibilidade de derrotar a agenda neoliberal de Bolsonaro, Mourão, Alcolumbre e Maia – tarefa que o PT mais uma vez mostrou ser incapaz de realizar.