Resenha: Feminismo para os 99%

Feminismo para os 99%: Um Manifesto
Por Cinzia Arruzza, Nancy Fraser, e Tithi Bhattacharya
Boitempo, 2019

Com menos de cem páginas, Feminismo para os 99%: Um manifesto será uma leitura atrativa para essa nova geração politizada por suas experiências de opressões e exploração no capitalismo atual, e de engajamento na luta. O texto ridiculariza o que chamam de “iguais oportunidades de dominação” – feminismo proposto por mulheres no establishment da política e dos negócios que permanece firmemente nos limites do sistema capitalista. O texto também coloca ênfase nas lutas das mulheres que emergem ao redor do mundo, mais especificamente a ideia da “huelga feminista”, ou “greve feminista”, como emergiu de forma inspiradora no Estado Espanhol, Itália, Polônia e na América Latina.

Feminismo para os 99% é um chamado contra feminismo liberal e burguês, o mantra “faça acontecer” (´lean in´) de Sheryl Sandberg, executiva bilionária do Facebook. As autoras dilaceram a falsidade superficial das Políticas Identitárias do establishment: “Dedicado a permitir um punhado de mulheres privilegiadas a escalar a escada corporativa e as fileiras dos militares, é proposta uma visão de igualdade centrada no mercado que se encaixa perfeitamente ao entusiasmo empresarial predominante pela ‘diversidade’… seu real objetivo não está na igualdade, mas na meritocracia”. Elas também defendem uma divisão do movimento feminista pelas fronteiras de classe, a fim de romper com o feminismo pró capitalista que, no limite, significa a perpetuação da opressão e exploração: “…nós visamos separar a massa de mulheres trabalhadoras, imigrantes, não-brancas das feministas ´faça acontecer´”.

Uma tese central das autoras é de que setores de reprodução de uma nova força de trabalho para o capitalismo – casas, escolas, hospitais etc. – onde mulheres tendem a predominar em trabalhos remunerados e não remunerados – serão um setor de luta vital nos próximos anos. É absolutamente verdade que devido a ofensiva neoliberal e de austeridade de décadas do capitalismo, que inclui um completo ataque ao setor público – incluindo a mercantilização voltada ao lucro como aspecto deste último – estamos vendo luta inspiradoras, lideradas por mulheres trabalhadoras em muitos desses setores, desde as greves massivas de professores nos Estados Unidos, às greves de enfermeiras e assistentes de parto na Irlanda.

O foco das autoras na “greve feminista” mencionada acima (que agora inclui uma incrível greve geral forte pelo Estado Espanhol no 8 de março de 2019, com participação estimada de 6 milhões) é completamente justificado. O fato desse fenômeno ter emergido é uma prova de que os setores mais combativos e radicais da onda feminista global emergente – especialmente entre a classe trabalhadora e a juventude – estão instintivamente olhando para os tradicionais métodos de luta da classe trabalhadora, particularmente sua mais potente e poderosa ferramenta: a greve.

As autoras apontam que esse movimento tem “democratizado greves e expandindo seu escopo”, e que “além de focar apenas em salário e horas, elas também estão direcionadas ao enfrentamento à violência sexual e ao assédio, obstáculos a direitos reprodutivos e restrições ao direito de greve”. Quando aparatos sindicais altamente burocratizados têm suprimido os interesses dos trabalhadores, a atuação e as lutas, o surgimento de qualquer desafio é uma necessidade vital para luta da classe trabalhadora. Como exemplo vivo disso, no Estado Espanhol, houve uma grande pressão exercida de baixo no movimento sindical oficial para se juntar às fileiras da greve geral do Dia Internacional das Mulheres, no 8 de março.

Semelhante a isso, o surgimento da greve estudantil transnacional exigindo medidas em relação às mudanças climáticas darão confiança aos trabalhadores para pressionar seus próprios sindicatos a tomarem uma ação efetiva, incluindo greves. É um ponto fraco que as autoras não comentem a necessidade de reconstruir e revitalizar o movimento sindical, ou no fracasso de algumas lideranças sindicais em lutar efetivamente, seja nas questões econômicas ou temas mais amplos de opressão e desigualdade. Mas a referência positiva em usar essa arma do movimento dos trabalhadores, a greve, é um ponto importante, bem como a inspiradora ação de greve com características políticas.

Em um ponto as autoras mencionam brevemente que homens trabalhadores fazem ações de solidariedade como parte disso. É uma pena que isso não tenha sido defendido mais claramente. Na verdade, a ideia de que apenas mulheres deveriam fazer a greve tem sido um tema comum de debate dentro desses movimentos, com muitas feministas liberais querendo apenas uma greve simbólica para ilustrar o papel da mulher na sociedade, em vez de um confronto mais articulado ao establishment político e empresarial. No Estado Espanhol, homens trabalhadores entrando em greve em solidariedade na greve geral do 8 de março atingiu muito mais a economia, aumentando massivamente o impacto do movimento. 

O tema mencionado acima está conectado com outra fraqueza, ou desequilíbrio, no Manifesto. As autoras apontam um importante aspecto, de que o sistema capitalista inerentemente desvaloriza o trabalho que as mulheres desproporcionalmente fazem – particularmente o trabalho de cuidado, tanto pago como não pago. Como forma de enfrentar isso, as autoras enfatizam a ideia de “poder das mulheres: o poder daquelas que remuneradas ou não sustentam o mundo” e a ideia de “revogar trabalho doméstico, sexo e sorrisos”. Enquanto, certamente, mulheres da classe trabalhadora que não estão em trabalhos remunerados devem ir às ruas e se organizarem em suas comunidades – e, na verdade, isso sempre foi uma característica vibrante na luta da classe trabalhadora e na história revolucionária – a ação de greve do trabalho “reprodutivo” não remunerado, não apenas é impossível para maioria das mulheres trabalhadoras (por exemplo, buscar as crianças na escola, alimentar o bebê, ajudar parentes idosos a saírem da cama), mas simplesmente não proporciona algo próximo ao potencial que tem uma greve do trabalho assalariado. 

Esse poder é amplamente derivado do fato que trabalhadores são a chave para os lucros do capitalismo. Além disso, há algo especialmente poderoso e estratégico sobre a solidariedade e organização que podem ser construídas no local de trabalho. O impacto e a ruptura com o sistema de realizar uma greve em solidariedade com colegas de trabalho, incluindo assalariadas do trabalho “reprodutivo” (reproduzindo força de trabalho para o capitalismo) – como a recente greve de enfermeiras e assistentes de parto com 40 mil trabalhadoras em muitos locais de trabalho – é crucial. Em vez de nos dizerem para fazer acontecer (“lean in”), é bem-vinda que essa leitura incisiva nos inspire a nos jogar (“lean out”) na luta e na solidariedade contra o sistema capitalista explorador, opressor e destruidor do meio ambiente. Embora insuficiente em explicitamente agitar e explicar a alternativa socialista como consequência, Feminismo para os 99% inspirará muitas de suas leitoras a explorar o feminismo socialista. 

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