A pandemia e os desafios para a classe trabalhadora em Goiás: Uma discussão sobre mulheres, trabalhadores da educação e o sistema carcerário

A pandemia escancarou o que já vinha sendo debatido e denunciado pela esquerda socialista: a destruição dos serviços públicos, as condições de superexploração e a desconsideração da vida de muitos em detrimento do lucro de poucos empresários são os elementos que marcam o capitalismo atual. A crise expressa pelo coronavírus tem recebido respostas que tomam o mercado como centro e o papel de Bolsonaro promovendo o caos, enquanto trabalha por interesses capitalistas.
Esta semana vimos o aumento exponencial de pessoas mortas. No estado de Goiás, a pandemia ainda não atingiu seu ápice. Até o dia 02 de maio deste ano, conforme dados da Secretária de Saúde do Estado de Goiás, já foram confirmados, por meio de diagnóstico laboratorial, 850 casos de COVID-19. A atitude do atual governo do estado, Ronaldo Caiado (DEM), um tradicional conservador neoliberal foi, inicialmente, reforçar o isolamento social, indo contra os discursos do atual presidente e ex-aliado, Jair Bolsonaro. Porém, após pressões de latifundiários e empresários, Caiado decidiu flexibilizar as medidas de isolamento, o que resultou, segundo os dados oficiais do governo do estado, em um salto de 73 casos em 01 de abril para 850 casos em 01 de maio – isto considerando a subnotificação provocada pela inexistência de testagem massiva no estado.
Caiado, inicialmente, decretou o fechamento das empresas e indústrias e discursou publicamente enfatizando a necessidade do isolamento, mas agora vem defendendo medidas de flexibilização para garantir o “mercado” em detrimento das vidas. Isso mostra que decretos preventivos funcionam como escudo para proteger a economia dos pequenos e grandes empresários e que os discursos de Caiado são meras palavras publicitárias de um médico que se assume como guardião da saúde pública, enquanto desmantela serviços públicos.
O salto no número de casos é resultado de um problema básico: palavras temperadas com postura e tonalidade autoritárias não colocam comida na mesa daqueles que têm como único bem a força de trabalho vendida no mercado e não resguarda a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras do estado de Goiás que precisam de dinheiro para se alimentarem. Também não levam em conta o trabalhador informal, mais de 40% da população em Goiás, tampouco considera o desemprego com taxa média de 10,6% no estado. No combate ao COVID-19, nosso governador age como Procusto da mitologia grega: ou esquarteja ou estica até a morte a classe trabalhadora para caber na cama fria de ferro da proteção liberal do capitalismo.
A pandemia atinge de diferentes formas a classe trabalhadora em Goiás. Além da fome enfrentada por trabalhadores e trabalhadoras desempregados ou na informalidade, há efeitos específicos sobre diferentes camadas da classe. Poderemos perceber isto a partir de uma análise sobre os efeitos da pandemia entre mulheres, população prisional e trabalhadores da educação.
As mulheres em Goiás durante a pandemia
Após 20 de março de 2020, o Ministério da Saúde declarou transmissão comunitária do COVID-19 e a maioria dos governos estaduais decretaram o isolamento e distanciamento social. Embora seja a maneira mais eficiente de prevenção do contágio pra que o sistema de saúde não entre em colapso, o isolamento social é ineficiente para garantir a sobrevivência da classe trabalhadora. Enquanto boa parte das camadas médias da população consegue ficar em casa, tem acesso à internet e fazem home office, a camada mais precarizada dos trabalhadores não sabe o que comer no dia seguinte, principalmente pela falta de ações sociais emergenciais. Tais ações deveriam ser efetivadas pelo governo federal. Com a pandemia, homens e mulheres da classe trabalhadora enfrentam o desemprego, redução de atividades informais e, assim problemas econômicos são escancarados. Neste sentido, o isolamento social potencializa fatores já problemáticos em um sistema capitalista e patriarcal, em especial o aumento dos casos de violência doméstica.
As notícias sobre o aumento de violência contra a mulher têm chamado atenção em todas as partes do mundo. No Brasil, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) registrou um aumento de 9% nas denúncias pelo disque denúncia – isso desconsiderando a subnotificação, que pode ter sido intensificada pela situação de isolamento social. Em Goiás, não existem dados oficiais divulgados, mas é possível afirmar que as mulheres em situação de violência encontram dificuldade de serem atendidas devido ao desmantelamento de políticas de assistência para mulheres no estado. Este desmonte de políticas vem sendo sistematicamente denunciado por feministas socialistas em Goiás.
Em ação de panfletagem realizada pelas mulheres da LSR, em virtude do dia internacional de luta da não violência contra a mulher (25 de novembro), e como convite para o ato de lançamento da Coletiva Feminista Nossas Vidas Importam (@cfnossasvidasimportam), foram distribuídos panfletos denunciando que o estado de Goiás está em segundo lugar no número de homicídios de mulheres e em primeiro lugar no número de homicídios de mulheres negras. Apenas no primeiro semestre deste ano, foram registrados 1.209 casos de violência contra a mulher. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 52% das mulheres que sofrem agressões ficam caladas, ou seja, os dados que citamos não expressam a verdadeira realidade da violência contra a mulher em Goiás. Quando sofrem violência, muitas mulheres ainda se deparam com uma rede de atendimento desarticulada, que não está preparada para acolher, compreender e acompanhar cada caso, relegando mulheres a procedimentos longos, fragmentados, incompletos e que as revitimizam vez após outra. Centros de referência, casas abrigos e delegacias especiais estão sendo fechados por falta de orçamento. Além disso, inexiste uma política preventiva, uma educação não sexista e campanhas de combate ao machismo.
Sem emprego ou fonte de renda, a mulher que já vivencia um ambiente violento fica em uma situação de maior vulnerabilidade. Conflitos causados por problemas financeiros e isolamento social estão aumentando no mundo todo. Temos casos na China, Estados Unidos e Argentina em que agressores usam a situação causada pela pandemia como forma de propagar o ciclo de violência doméstica contra a mulher.
Em meados de março, a ONU divulgou um estudo que mostrou que as mulheres na América Latina são as mais afetadas pelo impacto social e econômico, principalmente pelo trabalho não remunerado, no momento de crise. São as mulheres que constituem a maior porcentagem da economia informal, apesar de setores formais terem uma alta participação das mulheres, os setores informais abrigam a maioria das trabalhadoras domésticas e cuidadoras que não possuem plano de saúde e nem plano de seguridade social para terem amparo. Ainda segundo o documento, a crise afeta a saúde e a segurança da mulher, pois serviços de saúde materna, disponibilidade de contracepção e outros serviços (como o direito ao aborto) podem ser interrompidos ou ter acesso dificultados.
Outro aspecto importante é que, a maioria significativa dos profissionais na linha de frente da saúde são mulheres e, portanto, estão mais expostas ao COVID-19. Estima-se que 67% da força global de saúde é formada por mulheres, dado que deixa claro, mais uma vez, que a vida da mulher trabalhadora precisa ser alvo de debates específicos ao lidarmos com a questão da pandemia.
Covid-19 e o sistema penitenciário em Goiás
As cadeias sempre estiveram a serviço dos interesses capitalistas. O sistema carcerário, em condições ordinárias, já é uma instituição de desumanização e violação de direitos sociais sustentada por um discurso conservador punitivista que o utiliza como método de controle social e de extermínio de parcelas da população, especialmente homens jovens, negros e pobres. O número de encarcerados cresce exponencialmente e o perfil destas pessoas e todo o debate sobre o encarceramento deve levar em consideração os recortes claros de classe, gênero e raça das populações mais afetadas. Para analisar os efeitos da pandemia, também devemos considerar esses recortes.
Pessoas encarceradas passam por processos não só de perda da liberdade e vínculos sociais, mas também por falta de condições mínimas de habitação, saúde e alimentação. Por isso, o ambiente carcerário é especialmente vulnerável à propagação de doenças infectocontagiosas. A tuberculose, por exemplo, tem uma incidência 30 vezes maior dentro das prisões. O alastre de doenças infectocontagiosas é muito rápido, o que é agravado pelo fato de que os estabelecimentos prisionais brasileiros operam hoje com um número 70% maior do que são capazes.
No imaginário social existe a falsa proposição de que as condições das pessoas encarceradas não dizem respeito a toda a sociedade: se os “bandidos” estão trancafiados e fora de circulação, o que acontece com seus corpos, suas famílias e comunidades mais próximas não nos afeta. Por isso, quando uma pessoa encarcerada recebe algum tipo de tratamento humanizado, o pensamento conservador punitivista emerge justificando as violências cometidas contra as pessoas presas e desejando mazelas e torturas ainda maiores. São corpos descartáveis, que podem ser sujeitos a quaisquer violações, inclusive a morte. Famílias e comunidades sequer são consideradas parte da questão, porque prezar pelos laços sociais e por uma ressocialização efetiva implicaria em responsabilizar a sociedade capitalista como um todo.
Até o momento, as medidas tomadas contra o COVID-19 no sistema carcerário buscam saídas por dentro do sistema. A partir de orientações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), algumas das medidas tomadas foram: suspensão de visitas, suspensão de contato com advogados (exceto em situações urgentes), suspensão de atividades educacionais, de trabalho, assistência religiosa, voluntários etc. Porém, tais medidas são apenas legalistas e consideram aspectos sociais presentes no sistema carcerário. Além disso, é preciso levar em consideração que as condições sanitárias precárias são a prática institucional costumeira nas prisões. Mudar tal situação em uma situação tão delicada como a atual demandaria uma reavaliação e reformulação sobre a forma como as pessoas presas são tratadas. Por isso, não é surpreendente que a população carcerária reagiu à pandemia com rebeliões em massa, as quais começaram a partir das suspensões das visitas.
No dia 18 de março, a Câmara de Sistema Prisional e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal sugeriu a prisão domiciliar para detentos no regime semiaberto e aberto, presos por não pagar pensão alimentícia e pessoas do grupo de risco para o Covid-19. Tal sugestão foi combatida pelo ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, quem alegou que a prioridade deveria ser a segurança da população.
No estado de Goiás, as visitas às unidades prisionais do estado, que já haviam sido suspensas por 15 dias, foram, no dia 24 de março, suspensas por mais 30 dias, retirando-se também as entregas pessoais de produtos de higiene e alimentação. A portaria orienta que as unidades prisionais disponibilizem canais de comunicação (telefone/email) para atendimentos virtuais e suspende todas atividades sociais que envolvam entrada de outras pessoas nas unidades prisionais. A portaria determina, ainda, separação imediata dos presos novos e criação de áreas específicas para isolamento de presos com sintomas ou de presos com mais de sessenta anos ou doenças crônicas.
No dia 26 de março, o Tribunal de Justiça de Goiás determinou prisão domiciliar para pessoas com doenças crônicas comprovadas e a transferência das pessoas do grupo de risco para a Casa do Albergado. Também definiu que os livramentos condicionais promovidos nos próximos seis meses podem ser antecipados para diminuir o número de detentos. Para atender possíveis casos de presos que contraíram a Covid-19, estuda-se atendimento na Unidade Prisional de Águas Lindas, que ainda não foi oficialmente inaugurada.
Trabalhadores do sistema judiciário têm relatado que diversas dessas medidas não têm sido cumpridas. Advogados alegam que o contato remoto com seus clientes não tem sido respeitado, tornando a comunicação entre eles praticamente impossível. Há denúncias de falta de alimentos, materiais de higiene e piora nos problemas cotidianos das penitenciárias. Alguns chegaram a afirmar que estão passando fome.
Com relação aos sentenciados em regime fechado, a autorização para regime domiciliar somente pode ocorrer por meio de pedido através de advogado constituído ou pela defensoria pública. Desta forma nas cidades do interior de Goiás, que na sua maioria não possuem Defensorias Públicas instaladas, o preso vai precisar pagar um(a) advogado(a) para apresentar o pedido ao juiz(a).
O Ministério Público poderia verificar a situação dos presos que estejam no grupo de risco inclusive porque os Presídios deveriam fornecer ao Judiciário uma lista de presos que se situam no grupo de risco. Contudo, nas Comarcas onde os Presídios forneceram esta lista ao Ministério Público não houve ainda avaliação dos casos. Outro ponto importante, é que os sentenciados em regime fechado tiveram as suas visitas suspensas e não foi viabilizado qualquer meio de contato com familiares (por exemplo, telefonemas). Além de tudo, na maioria dos presídios não há estrutura para isolar presos com sintomas de COVID-19.
Com a realidade da disseminação do COVID-19 se torna imperativa a discussão sobre o sistema carcerário. Está claro que o contágio em uma instituição desse porte significa uma tragédia iminente que afetará todas as pessoas que ocupam tais espaços, bem como os trabalhadores destes locais e as mais diversas famílias. Ao contrário de conservadores e liberais, o problema do sistema carcerário é um problema de toda a sociedade. Isso sempre foi assim em condições normais e é algo intensificado pela pandemia.
Os desafios de trabalhadoras e trabalhadores da educação
Décadas de governos neoliberais no estado de Goiás resultaram em um processo intenso de desmantelamento da educação pública acompanhado com o crescimento do setor privado – fortemente constituído por lobistas do Movimento Escola Sem Partido. Exemplo disso é a “Faculdade Sul-America”: seus donos são explícitos inimigos das universidades públicas e vigorosos militantes contra a liberdade de ensinar e aprender. Ao mesmo tempo, oferecem condições precárias de trabalho para docentes, reduzem o ensino superior a aulas super lotadas (sem pesquisa, sem extensão, salas lotadas, etc.) e, como consequência disso, é, segundo avaliação do INEP, uma das piores instituições de ensino superior do país.
O lobby dos empresários da educação resultou em governos que destroem a educação pública. Enquanto o tucano Marconi Perillo (governador do estado entre 2011-2018), destruiu a carreira de professoras e professores estaduais, congelou salários e militarizou irrestritamente as escolas estaduais, Ronaldo Caiado (DEM), eleito em 2018, assumiu o governo destruindo a Universidade Estadual de Goiás (UEG) ao demitir professores, não convocar concursados e fechar cursos. Por isso, professoras e professores em 2019 realizaram importantes mobilizações de resistência.
Frente à pandemia, o governo respondeu recomendando o fechamento das instituições de ensino. Todavia, isso foi acompanhado por uma série de medidas colocando no lugar uma série de atividades não-presenciais, isto é, de Ensino à Distância (EaD). O caiadismo não somente recomendou a utilização de EaD durante o isolamento social, mas abriu espaço para coerções. Assim, a reitoria da UEG publicou portaria afirmando que docentes que não aderissem ao ensino não-presencial poderiam ser processados disciplinarmente por abandono de trabalho. Da mesma forma, a rede estadual de educação básica continuou funcionando criando mais pressões para trabalhadoras e trabalhadores continuarem trabalhando. No setor privado não houve qualquer interrupção das atividades: tudo continua sem qualquer possibilidade de professoras e professores reagirem.
O EaD é uma estratégia que, em última instância, promove a precarização do trabalho docente, além de fortalecer uma concepção de ensino-aprendizagem unidirecional. É usado por empresários e governos como estratégia de garantir educação de baixa qualidade, mas barata, para grupos amplos da população. Ao incentivar o EaD como modalidade prioritária de ensino durante a pandemia, governos e patrões estão preparando mais ataques contra trabalhadoras e trabalhadores da educação: o “sucesso” do modelo durante a pandemia pode ser usado como justificativa para demissões, subcontratações e mais precarização.
Nesta conjuntura, em uma categoria majoritariamente feminina, o EaD é fonte de enorme sobrecarga. Professoras, muitas delas mães, sobrecarregadas com tarefas domésticas, são obrigadas a cuidar da educação de seus filhos (já que as escolas estão fechadas) e, ao mesmo tempo, preparar vídeos, orientar alunos, dar aulas pela internet, etc.
Além disso, na pandemia o EaD não considera as desigualdades no acesso digital. Quando falamos de estudantes de escolas públicas ou de universidades privadas, estamos falando de um público que pode não ter a internet necessária para conexões estáveis, computadores ou acesso à bibliografia recomendada. Assim, as possibilidades de reduzir desigualdades no acesso à educação que a escola ou as universidades oferecem (com computadores, redes wi-fi, bibliotecas, etc.) desaparecem e a qualidade do ensino se perde.
Por isso, frente à pandemia em Goiás a luta pela suspensão de calendários, adiamento do ENEM e contra o ensino não-presencial deve se somar à luta geral contra a precarização do trabalho de professoras e professores e em defesa da educação pública e gratuita. A pandemia é apenas uma justificativa para aprofundar processos de privatização da educação e de retirada de direitos de trabalhadoras e trabalhadores da educação.
Os problemas da pandemia são problemas do capitalismo: A única alternativa é socialista
É tarefa dos socialistas apontar para as contradições de um sistema dividido em classes e que coloca para a classe trabalhadora pagar por seus problemas. Hoje, com mais de cinco mil mortos em todo o país, está claro que patrões e governos querem que paguemos com nossas vidas para que o mercado e o sistema continuem normalmente.
Não há saídas por dentro da ordem. Nos exemplos que apresentamos, as respostas oferecidas oferecem apenas mais mortes. Mulheres são vítimas da violência doméstica e da exploração capitalista. A população carcerária está extremamente vulnerável, pois as medidas institucionais que foram tomadas não mudam a lógica punitivista que tem como objetivo manter a dominação burguesa. Já na educação a resposta prioritária do sistema é um meio para, no futuro, aprofundar a retirada de direitos de trabalhadoras e trabalhadores da educação e mercantilizar ainda mais o que deveria ser um direito.
Nas casas, nas prisões e nas escolas ou universidades a resposta do capital para a pandemia é a mesma: o mercado e não a vida, o lucro e não as necessidades sociais. Enfrentar problemas como EaD, violência doméstica e o punitivismo do sistema prisional exige algumas medidas específicas, mas nenhum dos problemas apontados aqui será resolvido sem desafiar as raízes do capitalismo. Em todos os casos, é necessária a organização da classe trabalhadora em lutas feministas, abolicionistas e sindicais que podem ser unificadas sob a bandeira do socialismo.
Os limites do caiadismo e do mercado em Goiás só podem ser superados com a superação do capitalismo. É este desafio que a LSR enfrenta, é o desafio que convidamos você para enfrentar.