Tudo que é sólido desmancha no ar – revolução e contrarrevolução na América Latina

Três décadas depois do cínico anúncio do “fim da história”, por parte de ideólogos do grande capital embriagados com a queda do muro de Berlim, vivemos um período de dramática aceleração do tempo histórico. 

Do Sudão e Argélia até Hong Kong; do Chile, Equador e Haiti até a Catalunha; do Líbano, Irã e Iraque até a França, o que vemos são rebeliões populares, lutas de massas e uma resistência heroica contra os governos de plantão, suas políticas de ajuste neoliberal e seu autoritarismo crescente. Em vários países, elementos de revolução e contrarrevolução marcam esses processos. 

Esse é o caso na América Latina, que volta a estar no epicentro das turbulências e lutas globais. A marca do processo latino-americano é o repúdio às políticas neoliberais adotadas por governos de direita a serviço dos bancos, grandes empresas e do imperialismo. Mas, essa situação também coloca em duro teste histórico os setores considerados “progressistas” que ocuparam governos no último período.

O repúdio ao neoliberalismo se expressa nas ruas, nas greves, na mobilização de trabalhadores, da juventude, do movimento de mulheres e do movimento indígena e camponês. Em alguns países, a insatisfação se transformou em explosões sociais de massas colocando os governos contra a parede e abrindo situações revolucionárias. Esse é o caso do Equador durante o mês de outubro e do Chile num processo que continua aberto.

Lutas e eleições – Argentina e Colômbia

Em outros países, como Argentina e Colômbia, a revolta de massas também se expressou na luta direta, como no caso das cinco greves gerais contra Macri na Argentina a recente greve geral em novembro na Colômbia de Iván Duque. Mas o potencial explosivo dessas lutas foi contido temporariamente pelas expectativas de derrotar essa direita nas urnas. 

O atual presidente ultradireitista Iván Duque e seu mentor o ex-presidente Álvaro Uribe sofreram uma fragorosa derrota nas eleições regionais de 27 de outubro. Em Bogotá, seu partido ficou em último lugar e em Medellín, onde eram favoritos, acabaram derrotados.

Na Argentina, a derrota de Macri já no primeiro turno das eleições no mesmo dia 27 de outubro é resultado do repúdio de amplos setores diante de um governo que conduziu o país a uma situação de colapso econômico e social. A fome, o desemprego, o colapso dos serviços públicos se dão em um país atolado na recessão e à beira de um default de sua dívida.

O menino-prodígio do neoliberalismo e de Trump, que deveria servir de exemplo para o resto da América Latina sobre como uma nova direita neoliberal “moderna” poderia se consolidar no lugar dos governos de centro-esquerda ditos “populistas”, acabou fazendo exatamente o contrário. Macri é a prova viva do fracasso do neoliberalismo como alternativa para a América Latina.

As condições sociais para uma explosão do tipo daquela que marcou o “Argentinazo” de dezembro de 2001 que estão sendo observadas em países como o Chile e o Equador hoje estão presentes na Argentina. O novo governo de Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner apostará suas fichas em um novo pacto social para tentar impedir esse desfecho ao mesmo tempo em que mantém o acordo com o FMI e o essencial das políticas de ajuste antipopulares.

Até quando conseguirão deter o furacão popular é uma questão em aberto. Mas, uma coisa é certa, não há como melhorar a vida do povo mantendo o acordo com o FMI e continuando a pagar a dívida aos banqueiros e especuladores. 

A nova experiência do povo argentino com o peronismo e com o kirchnerismo em particular não parte do zero e poderá ser feita de forma muito mais rápida e dinâmica do que no passado. Uma alternativa de esquerda socialista enraizada nas lutas dos trabalhadores precisa ser construída a partir dessa experiência.

Ventos revolucionários vindos do Equador

O furacão popular revolucionário que o pacto social do novo governo Fernández-Fernández tenta evitar na Argentina, já varreu o Equador e o Chile e leva pânico às classes dominantes latino-americanas e ao imperialismo. 

No Equador, ele foi uma resposta contundente a um governo que foi eleito com uma retórica “progressista”, baseada na continuidade da chamada “revolução cidadã” do ex-presidente Rafael Correa, mas que no poder aplicou à fundo as políticas do FMI e do imperialismo.

O presidente Lenín Moreno se viu diante da fúria popular detonada por seu pacote de medidas neoliberais em particular o corte aos subsídios aos transportes e aumento dos preços dos combustíveis. O movimento rapidamente se transformou em uma rebelião popular, com forte participação dos trabalhadores, da juventude, mulheres e um papel protagonista dos povos indígenas equatorianos organizados na CONAIE. 

A brutal e covarde repressão não conseguiu impedir a tomada de Quito pelas comunidades indígenas, os trabalhadores e o povo nas ruas. Lenín Moreno foi obrigado a fugir para Guayaquil e retirar seu pacote antipopular, o que representou uma vitória importante para o movimento. 

Ao mesmo tempo, o governo abriu negociações, mediadas pela ONU e Igreja católica, com entidades do movimento indígena e popular. O objetivo fundamental era tirar o povo das ruas e evitar que a rebelião popular se transforma-se em uma revolução que colocasse em questão o poder político. 

A estratégia do governo acabou surtindo algum efeito, pelo menos por enquanto. Mas, o governo continua profundamente desprestigiado enquanto o movimento de massas sentiu a força que tem e não aceitará novos ataques. 

Novas batalhas virão no Equador, mas é preciso que se tire as lições dessa experiência, em particular sobre a necessidade de uma estratégia revolucionária consequente e um programa anticapitalista e socialista como única alternativa possível à crise equatoriana e latino-americana. Uma força política que defenda esse programa e estratégia precisa ser construída.

Chile – terremoto social no “oásis” neoliberal

Poucos dias depois do levante equatoriano, o povo chileno deu uma poderosa demonstração da volatilidade política existente na América Latina e em muitas outras partes do mundo nos dias de hoje. 

O presidente direitista Sebastian Piñera havia declarado que o Chile era um oásis de estabilidade em uma América Latina conturbada. Poucos dias depois anunciou que o Chile estava em “guerra contra um inimigo poderoso e implacável”.

O fato é que a resposta da juventude à política de aumento nas tarifas do metrô em Santiago foi o estopim para uma explosão social de fato “poderosa e implacável”. Mas, como repetiram os manifestantes nas ruas, “Não são 30 pesos, são 30 anos”! São 30 anos de uma transição à democracia que manteve a essência do sistema econômico e político da ditadura de Pinochet: neoliberalismo radical, desigualdade social extrema e autoritarismo. Mesmo com emendas adotadas ao longo dos anos, até a Constituição do país é a mesma da ditadura.

Piñera respondeu à rebelião popular com métodos de guerra, dignos de Pinochet: utilização do exército e dos carabineiros em uma brutal repressão nas ruas, prisões arbitrárias, tortura como método. O número de mortos reconhecidos pelo governo chegou a 23. O número de manifestantes que perderam a visão de pelo menos um olho chega a mais de 220, o que significa que houve uma orientação deliberada para que se disparasse no rosto.

A repressão serviu apenas para radicalizar o movimento de massas. Além das manifestações envolvendo mais de um milhão nas ruas, o movimento contou com um papel decisivo da classe trabalhadora atuando como classe em greves gerais efetivas. A participação da juventude, das mulheres e do combativo movimento indígena Mapuche, entre outros, também foi decisiva.

Piñera então decidiu recuar, pediu perdão publicamente, trocou vários ministros e pediu diálogo e a formação de um governo de unidade nacional. Ao mesmo tempo anunciou um pacote com concessões, além da revogação do aumento de tarifas de transporte, que jamais faria sem que fosse colocado contra a parede pela força do movimento de massas. 

Entre elas está prevista a redução das tarifas de energia, aumento de aposentadorias, estabelecimento de um teto para os gastos com medicamentos e o aumento de impostos sobre os mais ricos. Além disso, anunciou a redução do salário de parlamentares e altos funcionários, além de limitar o número de reeleições etc.

Ao invés de conter o movimento de massas, essas concessões apenas comprovaram a força da luta direta nas ruas e o movimento seguiu crescendo. Piñera então, com a colaboração dos partidos da ordem, promoveu um acordo em torno da proposta de um processo constituinte que começaria com um plebiscito em abril de 2020 em torno de como se daria o processo, por uma Assembleia Constituinte exclusiva ou um Congresso Constituinte.

Mas, trata-se de uma manobra uma vez que mesmo no caso de uma Assembleia Constituinte exclusiva ela coexistiria com o atual Congresso e com o próprio Piñera na presidência, ambos repudiados, além de impor aprovação de 2/3 para as propostas o que daria poder de veto à direita.

Não pode haver saída para a crise chilena do ponto de vista dos trabalhadores enquanto Piñera se mantiver na presidência. Além disso, uma Assembleia Constituinte legítima precisa partir da mobilização e organização de base e ser eleita de forma livre e soberana para assumir plenos poderes no país refletindo a força e a vontade dos trabalhadores e do povo.

Uma Assembleia Constituinte desse caráter pode representar um passo na direção de um governo dos trabalhadores e de todos os setores explorados e oprimidos. A força demonstrada pelo movimento de massas é capaz de arrancar essa conquista histórica. Mas, para isso, não poderá aceitar que os partidos da ordem mantenham Piñera no poder e promovam uma mudança constitucional de cima para baixo e controlada por eles.

Bolívia – o chicote da contrarrevolução

O outro lado da explosiva e polarizada situação latino-americana é o golpe de Estado reacionário e pró-imperialista promovido na Bolívia no início de novembro. Esse golpe, nesse momento, não deixa de ser uma resposta aos processos de avanço da luta de massas em outros países. Funciona também na linha de uma “contrarrevolução preventiva” diante do potencial de revolta existente em vários países.

Depois de Honduras, Paraguai, Brasil e agora Bolívia, cada um a seu modo muito específico, a alternativa golpista passa a ser considerada de forma cada vez mais explícita em muitos países e não há dúvida de que abre uma nova situação de risco para a Venezuela. O papel de Trump e a vocação autoritária de Bolsonaro são fatores agravantes nessa situação. No caso de Bolsonaro isso vale tanto para fora do Brasil como para dentro do país.

O golpe na Bolívia foi construído explorando-se o desgaste de Evo Morales depois de 13 anos no poder em relação a vários setores da população, incluindo parte de sua base social original entre os trabalhadores, camponeses e indígenas que por várias vezes entraram em conflito com o governo de Morales. Um dos marcos desse processo foi a repressão à mobilização indígena contra os planos de construção de uma rodovia no território indígena de TIPINIs em 2011.

As eleições de 20 de outubro foram o estopim do confronto aberto. Evo Morales tentou eleger-se para seu quarto mandato presidencial mesmo tendo perdido o plebiscito que permitiria uma nova reeleição. A diferença pequena de votos que garantiria vitória no primeiro turno, junto com a falta de transparência na apuração, criou uma situação insustentável e permitiu que a direita reacionária cinicamente empunhasse a bandeira democrática iludindo setores da população. O que prevaleceu, no entanto, foi o caráter reacionário, autoritário, racista e pró-imperialista da contestação a Evo Morales.

O fator decisivo no golpe foi a mudança de lado do comando das Forças Armadas. Isso se deu logo após um motim da Polícia Nacional que se iniciou em Cochabamba e se estendeu a todo o país. Sem o exército e sem a polícia, Evo Morales teria que apostar na mobilização popular para se manter. Ele preferiu não fazer isso, temendo a radicalização das massas. Mas, também é questionável que pudesse fazê-lo, em função de seu desgaste. Acabou por renunciar diante da imposição das Forças Armadas.

O fato é que, mesmo depois do exílio de Morales, a resistência ao golpe vem crescendo e é o fator decisivo na conjuntura. O “chicote da contrarrevolução” acabou, mais uma vez, por estimular a “revolução”. A população indígena, camponesa e trabalhadora de El Alto foi a vanguarda do processo de resistência, mas a luta se expandiu na região do Chapare, de onde vem Evo, e entre populações camponesas de várias regiões do país. 

O golpe não se consolidou e a autoproclamada presidente Jeanine Áñez é odiada pelas massas e não tem base social efetiva. Como presidenta interina, ela é apoiada pela direita tradicional encabeçada pelo candidato derrotado Carlos Mesa e a ultradireita emergente em torno da figura de Luis Fernando Camacho do Comitê Cívico de Santa Cruz (oriente boliviano), figura chave no golpe de Estado. Mas, ela só pode basear-se mesmo na força das armas e numa repressão brutal que pode colocar a Bolívia em uma situação de guerra civil.

A realização de novas eleições nesse contexto de golpe, repressão e perseguição às forças de esquerda e populares não teria nada de democrático e não vai estabilizar o país.

Assim como em 2003, na guerra do gás, quando o movimento de massas derrubou Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2005 quando derrubou o próprio Carlos Mesa e em 2008 quando derrotou o golpe promovido pela direita de Santa Cruz e da “media luna” boliviana, o movimento de massas pode derrotar mais esse golpe da direita. 

Para isso, dessa vez, será necessário superar os limites impostos pela direção em torno a Evo Morales que, em todas essas situações, freou o movimento e impediu que fosse até as últimas consequências. Ao mesmo tempo em que toda unidade é necessária para derrotar o golpe, uma nova alternativa de esquerda socialista e revolucionária precisa ser construída a partir da experiência da derrota que o golpe representou e vai ajudar a reverter a situação em favor das massas bolivianas.

Unidade socialista da América Latina

Bolsonaro, junto com toda a direita latino-americana, teme os ventos revolucionários que vem dos países vizinhos. Eles estão preparando-se para situações semelhantes por aqui. É preciso que a esquerda socialista brasileira e o movimento dos trabalhadores também estejam preparados para um novo ciclo de lutas que será decisivo para o futuro dos povos da região.

Os limites do “progressismo” latino-americano, que não rompeu com o capitalismo, abriram espaço para um ressurgimento da direita e até da extrema-direita. A crise dessa direita abre novas possibilidades. Não será a velha centro-esquerda, em um contexto ainda mais complexo, que irá apontar uma saída. A construção de uma alternativa socialista consequente que aponte a ruptura com o imperialismo e o capitalismo e levante a bandeira de uma Federação Socialista dos países latino-americanos é questão de vida ou morte. Não há um minuto a perder.

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