A teoria da luta de classes de Karl Marx: a classe trabalhadora e a revolução

Sem a força de trabalho dos trabalhadores, os capitalistas não podem lucrar e o sistema não pode funcionar. 

De todas as coisas que um capitalista pode comprar para realizar seus negócios, a força de trabalho é a única mercadoria que acrescenta valor; isto significa que o trabalho produzir algo que vale mais do que o custo original dos diferentes componentes necessários para o produto final. O tempo, o pensamento e a energia utilizados pelos trabalhadores no processo produtivo – cujos esforços são apenas parcialmente compensados pelos patrões, quem se apropriam de parte da riqueza criada pelo trabalhador – é, em última instância, a fonte de todo o lucro (ou da mais-valia) em uma economia capitalista. Colocando de forma direta: todo lucro provém do trabalho não-pago realizado por trabalhadores. E a busca por lucro é o elemento central do capitalismo[1]

Esta descoberta revolucionária de Karl Marx possibilitou uma explicação geral sobre o funcionamento do sistema capitalista – identificando a exploração, e consequentemente a injustiça, como o núcleo do sistema. A teoria destaca a análise socialista sobre as economias e as sociedades existentes no mundo de hoje, as contradições e os antagonismos nas relações sociais, e a instabilidade e os conflitos inerentes que emergem da divisão básica do mundo entre aqueles que possuem capital e exploram os outros e aqueles que possuem nada ou pouco e, por isso, são explorados, isto é, a divisão entre capitalistas e trabalhadores.

Capitalistas e trabalhadores

Os trabalhadores são aqueles que não possuem quaisquer imóveis, equipamentos, materiais, ou dinheiro necessários para comprá-los, necessários para produzir ou comercializar – e assim garantindo a sua sobrevivência pelo mercado – e, por isso, precisam vender sua capacidade de trabalhar (a força de trabalho). Os capitalistas possuem os requisitos citados, mas para colocá-los em movimento para lucrarem precisam que outros trabalhem para eles. Por isso, os capitalistas oferecem salários para os trabalhadores de forma que: (a) os trabalhadores possam subsistir; e (b) seja possível o capitalista lucrar com tudo o que foi produzido e depois de pagar pela subsistência do trabalhador. Quanto menor o salário e mais horas trabalhadas pelo salário, maior é a exploração do trabalhador pelo capitalista, isto é, eles estão ganhando mais dinheiro às custas dos trabalhadores.

É verdade que esta situação é definida pelo patrão e pelo trabalhador em um acordo livremente celebrado e séculos de mistificação ideológica criaram a impressão de que se trata de um acordo justo para ambas as partes. De um certo ponto de vista, a partir de uma perspectiva limitada ao nível individual, trata-se de algo aparentemente razoável: no fim do processo, tanto trabalhador, quanto capitalista são pagos. O problema é que ambos são pagos por um trabalho que é realizado apenas por uma das partes. Isto fica explícito quando olhamos o problema a partir da situação das classes sociais e não de indivíduos isolados. Quando a situação descrita anteriormente é generalizada para toda a economia, podemos identificar duas classes principais: (1) uma classe formada pela maioria, de pessoas que trabalham e, praticamente, fazem todo o trabalho criando a riqueza, mas que possuem quase nada; (2) uma classe minoritária que quase não trabalha e que não cria a riqueza, mas que praticamente possui quase tudo.

A competição no mercado e a necessidade insaciável de lucro obriga os capitalistas a expandirem seus negócios intensificando a exploração e acumulando um número cada vez maior de – cada vez mais inquietos – empregados. Estes, para defenderem e melhorarem seus direitos e condições de vida, são obrigados a se organizarem. Os impulsos instintivos dessas duas classes de pressionarem a taxa de exploração para direções opostas criam uma tensão constante na sociedade capitalista: a luta de classes (que se manifesta socialmente nos conflitos de ideias, organizações e instituições), cuja existência é negada pelos ideólogos de direita. É a luta de classes – com seus altos e baixos, idas e vindas – que, em última instância define de maneira decisiva todas as mudanças históricas e sociais. 

Ao reconhecer este conflito básico (que se intensifica significativamente em períodos de crises) e o seu papel central na produção (o que lhe confere um enorme poder latente), Marx identificou a classe trabalhadora como a força fundamental para desafiar a dominação dos exploradores e, além disso, criar uma sociedade em que a riqueza que é produzida coletivamente seja desfrutada coletivamente.

Reação e confusão

Socialistas entendem que a análise apresentada aqui continua, em essência, válida. Ela não só resistiu ao teste do tempo e os inúmeros desafios apresentados por economistas e teóricos políticos de todos os espectros, mas também foi reafirmada pela história dos movimentos da classe trabalhadora por mais de um século e meio depois que Marx elaborou suas ideias. Ideólogos conservadores sempre contestaram a validade do marxismo, pois temem suas conclusões revolucionárias. Mas ao longo do tempo – por conta do fracasso do movimento socialista em alcançar os seus objetivos até o momento – mesmo aqueles que são críticos do sistema e reconhecem os seus profundos e insolúveis problemas, começaram a negar a possibilidade de uma mudança revolucionária e, especificamente, a capacidade revolucionária da classe trabalhadora.

O enfraquecimento numérico e ideológico das organizações tradicionais (como os sindicatos e os partidos social-democratas) da classe trabalhadora resultante do colapso do stalinismo e o fortalecimento do neoliberalismo deixou um profundo vácuo político. Desde a queda do muro, as direções dos sindicatos e dos partidos social-democratas em quase todos os países se acomodaram ao sistema e abandonando até mesmo o apoio retórico a uma alternativa ao capitalismo. Como resultado, o movimento dos trabalhadores, que era um ponto de referência para milhões de trabalhadores e jovens no passado, é visto agora apenas como um ponto auxiliar das lutas sociais e não a sua base e liderança. 

establishment capitalista, percebendo essa fragilidade, realizou uma enorme ofensiva contra as ideias socialistas. O seu objetivo foi mistificar a existência de uma divisão de classes e, especialmente, a existência de uma classe social potencialmente poderosa que pode atuar de forma independente e em favor dos interesses sociais de todas e todos que lutam contra o sistema. Isso teve um impacto real, resultando em desapontamento, frustração e confusão entre as massas de trabalhadores e jovens nas décadas recentes. Porém, a atual crise do sistema capitalista, a qual está sem qualquer solução a vista, está ela mesma minando a guerra ideológica contra o marxismo, já que a sempre-presente luta de classes está se intensificando novamente.

Celebrar 200 anos desde o nascimento de Karl Marx demanda recuperar suas ideias sobre luta de classes e revolução para nos ajudar a atuar na luta socialista. 

Opressores e oprimidos

O Manifesto Comunista abre com a declaração de que: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. Engels, mais tarde, especificou que isto se referia à “história escrita”, já que existiu um amplo leque de sociedades humanas que, por necessidade, se baseavam na cooperação e na igualdade. As condições primitivas e um etos igualitário preveniam a acumulação de riqueza privada e propriedade e, consequentemente, impediam a existência de qualquer hierarquia significante nos grupos sociais.

Uma revolução neste “comunismo primitivo” ocorreu com a domesticação de animais e o início da agricultura por volta de 10 mil anos atrás. Estes processos possibilitaram a produção de um excedente permanente pela primeira vez e, a partir daí, por centenas ou milhares de anos, surgiram divisões de classes entre aqueles que possuem o excedente e se tornam ricos e aqueles que não possuem nada e se tornam os pobres. As complexas sociedades de classes culturalmente e tecnologicamente avançadas possuíam outras características novas: guerras por terras e recursos; escravidão por exploração; surgimento do Estado e seus organismos armados para proteger a propriedade; a família patriarcal que possibilita transmitir privilégios para as gerações seguintes; e os levantes populares das classes inferiores que, algumas vezes, se tornam movimentos revolucionários[2].

A sociedade de classes fez da desigualdade e da injustiça processos sistêmicos, sendo que no passado eram ocorrências casuais. Agora, seções da sociedade negavam o acesso ao usufruto dos frutos do trabalho coletivo pela maior parte da sociedade. Para manter as posições de dominação, foram criadas instituições e justificativas ideológicas ou religiosas. As elites minoritárias nas sociedades pré-capitalistas eram formadas por: faraós, imperadores, reis, sultões, papas, czares e outros “nobres”. Sob a ordem suprema, as sociedades e economias comandadas pelos dominadores existia uma luta de classes em movimento constante. Tal como Marx e Engels colocaram: “Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada”[3].

Marx não foi o primeiro a perceber as divisões e lutas de classes nas sociedades humanas, mas o que ele descobriu foi a relação entre a luta de classes e “determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção”[4]– processo fundamental para compreender como e por que revoluções ocorrem.

Concepção materialista de história

Para Marx, o estudo da história humana e o seu desenvolvimento, tal como o estudo da história natural deve começar com a questão de como os seres humanos vivem e se reproduzem – como eles comem, bebem, dormem, se aquecem, se protegem nos ambientes em que vivem. Estas necessidades básicas devem ser satisfeitas antes de qualquer atividade criativa como arte, ciência ou filosofia. Assim, o ponto de partida para analisar qualquer sociedade é a forma como ela organiza a produção daquilo que é necessário para existir (o “modo de produção”) e, em seguida, no caso de produzir mais do que o necessário para existir, como os recursos adicionais (e, de fato, os meios de produzi-los, ou seja, as “forças produtivas”) são usados. Em outras palavras, em uma sociedade de classes, trata-se de analisar quem possui e controla os meios de produção e por quem eles são apropriados (as “relações de produção”).

Enquanto estudava a história das sociedades de classes, Marx percebeu que apesar de existir uma tendência geral para a civilização, esta não era um processo simples, contínuo e inexorável, pois, junto com o progresso (no sentido de avanços rumo a uma sociedade que, em tese, poderia produzir o suficiente para atender as necessidades de todos) existiam retrocessos e estagnações. Por este meio, ele percebeu que o desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade era uma força fundamental do progresso e identificou três modos de produção básicos, apesar de existirem diversas variações híbridas, a saber: 

O modo de produção escravista (antigo) em que os “mestres” literalmente possuíam escravos explorados por eles em economias de base agrícola em que também ocorriam trocas. Este é o tipo de sociedade que existiu, por exemplo, na Grécia Antiga ou no Império Romano. O segundo modo de produção foi o feudal. Trata-se de um sistema econômico baseado na agricultura mais avançado e difundido, no qual as principais relações ocorriam entre os senhores que possuíam a terra que era trabalhada pelos servos que também trabalhavam para si mesmos. Este é o modo de produção predominante na Europa até o século XVIII. O terceiro é o modo de produção burguês, no qual a indústria e o comércio são dominantes e em que as principais classes em conflito são os capitalistas e os trabalhadores assalariados.

Cada modo de produção possui classes exploradas e classes dominantes. De uma forma específica, cada modo de produção contribuiu, por um intervalo de tempo, para o desenvolvimento das forças produtivas. As classes dominantes, ao estabelecerem o domínio e a expansão de seu sistema em favor de seus próprios interesses, também contribuíram para uma ruptura com as formas de produção que anteriormente operavam. Neste sentido, em algum momento, as classes dominantes cumpriram um papel historicamente progressista. Mas em certos momentos, quando são constituídas condições sociais específicas (com novos avanços tecnológicos e científicos), abre-se o caminho para formas novas e mais eficientes de organizar a produção – mas que são, inevitavelmente, barradas pelas relações de classes existentes, pois estas são configuradas para atender uma estrutura social e econômica particular (que é cada vez mais ultrapassada). Neste momento, o caráter progressista da classe dominante desaparece. Marx colocou nos seguintes termos:

“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social”[5]

É importante destacar como isto se aplica ao mundo capitalista em que vivemos hoje. Para citar apenas um exemplo, a agricultura, hoje as forças produtivas produzem 50% mais do que é necessário para alimentar todas as pessoas do planeta[6]e, mesmo assim, 815 milhões de pessoas passaram fome ou estavam subnutridas em 2016[7]. A razão para isto ocorrer é a existência de relações de produção capitalistas, nas quais o que importa são os lucros dos capitalistas e não as necessidades da maioria na sociedade. Neste sentido, são relações sociais que funcionam como um entrave para um potencial virar realidade. Somente uma economia socialista, democraticamente planificada pode utilizar a capacidade produtiva existente e potencial para efetivamente atender as necessidades de todos. 

O início de “uma época de revolução social” não significa que ocorrerá, necessariamente, uma transição revolucionária de um modo de produção para outro. Para tanto, é preciso existir uma classe social emergente que pode mudar a situação e desafiar a classe dominante, caso contrário a “destruição das duas classes em conflito” sempre é uma possibilidade. Portanto, a interpretação mecânica que afirma que Marx enfatizou a produção como força motora da história é unilateral e equivocada. Tal como o próprio Marx escreveu em outro texto: “A história nada faz, ela ‘não possui nenhuma riqueza imensa’, ‘não trava nenhuma batalha’. É o ser humano, vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta”. Assim, os resultados de uma época de revolução social dependem da luta de classes. 

O papel da burguesia

O que a concepção materialista de história de Marx provou é que nada é fixo, ordenado ou inevitável. Impérios, dinastias e sistemas sociais em sua totalidade que, em algum momento, pareciam poderosos e eternos acabaram desaparecendo. Citando Heráclito, um dos filósofos favoritos de Marx, a mudança é a única constante na história. Marx estava interessado em compreender a implicação disso para o sistema social predominante de sua época: o capitalismo. Para tanto, sua abordagem foi a de analisar a emergente classe de trabalhadores assalariados que: “de todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”[8].

O que levou ele a essa conclusão? Marx era, segundo as palavras de seu melhor amigo Engels, “antes de qualquer coisa, um revolucionário”. O que fez dele um revolucionário, desde a juventude, foi uma repulsa instintiva contra toda a injustiça existente no mundo. Sendo um estudioso, ele colocou sua mente curiosa para tentar compreender este mundo. Rapidamente ele localizou as raízes da desigualdade na própria divisão social em classes que, em sua encarnação moderna, se manifestava na sociedade “burguesa”, a qual, no curso de seu reinado relativamente curto demonstrou ser incrivelmente dinâmica e brutal. Porém, Marx e Engels, em seus estudos colaborativos perceberam que tal dinamismo é a fonte da força, e ao mesmo tempo, da fragilidade do capitalismo. Eles escreveram: 

“A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. (…) As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade; pelo contrário, tornaram-se poderosas demais para estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e amealham a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio”[9].

As formas desordenadas e agressivas do capitalismo são o produto de fortes contradições internas que resultam também em crises econômicas periódicas. Porém, diferentemente de crises que ocorriam no passado e que surgiam da escassez, as crises competitivas do capitalismo resultam do fato de que se está produzindo demais e muito rápido, de forma que o mercado fica sobrecarregado, os lucros são reduzidos e os investimentos secam. Então, os efeitos da crise se manifestam na medida em que o desperdício material e humano se acumula, enquanto o mercado tenta se ajustar. Tal como é explicado no “Manifesto Comunista”:

“E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evita-las”.

E, então, vem a conclusão:

“As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. A burguesia, porém, não se limitou a forjar as armas que lhe trarão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – a classe trabalhadora moderna, os proletários”.9

O proletariado de Marx ainda existe?

É conhecida a afirmação de Marx e Engels de que: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros.”[10]

Antes de olhar para quais são as características específicas da classe trabalhadora que fazem isso, é importante analisar rapidamente uma suposição muito comum sobre Marx e sua concepção sobre a classe trabalhadora e a luta: a de que a classe trabalhadora que Marx conheceu nas fábricas de Manchester e Londres em meados do século XIX não existe mais e não se parece nem um pouco com a classe trabalhadora, por exemplo, de Manchester e Londres nos dias de hoje. Consequentemente, suas teorias sobre o papel que a classe trabalhadora pode ou poderia desempenhar, ainda que tenham sido válidas no passado foram superadas e não podem ser aplicadas ao mundo moderno.

É óbvio e inegável que o capitalismo passou por muitas mudanças nos 150 anos que se passaram desde que Marx escreveu o “Capital”. Naturalmente, a classe trabalhadora, da mesma forma, passou por mudanças em seu tamanho, localização ou composição. São mudanças reais, perceptíveis e, em alguns casos, significativas que devem ser assimiladas por qualquer marxista sério hoje. Porém, também é preciso afirmar que se Marx tivesse visto o que aconteceu nos últimos 150 anos, dificilmente ele teria ficado surpreso com a existência das citadas mudanças. A sua teoria da classe trabalhadora incorpora a expectativa de que o tamanho, a localização e a composição da classe trabalhadora mudarão constantemente. Marx escreveu: “Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria”[11]. Isto em um momento em que a classe trabalhadora era apenas 2-3% da população mundial. E, quando Marx estava vivo, a maior parte do proletariado inglês não era formada por operários industriais robustos, mas por serventes domésticos – em sua maioria mulheres. Sua visão da classe trabalhadora estava fundada mais em considerações mais gerais do que em condições e experiências específicas de qualquer setor específico da classe trabalhadora.

Também é um fato de que as condições de trabalho precárias enfrentadas pelos trabalhadores na época de Marx ainda existem em diversas regiões. Por exemplo, a exploração corporativa do trabalho infantil ainda é enorme – ela afetava 168 milhões de crianças em 2012, seja na indústria têxtil em Bangladesh onde enfrentavam uma jornada diária de 11 horas para assegurar o faturamento de US$22 bilhões ou no Peru onde contribuem para os US$3 bilhões gerados na mineração de ouro[12]. Condições precárias também estão presentes mesmo em empresas de alta tecnologia, como a Amazon, nas quais os funcionários trabalham 55 horas por semana e, por isso, são forçados a montar acampamento em armazéns porque não há um tempo suficiente para retornar para casa antes do próximo turno[13].

O precariado: uma nova classe?

A precariedade é uma característica da força de trabalho nos dias de hoje que foi enfatizada por diversas pessoas como uma ruptura com a classe trabalhadora “clássica”. Por exemplo, o economista Guy Standing, um importante expoente nos estudos sobre o novo “precariado” chega a afirmar que o trabalhador moderno, mal pago, inseguro e temporário é parte de uma nova classe ou da “formação de uma nova classe” com “relações de produção, relações de distribuição e relações estatais distintas” e, portanto, com interesses diferentes daqueles que possuem empregos com salários decentes e estáveis. Standing afirma: 

“O precariado não é parte da ‘classe trabalhadora’ ou do ‘proletariado’. Estes termos sugerem uma sociedade constituída por trabalhadores em empregos de longo-prazo, estáveis e com horas fixas, assim como com o desenvolvimento de uma carreira, com possibilidade de sindicalização e acordos coletivos, com título de cargos que seus pais e suas mães seriam capazes de compreender e lidando com patrões locais com nomes e características familiares.”[14]

A visão de proletariado de Standing é diferente da visão marxista, pois o autor arbitrariamente estreitou a definição de proletariado para  excluir a grande maioria daqueles que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Parece que sua definição é influenciada por uma visão da classe trabalhadora que esteve culturalmente em voga nos anos 1950 e 1960 em países industriais avançados, não como era antes disso ou hoje. Mesmo que em alguns locais de trabalho predominassem empregos seguros e possibilidades de sindicalização, isto ocorreu apenas por um curto período de tempo e, mesmo nesta época, existiam muitos trabalhadores precarizados. De fato, os benefícios e os direitos que eram usufruídos pelos trabalhadores foram conquistados por meio de lutas realizadas por trabalhadores equivalentes ao chamado “precariado” ao longo dos anos 1920, 1930 e 1940 e, desde então, foram defendidos pela classe trabalhadora organizada. 

A precariedade sempre existiu para os trabalhadores no capitalismo. Primeiro, porque as contradições do sistema produzem crises periódicas que podem colocar em risco até mesmo empregos “estáveis”. Segundo, porque existe um exército industrial de reserva que se manifesta na forma de desempregados ou subempregados. As dificuldades enfrentadas pelos desempregados servem como uma contraposição aos “privilégios” daqueles que estão empregados. O desemprego serve para pressionar os trabalhadores a não arriscarem seus empregos, pois podem ser substituídos.

As condições negativas de “casualidade, informalidade, agências de emprego, regime de tempo parcial, falso autoemprego e o novo fenômenos de massas conhecido como crowd-labour [contratação de serviço através de aplicativo]” são reais para muitos trabalhadores, especialmente para a juventude e imigrantes. A crescente precarização enfrentada por trabalhadores hoje é resultado direto de políticas neoliberais aplicadas por governos de direita em todo o mundo, assim como da evidente deficiência das organizações sindicais.

Destacar esses problemas e focar nas particularidades do “precariado” não é, por si só, um problema. É necessário fazer isso para se enfrentar a tarefa de organização desses trabalhadores. Porém, o que é um problema é a criação de uma falsa divisão entre diferentes setores da classe trabalhadora, que apesar de diferenças, compartilham interesses que podem ser sintetizados na velha bandeira do movimento dos trabalhadores: “mexeu com um, mexeu com todos”. A tese de Standing de que o “velho proletariado” não é mais capaz de ser revolucionário porque foi comprado por “aposentadorias” e “direitos trabalhistas” – os quais estão sob ataques por forças neoliberais – é completamente falsa.

Trabalhadores no mundo de hoje

A verdade é que a definição marxista de classe trabalhadora, tal como foi apresentada anteriormente, é aquela inclui todos aqueles que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver e que produzem mais-valia. Ela abarca a maior parte da força de trabalho ativa no planeta que, segundo a Organização Internacional do Trabalho, é composta por mais de 3,4 bilhões de pessoas. No interior dos três principais setores da economia (serviços, indústria e agricultura), tal força de trabalho é composta da seguinte maneira:

  • 75 milhões são empregadores. Grandes e, em sua maioria, pequenos capitalistas que compõem aproximadamente 1% da população mundial, ainda que somente uma pequena fração deles possua riqueza e poder real.
  • 1,5 bilhão de pessoas classificadas como empregados vulneráveis, isto é, “trabalhadores por conta” ou “autônomos” que não empregam outras pessoas. Também estão incluídos 400 milhões de trabalhadores não-pagos parentes desses trabalhadores independentes. Este grande grupo compõe a maioria dos pobres no mundo.
  • 1,8 bilhão de pessoas que ganham um salário. 200 milhões destes estão desempregados atualmente e uma parcela ainda maior está subempregada ou com trabalhos temporários. Alguns recebem salários exorbitantes e não se associam com os outros, mas esta imensa massa pode ser considerada o núcleo da classe trabalhadora no mundo[15].

No entanto, a classe trabalhadora em sua totalidade é mais do que isso, pois inclui trabalhadores desempregados, incapacitados, informais (e outras formas de “trabalho autônomo”, assim como aqueles dependentes dos assalariados – pais que ficam em casa, cuidadores, jovens, etc. Como uma classe que existe, como material bruto para exploração (e que ainda não possui consciência de seu lugar no sistema ou de seu poder potencial se organizada), a classe trabalhadora em-si é maior do que qualquer período anterior e continua a crescer. A industrialização e a urbanização, especialmente nos países em desenvolvimento nos últimos 30 anos, fez o tamanho da classe trabalhadora crescer em mais de um terço.

Isto é evidenciado pelo acelerado crescimento da população urbana no mundo. A população urbana passou de 746 milhões em 1950 para 3,9 bilhões na atualidade, sendo mais de 53% da população mundial[16].

O caráter revolucionário da classe trabalhadora

O tamanho absoluto ou relativo da classe trabalhadora é um elemento importante para a análise dos socialistas. Porém, o caráter revolucionário da classe trabalhadora não existe porque esta é a maioria ou apenas muito grande – mais uma vez, esta foi uma descoberta de Marx e Engels quando a classe trabalhadora era muito menor do que a população camponesa. Mas o que o tamanho e o crescimento da classe trabalhadora hoje revelam é a posição cada vez mais importante da classe trabalhadora na dinâmica do desenvolvimento capitalista; trata-se de algo que nenhuma outra força social possui e que é central para quebrar o sistema e construir um novo.

Marx explicou que o capitalismo, por sua própria natureza, cria a classe trabalhadora e, em seguida, constitui a classe trabalhadora como revolucionária. Quais são as características especiais que asseguram o potencial revolucionário da classe trabalhadora? Em nenhuma ordem particular, são elas: 

(1) O capitalismo concentra os trabalhadores em cidades grandes e em locais de trabalho em que a exploração de mais-valia ocorre. A luta coletiva e organizada contra essa exploração passa a ser concentrada de formas que não existiam para camponeses que estão presos em lotes de terra espalhados pelo campo. Mais amplamente, comunidades da classe trabalhadora compreendem que elas podem resistir somente pela cooperação com os seus vizinhos que compartilham a mesma situação. Esses processos produzem uma consciência de classe coletiva, que vai muito além da consciência fragmentada de servos ou escravos. 

(2) O modelo econômico capitalista cria, entre trabalhadores, um sentido de disciplina, cooperação e organização de duas formas. Primeiro, um certo grau de organização e trabalho em equipe é demandado dos trabalhadores pela administração, de forma que a exploração de trabalho se efetive integralmente no interior da jornada de trabalho. Segundo, com a finalidade de mitigar os piores excessos dessa mesma arregimentação e os impactos adversos de crises econômicas recorrentes, os trabalhadores sempre buscaram, instintivamente, formar suas próprias organizações – sindicatos e partidos políticos independentes – para resguardar e lutar por seus direitos políticos e econômicos. 

(3) Os avanços realizados pelo capitalismo na ciência e tecnologia complexificaram a produção e a troca, exigindo da massa de produtores diretos e distribuidores um conjunto de habilidades (como a alfabetização e a matemática) e conhecimentos necessários para a sociedade funcionar. Além disso, os trabalhadores lutaram pelo direito à educação para eles e suas famílias.

(4) O mercado mundial é fundamentado em uma divisão global do trabalho que conecta todos os trabalhadores. A maior parte das mercadorias que usamos em nossas vidas cotidianas são produtos do trabalho não de um, mas de diversos trabalhadores, utilizando habilidades diversas e de partes completamente diferentes do mundo. A luta da classe trabalhadora é uma luta global. 

(5) A libertação da classe trabalhadora – que é o resultado bem-sucedido da luta política e econômica – só pode ocorrer com o fim da exploração do trabalho no capitalismo. Tal como Engels afirmou: “O escravo liberta-se ao abolir, de entre todas as relações de propriedade privada, apenas a relação de escravatura e ao tornar-se, assim, ele próprio proletário; o proletário só pode libertar-se ao abolir a propriedade privada em geral”[17].

(6) A classe trabalhadora é a única força social com a capacidade de desafiar a dominação da classe capitalista. Nenhum outro grupo, classe ou categoria demográfica possui o peso, a coesão ou a organização necessários para enfrentar o poder dos capitalistas e de seus aparatos físicos e ideológicos (o que inclui a vigilância estatal como agências de inteligência, polícias e exércitos).

É importante sublinhar que os pontos anteriores conferem à classe trabalhadora apenas um potencial revolucionário, evidentemente a classe trabalhadora está longe de ser revolucionária o tempo inteiro. O capitalismo construiu defesas para impedir toda e qualquer ameaça à sua dominação. Basicamente existe um aparato estatal (os corpos armados citados anteriormente), mas sua defesa mais sofisticada é o domínio ideológico que mantém por meio dos costumes, moralidade e cultura dominantes a legitimidade do domínio burguês (para não mencionarmos o controle por meio da mídia ou da educação). Tal como Leon Trotsky afirmou: “Quem possui a mais-valia é o dono da situação, possui a riqueza, possui o poder do Estado, tem a chave da igreja, dos tribunais, das ciências e das artes”[18]. A classe dominante é quem conscientemente alimenta e explora as divisões entre a classe trabalhadora e os grupos oprimidos, fragilizando, assim, seus oponentes. 

Tudo isso produz uma desigualdade na consciência (seus comportamentos, pensamentos e atitudes) da classe trabalhadora, prejudicando sua unidade, confiança e capacidade revolucionária.

É claro que a classe trabalhadora não é uma massa homogênea. Desde o seu surgimento, existiram diferentes camadas da classe trabalhadora, especialmente entre a força de trabalho qualificada e não-qualificada. Isso ocorreu, por um lado, pela absorção de setores da classe média de um lado e, por outro, de setores pobres urbanos e rurais. O caráter de massas da classe trabalhadora significa que ela é constituída por pessoas de múltiplos gêneros, nacionalidades, religiões, etnias e orientações sexuais. Tudo isso, naturalmente, resulta em uma diversidade de opiniões políticas, identidades, etc. Mas esta classe trabalhadora diversa, viva e colorida está organicamente unificada pela exploração comum por um inimigo comum que só pode ser desafiado por meio da unidade e da solidariedade em uma luta comum.

Se a classe trabalhadora é capaz de alcançar isso em certas condições e com a organização e direção necessárias, então ela pode realizar uma revolução – a experiência fundamental para a transformação socialista da sociedade. Segundo Marx e Engels:

“Tanto para a produção massiva desta consciência comunista como para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade”[19].

A luta adiante

Na realidade, a validade da teoria de Marx sobre a luta de classes foi confirmada pela própria história do movimento da classe trabalhadora. No capitalismo a luta de classes se intensificou. O século XX viu mais movimentos revolucionários do que qualquer outro, incluindo a vitoriosa revolução socialista na Rússia em 1917 (uma revolução que, posteriormente, foi traída, mas que, de qualquer forma, existiu). O século XXI já está passando por uma profunda crise do sistema capitalista e já viu mobilizações massivas significativas de trabalhadores, pobres e jovens em todo o mundo. Esses movimentos lembram, de alguma maneira, os movimentos do passado, mas, de várias outras maneiras, são completamente novos e trazem novos desafios para os marxistas.

Hoje nós estamos vendo greves militantes significativas entre professores nos EUA e docentes no Reino Unido, refletindo um processo geral de “proletarização” pelo qual está passando um conjunto de profissões que antes eram consideradas privilegiadas, mas que foram precarizadas pelos ataques neoliberais forçando, assim, a organização de trabalhadores. Greves por professores e docentes não eram conhecidas na época de Marx. Também não a “greve feminista”, como a de cinco milhões de trabalhadoras na Espanha durante o Dia Internacional das Mulheres em 2018, seguindo o exemplo das mulheres polonesas que defenderam o direito ao aborto em 2016. Estes e diversos outros exemplos que aparecem em todo o mundo, mostram que os métodos e as tradições de organização e luta da classe trabalhadora podem surgir em novas formas e em um patamar superior, na medida em que a classe trabalhadora enfrenta o mesma sistema de desigualdade, violência e opressão que os conduziu à luta.

Nada é mais certo do que o fato de que os grandes eventos da história da luta de classes estão no futuro e não no passado. Mas é importante lembrar que o objetivo do movimento socialista proposto por Marx e Engels era engajar-se na luta de classes ao lado e como parte do proletariado, para torna-la “consciente das condições da sua emancipação” e, finalmente, acabar com a luta de classes pela extinção das “condições de existência dos antagonismos entre as classes”. “Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

Este é o mundo socialista que trabalhadoras e trabalhadores têm a ganhar.

O texto foi publicado originalmente na revista do Partido Socialista (seção da Alternativa Socialista Internacional na Irlanda) em 2018


[1]Uma exposição didática desta teoria está no livro “Salário, preço e lucro” de Karl Marx. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1865/salario/index.htm

[2]Ver o livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” de Engels. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1884/origem/index.htm

[3]Ver o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.htm

[4]Carta de Marx a J. Weydemeyer em 1852. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/03/05.htm

[5]Ver o prefácio de Marx à “Contribuição à crítica da economia política”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm

[6]Eric Holt Gimenez, artigo de 18 de dezembro de 2014: “Nós já crescemos o suficiente para alimentar 10 bilhões de pessoas”. Huffpost. Disponível em: https://www.huffpost.com/entry/world-hunger_b_1463429

[7]Relatório da ONU de 2017, “O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo”. Disponível em: https://www.wfp.org/publications/2017-state-food-security-and-nutrition-world-sofi-report

[8]Marx e Engels em “Manifesto Comunista”.

[9]Marx e Engels em “Manifesto Comunista”.

[10]Marx e Engels em “Manifesto Comunista”.

[11]Marx e Engels em “Manifesto Comunista”. 

[12]Ashley Tseng, 26 de junho de 2014, “Child Labour: A Global Scourge”. Disponível em: www.wsws.org

[13]Monika Janas, Janeiro de 2018, “Understanding Wealth Inequality”, The Socialist, nº. 113.

[14]Guy Standing, 2011, The Precariat: The New Dangerous Class, Bloomsbury Academic, p. 6

[15]Organização Internacional do Trabalho, “Tendências do Emprego Global – 2014”. Disponível em: www.ilo.org

[16]Organização das Nações Unidas, United Nations, World Urbanization Prospects: The 2014 Revision”.

[17]Engels, “Princípios básicos do comunismo”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm

[18]Trotsky, “Marxismo em nosso tempo”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/marxismo/index.htm

[19]Marx e Engels. A ideologia alemã. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/

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