O discreto charme dos super-ricos
Diariamente vemos matérias na Globo, com o título “Solidariedade S.A.”, onde tentam apresentar as grandes empresas e os ricos como bonzinhos, que só pensam no bem da população e doam milhões para o combate ao coronavírus. Vários dos bilionários mais ricos também gostam de se apresentar como “filantropos”, doando para causas em prol dos “menos favorecidos”. Devemos estar felizes pela ajuda dos ricos? Não seriam eles uma parte do problema?
Vivemos um momento na qual o sistema capitalista se mostrou totalmente incapaz de se preparar ou lidar com uma crise como essa pandemia.
Essas riquezas acumuladas pelos ricos são frutos da exploração da maioria da população, que só vive do seu próprio trabalho. O suor do nosso trabalho é a fonte das riquezas e das extravagâncias da elite.A política neoliberal no mundo inteiro promove uma redução de impostos para os ricos e empresas, junto com um desmonte do setor público, como a saúde, contribuindo para o crescimento das gigantes riquezas.
Os efeitos da crise e da pandemia são totalmente diferentes dependendo do lado da divisão de classe que você está. A população pobre morre mais, com todas as injustiças da sociedade agravando os efeitos da pandemia. São os que perdem o emprego primeiro, tem pior alimentação, tem moradias mais precária e apertadas, menos acesso a saneamento, mais doenças e fatores de risco.
Como já constatava Marx 160 anos atrás, só existe ricos, se também existir trabalhadores e pobres: “a acumulação de riqueza num polo é, portanto, simultaneamente, acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravatura, ignorância, brutalidade e degradação moral no polo oposto, quer dizer, do lado da classe que produz o seu próprio produto como capital.”
Por isso, não é possível combater essa pandemia sem também combater as desigualdades sociais e o sistema que está por trás, que se alimenta dessas desigualdades e sucateia os serviços públicos. A taxação das grandes fortunas, das maiores rendas e dos lucros das grandes empresas é um primeiro passo fundamental, especialmente para liberar recursos para combater a crise. Mas é necessário combater o sistema como um todo, se não as estruturas desiguais vão continuar a se sobrepor.
Brasil, país desigual
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2019, da ONU, o 1% mais rico do Brasil concentra 28,3% da renda total do país, segundo maior nível do mundo, quase um terço.
Apesar disso, pagam muito pouco disso em imposto. Segundo dados de 2017, os 0,1% mais ricos (25.177 pessoas), que tem uma renda mensal acima de 320 salários mínimos por mês (mais de R$ 334,4 mil em valores de hoje), só pagam míseros 2% de imposto sobre rua renda. Isso se dá porque 70% de sua renda é totalmente isenta de impostos, como lucros, dividendos e heranças.
Ou seja, ao contrário da propaganda oficial, os ricos pagam muito pouco imposto. Quem paga muito imposto são os trabalhadores de baixa renda e a classe média, em quem os impostos sobre consumo pesam muito.
Na verdade, o Brasil é um paraíso fiscal para os ricos. É um dos poucos países onde não se paga imposto por dividendos para quem tem ações em grandes empresas. Também não há imposto sobre grandes fortunas e o imposto sobre herança chega no máximo a 8%, comparado com 40% nos EUA ou França.
É muito cínico que esses ricos depois tentem posar como “filantropos”, doando o dinheiro que ganharam explorando outros e por qual não pagam impostos. É muito generoso doar dinheiro de outras pessoas! Mas se tentamos aumentar os impostos, parece que o mundo vai acabar.
Segundo a Oxfam, uma pessoa que recebe um salário mínimo teria que trabalhar durante 19 anos para ganhar o salário médio dos 0,1% mais ricos do país. Segundo os dados de 2017, as seis pessoas mais ricas no Brasil detinham uma riqueza acumulada equivalente a 100 milhões de brasileiros mais pobres, a metade da população.
Isso mostra como é falso quando falam que os ricos ganham muito porque “trabalharam muito”. Nada mais mentiroso. Quem mais trabalha nesse país é quem menos ganha.
Mas quem são os super-ricos? Como fizeram suas fortunas?
A maioria dos mais ricos são ricos porque já nasceram ricos. Alguns fizeram fortunas fazendo “negócios”, seja com dinheiro da família ou com um trabalho privilegiado de altos salários. Ninguém que tem empregos que hoje se classifica como “essencial” – como as pessoas que trabalham na saúde ou transporte – poderia acumular dinheiro o suficiente para fazer esse tipo de negócio.
Para a propaganda do sistema, alimenta-se o “sonho de ficar rico”. Nada melhor do que mostrar exemplos daqueles que tiveram uma ideia “genial”, que apostaram numa nova tecnologia ou mercadoria que se tornou um sucesso. Um exemplo disso é o do terceiro homem mais rico do Brasil. Eduardo Saverin (46,2 bilhões de reais de fortuna), foi um dos fundadores do Facebook. Veio de uma família rica e ajudou bancar o projeto.
Saverin vive em Singapura desde 2009 e em setembro de 2011 renunciou à sua cidadania estadunidense. Especula-se que a mudança de cidadania tenha sido uma tentativa de reduzir os impostos após a oferta pública inicial do Facebook. O The Wall Street Journal estimou que ele deixou de pagar mais de 700 milhões de dólares (3,9 bilhões de reais), com essa nova sacada “genial”.
E é esse tipo de “genialidade” que o sistema premia. Outros “gênios” ficam, infelizmente, por fora. Mais genial hoje seria se a pesquisa que foi iniciada para desenvolver uma vacina contra o coronavírus, depois da pandemia do SARS em 2003 tivesse sido concluída. Mas essa pesquisa não gerava lucro, likes ou compartilhamentos, e foi encerrada por falta de financiamento.
As 10 pessoas mais ricas no Brasil, segundo a última lista da revista Forbes, tem uma riqueza acumulada de 67,7 bilhões de dólares ou 372,4 bilhões de reais. 10 pessoas ganhando um salário mínimo precisaria 30 mil anos para chegar nesse número!
Vamos conhecer essas pessoas destacadas
Já conhecemos Eduardo Severin.
O primeiro da lista é o banqueiro mais rico do mundo, Joseph Safra, com 109,5 bilhões de reais de fortuna. Ele vem de uma família de banqueiros e é dono do banco Safra, o sexto maior banco do Brasil. Lucra, portanto, em cima de taxas e juros, um dos jeitos clássicos de redistribuir renda de quem trabalha para quem já é rico.
Em segundo lugar vem Jorge Paulo Lemann (57,2 bilhões), que junto com Marcel Herrmann Telles (4° lugar, 35,8 bilhões), Carlos Alberto Sicupira (5° lugar, 26,4 bilhões) e Alexandre Behring (6° lugar, 23,7 bilhões), são fundadores da 3G Capital, uma empresa que é dona de empresas. Entre suas empresas temos a AB InBev (a maior cervejaria do mundo), a Kraft Heinz (quinta maior empresa de alimentos e bebidas do mundo) e Burger King.
Nenhum deles desenvolveram alguma cerveja, molho de tomate ou hambúrguer. Ficaram ricos comprando empresas. Muitas vezes de trata de criar empresas gigantes fundindo empresas existentes, financiando o negócio com empréstimos, que depois são pagos com os lucros que se geram com os “efeitos sinérgicos”. Quer dizer, cortes de gastos fechando fábricas e demitindo trabalhadores, já que muitas vezes são fábricas que fazem a mesma coisa. O Estado paga seguro-desemprego, e parte dos lucros vai para nossos bilionários.
Também ganham dinheiro usando seu tamanho e peso, junto com um exército de advogados, para evitar impostos. Alexandre Behring, como presidente executivo da Burger King, promoveu a mudança da sede do Burger King para o Canadá. Em dezembro de 2014, o jornal Washington Post relatou que essa movimentação poderia economizar até US$1,2 bilhão (6,6 bilhões de reais), em impostos nos próximos três anos. Isso é dinheiro que deixa de ir para o setor público, como saúde, para enriquecer essas pessoas que depois se faz de bonzinhos fazendo doações de uma pequena parcela disso.
Luciano Hang subiu na lista e agora está em sétimo lugar, com 19,8 bilhões. Uma exceção da lista, era filho de operários de fábrica têxtil e começou a carreira trabalhando na mesma fábrica. Não aprendeu nenhum valor que presta com isso. Criou as lojas Havan, hoje uma das maiores redes de lojas de departamento. Foi condenado por 14 anos de prisão por crimes financeiros, mas o julgamento foi anulado. Bolsonarista roxo, coagiu seus funcionários a votar nele em 2018. Diz que universidades federais “formam zumbis e comunistas” e disse sobre a pandemia que “não podemos parar porque 5-7 mil vão morrer”.
A única mulher da lista se encontra no oitavo lugar. Dulce Pugliese de Godoy Bueno (19,3 bilhões), é fundadora da Amil, gigante dos planos de saúde privada. A Amil tentava ativamente influenciar a política doando para candidatos que defenderia a saúde privada. Na última eleição em que foi permitido doações diretas de empresas, a Amil doou R$ 26,3 milhões, que representam 48% do total destinado para campanha de políticos pelos planos de saúde em 2014. O apoio financeiro de 40 empresas do setor ajudou a reeleger, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff, três governadores, três senadores, 29 deputados federais e 29 deputados estaduais.
Miguel Krigsner (9°, 18,7 bilhões), fundou o Boticário, a gigante de cosméticos. Se formou pela UFPR, que o torna zumbi ou comunista, segundo Hang.
Em décimo lugar temos André Esteves (16 bilhões), formado pela UFRJ, (mais um zumbi ou comunista). “Senior partner” do BTG Pactual, banco de investimento, fundado por Paulo Guedes, que tem US$200 bilhões em ativos (1,1 trilhões de reais). O banco dá mais um exemplo de como pode se fazer fortunas.
Em 2 de outubro de 2018, o Ministério Público Federal (MPF) decidiu iniciar uma investigação preliminar acerca de suspeitas de fraude na gestão de fundos de investimentos administrados pela BTG. Desde 2009, esses fundos receberam aportes no valor de 1 bilhão de reais, oriundos de fundos de pensão de empresas estatais brasileiras (destacando-se os fundos: Previ, do Banco do Brasil; Petros, da Petrobras; Funcef, da Caixa Econômica Federal, e Postalis, dos Correios).
Segundo o MPF, o dinheiro foi investido em apenas uma empresa, a HSM Educacional S/A, controlada por Guedes. Com os recursos oriundos dos fundos de pensão, a HSM Educacional comprou 100% do capital de outra empresa criada por Paulo Guedes, a HSM do Brasil S/A, com um lucro de R$ 16,5 milhões, enquanto a HSM do Brasil S/A passou a apresentar prejuízos recorrentes. Os fundos de pensão de estatais teriam perdido R$ 200 milhões com esse negócio. O BTG também é alvo de operação que investiga vazamento de decisões do Copom sobre taxa Selic em 2019 e foi alvo da 64ª fase da Operação Lava Jato.
É preciso fazer duas menções pouco honrosas sobre alguns que já fizeram parte do “Top 10”, que mostram como a relação com o poder público tem sido um caminho para acumular riquezas bilionárias.
Eike Batista chegou a ser o terceiro mais rico do Brasil em 2012. Boa parte das suas empresas eram criadas para ganhar contratos milionários no setor de mineração e petróleo, além de pura corrupção. Chegou a ser um símbolo dos novos empreendedores e disse sobre si mesmo em entrevista na Veja: “Está florescendo um novo capitalismo no Brasil, formado por empreendedores que se orgulham do próprio sucesso e não têm vergonha de mostrar o dinheiro que têm.” Em 2013, a fortuna dele tinha perdido 99% do valor e em 2014 estava em um bilhão de dólares negativo. Teve seus bens bloqueados e foi preso pela Lava Jato.
Mais bem sucedidos foram os irmãos Batista, que estão em 12° lugar na lista dos bilionários, com 11,6 bilhões de reais cada. A expansão de seu império de carne, a JBS, se deu muito bem com a ajuda do BNDES, que ajudou a financiar a compra de outras empresas e torna-la uma das maiores empresas do ramo no mundo.
Como contrapartida, a JBS se tornou a maior investidora em campanhas eleitorais da história. Na campanha de 2014, doou 391,8 milhões para candidaturas, ajudando eleger Dilma Rousseff, 12 senadores, 18 governadores e 190 deputados federais.
Os irmãos caíram de graça após a delação malsucedida contra Temer em 2017 e vários inquéritos de corrupção. A J&F, dona da JBS, fez o maior acordo de leniência da história, de pagar 10,3 bilhões em 25 anos, para se livrar das acusações. Mas a empresa continua lá e os irmãos continuam bilionários.
“Vão fugir!”
O argumento mais comum contra a taxação dessas grandes fortunas é que não é possível taxá-las, porque aí vão sair do país. Na verdade, boa parte desses bilionários já saíram do país e já não pagam impostos. Mas até que ponto você aceita essa chantagem é uma questão de escolha. Podemos escolher taxar as fortunas e proibir, ou taxar duramente, a fuga de capital, com controle do fluxo de capital. Suas mansões, carros de luxo e fábricas não vão conseguir levar.
Isso não é uma questão nova. No Manifesto Comunista, o tema já é levantado em um programa de 10 pontos. Além de exigir “imposto fortemente progressivo” e “abolição do direito de herança”, há também “confiscação da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes”.
É necessário recolocar esses fatos básicos. Quando dizem que “precisamos dos bilionários, são eles que investem na economia e criam empregos”, a verdade é o oposto! É o nosso trabalho e o setor público que financia os bilionários. Suas riquezas são o fruto do nosso trabalho.
Por isso a taxação das fortunas é um passo fundamental, mas só um primeiro passo e não suficiente por si só. Enquanto existir esse sistema que gera grandes riquezas, elas vão continuar a surgir, reproduzindo a pobreza em outro polo.
Precisamos garantir que a produção seja voltada aos interesses sociais, não ao lucro de alguns milhares de pessoas. Isso fica mais evidente do que nunca nessa pandemia. O acúmulo de riquezas privadas, extraída seja por exploração ou roubo direto, gerou as condições para as consequências horríveis da pandemia.
Romper esse círculo vicioso é romper com o sistema capitalista.