Coronavírus e a crise social, econômica e política no Brasil
Reproduzimos aqui entrevista concedida por André Ferrari da LSR para a página na internet da Organização Socialista Internacionalista Xekinima, seção grega da Alternativa Socialista Internacional, e a página da ASI. Vídeo com a entrevista em espanhol pode ser visto aqui.
A pandemia do Covid-19 se estende por todo o mundo e as consequências sanitárias e socioeconômicas são muito preocupantes. A América Latina também se encontra no meio dessa crise, os casos aumentam e existe o temor de que os sistemas de saúde não possam fazer frente a essa situação. No Brasil os números oficiais são de mais de 12 mil casos e 550 mortos até hoje (07/04) e há os primeiros casos também nas favelas no Rio de Janeiro, com muita concentração populacional e escassez de serviços essenciais como água. Como está a situação atualmente?
De fato, a pandemia entrou em uma escala qualitativamente superior na América Latina e isso, junto com as terríveis condições sociais e as políticas neoliberais de cortes e ataques a direitos sociais, provoca uma situação catastrófica.
Todos devem ter visto a situação particularmente dramática no Equador, onde a cidade de Guayaquil não tem como dar conta dos corpos deixados nas ruas. Valas coletivas estão sendo preparadas e caixões de papelão estão sendo usados.
Os números de casos e mortos divulgados estão muito abaixo do real porque não se fazem testes massivamente. Em São Paulo, até semana passada todos os dias cerca de 40 corpos eram enterrados com todas as características de Covid-19, mas não entravam nas estatísticas. Hoje esse número é muito maior.
No Brasil, quatro estados da federação já estão entrando na fase de “aceleração descontrolada”, incluindo São Paulo e Rio. Essa é a fase mais dura da doença incluindo sobrecarga do sistema de saúde que já começa a se manifestar.
A disseminação do vírus nas regiões mais pobres e especialmente nas favelas já está acontecendo. Nessas regiões é muito difícil a prevenção e mesmo as medidas de distanciamento social e quarentena são inviáveis. As casas são pequenas, insalubres, sem ventilação, a densidade populacional é enorme e nem acesso à água se tem propriamente.
Junto com isso está a situação econômica e social, porque as pessoas já estão passando fome. 72% dos moradores de favelas não tem poupança ou reservas para sustentar-se por mais de uma semana. 46% da força de trabalho no Brasil é formada por trabalhadores informais – mais de 40 milhões de trabalhadores – que não tem nenhuma garantia de sobrevivência com a paralisação das atividades econômicas. Nesse aspecto, o Brasil está junto com a Índia e Nigéria entre os países mais afetados segundo a OIT.
Não nos esqueçamos também que a maioria do povo nessas condições de pobreza são negros e negras e isso reflete a estrutura social racista do capitalismo brasileiro.
As perspectivas de tragédia sanitária e caos sociais são bastante concretas no Brasil e em vários países da América Latina.
Que medidas foram tomadas até agora? Como vê a situação nos próximos meses?
Bom, diante da pandemia, o Brasil vive um conflito aberto entre a posição criminosa e genocida do presidente da república, Bolsonaro, que segue negando a gravidade do problema e rejeitando medidas de distanciamento social – e a posição dos governadores dos estados que foram levados a tomar medidas mais firmes de prevenção, ainda que com muitos limites e problemas.
A quarentena decretada deve seguir pelo menos até o final do mês contra a vontade de Bolsonaro. Ele tentou baixar um decreto impedindo a quarentena e tentou derrubar seu próprio ministro da saúde, mas está isolado e perdeu muita força no último período e não conseguiu.
Os governadores dos estados estão correndo contra o relógio tentando abrir novos leitos hospitalares e importar equipamentos médicos. Estão tendo que correr porque nos últimos anos destruíram o sistema público de saúde com suas políticas neoliberais. No Brasil aprovou-se uma emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos. Uma medida que já seria criminosa em uma situação “normal” e que se torna genocida em meio a uma crise sanitária como essa.
Medidas de compensação social foram aprovadas pelo Congresso. 600 reais serão distribuídos a cerca de 30 milhões de pessoas. Não deixa de ser uma conquista diante da política ultra-neoliberal de Bolsonaro e seu ministro da economia, o fanático Chicago boy Paulo Guedes. Ainda assim é pouco e é tarde.
O governo tentou garantir aos empresários o direito de não pagar salários a seus trabalhadores durante esse período, mas teve que recuar diante da enorme insatisfação popular. Ainda assim, querem impor medidas de redução de salários junto com a redução da jornada de trabalho.
As perspectivas são de agravamento da situação sanitária, o número de mortos vai crescer muito nos próximos dias. Também começaremos a ter mais turbulência social com a insuficiência das medidas tomadas.
Essa situação dramática afetará a consciência de milhões e também vai gerar grandes saltos e mudanças na visão de mundo de muita gente e isso trará consequências políticas.
O presidente do Brasil, o ultradireitista Jair Bolsonaro, insiste que o país “não pode parar” e exigiu que as medidas de confinamento social se restrinjam aos idosos e enfermos. Também chamou a pandemia de uma “gripezinha” e propõe orações e jejuns para se combater o vírus. Como as pessoas reagem diante dessa irresponsabilidade política?
Bolsonaro perdeu apoio popular desde o início da crise. 76% apoiam as medidas de distanciamento social em franca oposição a posição de Bolsonaro. A grande maioria reprova a postura do presidente.
Bolsonaro vive uma profunda crise política. Ele perde apoio mesmo dentro de seu próprio governo. O conflito com o ministro da saúde deixou isso evidente. Ele pediu a renúncia do ministro que respondeu que não deserdará no meio da guerra, mas Bolsonaro não teve força para demiti-lo.
Um amplo setor da classe dominante e do sistema político adotou uma política de tentar isolar e conter Bolsonaro. Os governadores se reúnem e agem sem o governo federal, o Congresso tem agenda própria independente e muitas vezes contrária à de Bolsonaro. O Supremo Tribuna Federal também tende a rejeitar posturas do governo e anunciou que não aceitará medidas que contrariem as orientações da OMS.
Nesse processo um setor da cúpula das Forças Armadas tem ganhado peso dentro do governo e tenta fazer a mediação entre Bolsonaro e o sistema político. Esse é o papel do atual ministro chefe da Casa Civil – General Braga Netto, por exemplo. Ele foi central em impedir a demissão do ministro da saúde.
Antes da crise econômica e sanitária de hoje, a convivência com Bolsonaro era mais estável uma vez que havia uma grande unidade na burguesia em torno das contrarreformas neoliberais, como a reforma trabalhista e da previdência (que, por sinal, agravam a situação social em meio à pandemia).
Agora o cenário mudou, as divisões interburguesas são muito maiores e a própria queda de Bolsonaro não pode ser descartada. Lembremos que o vice de Bolsonaro é um general do exército, Hamilton Mourão, que tenta parecer alguém muito mais razoável que o presidente e mais confiável à burguesia. Mas nesse momento a política da burguesia em geral é transformar Bolsonaro em uma ‘rainha da Inglaterra’ e preparar terreno para as eleições de 2022. Mas, nada pode ser descartado.
Obviamente, Bolsonaro não aceitará essa situação e vai tentar uma contraofensiva, especialmente quando o caos social aumentar. Ele pode tentar avançar em medidas de tipo bonapartista, autoritária, porque ainda tem uma base social entre setores importantes da pequena burguesia e até setores populares e na base das corporações policiais, muitas vezes vinculadas às milícias paramilitares, e na base do próprio exército.
Nossa posição é que derrubar Bolsonaro é parte das medias emergenciais contra a pandemia. Bolsonaro é um aliado do coronavírus contra o povo e precisa cair já. Mas junto com ele deve cair o vice general e o conjunto das as políticas neoliberais. A esquerda socialista e o movimento dos trabalhadores devem assumir o protagonismo na luta contra Bolsonaro e não fomentar ilusões na ala burguesa que hoje critica o governo.
Como se pode organizar a resistência dos trabalhadores, dos que ficam sem trabalho, os jovens, as mulheres etc. nessa fase? Que mobilizações estão sendo organizadas?
É muito difícil organizar a luta em meio à quarentena. Ao mesmo tempo há uma politização muito grande na sociedade e muitos estão tirando conclusões políticas sobre o papel dos governos, das políticas neoliberais, do sistema econômico injusto etc. Há um trabalho intenso das organizações gerais dos trabalhadores e nossa também nas redes sociais e internet. Desenvolver análises, debates, construir um programa e políticas é importante também.
Várias categorias de trabalhadores têm se mobilizado pelo direito de ficar em casa com salários garantidos. Os metalúrgicos do ABC ameaçaram com greves se as empresas não parassem até semana passada. A grande maioria parou. O mesmo aconteceu em call centers, mas nesses foi muito mais difícil.
Luta-se por condições minimamente seguras de trabalho para os trabalhadores dos setores essenciais, saúde, transporte etc. Há falta de equipamentos de proteção e não há uma participação efetiva dos trabalhadores na gestão desses serviços essenciais. Essas são reivindicações importantes.
Temos camaradas trabalhadores metroviários que são parte de uma pressão sobre a empresa e o governo para garantir equipamentos de proteção e condições de trabalho minimamente seguras. Camaradas nossos, sindicalistas da empresa de saneamento, esgotos e abastecimento de água também são parte da luta tanto pelos trabalhadores do setor como pelo direito à água nas comunidades mais pobres.
Nessas comunidades, vários movimentos têm atuado no sentido de garantir abastecimento de alimentos e medidas de prevenção. É o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e outros movimentos. Nas favelas também tem surgido processos de auto-organização autônoma, comitês populares contra o Coronavírus, para garantir a solidariedade entre os moradores e lutar por direitos.
O tema da violência doméstica contra as mulheres já era central no Brasil, mas ficou ainda mais importante e tem havido denúncias e protestos sobre isso.
Quase todas as noites temos “cacerolazos”, panelaços, contra Bolsonaro nas janelas e varandas e essa é uma energia de combatividade que deverá expressar-se de forma mais aberta quando os limites à ação direta nas ruas diminuir. Vários países latino-americanos já demostraram a força popular e dos trabalhadores, como no caso do Chile, Equador, Colômbia etc. e isso vai voltar no futuro.
Para a esquerda socialista e o movimento dos trabalhadores e fundamental organizar lutas imediatas e acumular forças para intervir em uma situação que será incrivelmente polarizada no próximo período. Dessa forma poderemos apontar uma saída anticapitalista e socialista para essa crise profunda e terrível, no Brasil, na América Latina e no resto do mundo.