Manoel Martins – Uma história de luta a serviço da recomposição da esquerda hoje

Fizemos a entrevista de Manoel Martins já preparados para ouvir muitas histórias de luta da esquerda brasileira. Aos 84 anos, sua juventude é nítida na sua incansável dedicação ao socialismo. A decoração do seu escritório com fotos de Che Guevara à Jesus Cristo mostra o quanto sua atividade de advogado trabalhista sempre esteve comprometida com o humanismo revolucionário. Fizemos uma breve seleção, pois, afinal, as lutas de Manoel Martins são tantas que dariam até um livro.

SR – Como foi a sua primeira prisão?

Manoel Martins: No início da década de 40 eu entro na faculdade de direito. Fazia uma matéria de direito romano com um companheiro chamado Gerson Butter, um judeu francês que me acompanhava na militância. Ele me convidou para ir numa festa e fui sem saber ao certo do que se tratava. Chegando lá, um cidadão conhecido como Capitão Raul Careca soltou a pérola: “Getúlio é o maior democrata!”. Insultado, retruquei simplesmente com a frase: “Não apoiado”. Rapaz, este breve comentário foi o suficiente para me custar a primeira prisão. Passei a noite na prisão e no dia seguinte fui liberado. Tenho a ocorrência comigo até hoje.

SR – As lutas contra o governo de Getúlio foram muito duras durante o Estado Novo. Como foi a sua atuação neste período de perseguições?

Manoel Martins: Em 1942, participei de um grande comício de oposição à ditadura varguista e comecei a participar ativamente das reuniões e mobilizações da União Fluminense dos Estudantes. Nesse período as lutas se focavam contra o nazi-fascismo.

SR – Seu ingresso no PCB se deu de que forma?

Manoel Martins: Já em 1943, ingresso no PCB, na “fração” universitária, na célula Barreto, em que ainda me mantinha como militante clandestino. Mas vou ser registrado de fato na célula somente a partir de 1945, quando participo da primeira reunião legal, fazendo parte do Comitê Estadual e comitê municipal. Neste momento se inicia uma reestruturação do partido com o retorno às atividades das células, quando já se anunciava o fim do período getulista. Tristemente, Prestes passa a conciliar com as políticas de Getúlio, que embasavam a idéia de “unidade nacional” com a burguesia dita nacional, bem como os stalinistas queriam.

SR – A abertura política após o governo de Getúlio foi uma experiência de grande crescimento para o PCB. Como foi a sua atuação neste processo?

Manoel Martins: A ED (Esquerda Democrática) iniciava seus trabalhos no processo de abertura política, que se dava com o desgaste de Getúlio e o prenúncio de eleições livres. O PCB indicava Ieddo Fiúza, um ilustre desconhecido, o que gerou grande surpresa para nós, pois ninguém conhecia aquela figura, nem no PCB, nem na sociedade como um todo. A campanha para presidente foi às pressas, mas mesmo assim tivemos bons resultados.

 SR – E como foram as eleições?

Lembro-me que um major do PCB, que havia lutado na FEB, saiu candidato a deputado em Niterói, numa decisão autoritária da direção stalinista do PCB. Nós não atendemos a decisão da direção e fizemos a campanha para o companheiro José da Silva Claudino, que acabou sendo o primeiro deputado negro do país. Esta postura de priorizar os candidatos que realmente refletiam as lutas dos trabalhadores se deu em vários locais, assim, boa parte dos candidatos preferenciais do PCB não foram eleitos.

Em resposta a direção do PCB boicotou a candidatura do líder operário de São Gonçalo, Horácio Valadares. Este líder tinha sido um dos responsáveis pela a Intentona Comunista que tinha estabelecido o “soviete” no Rio Grande do Norte. Apesar disso, 6 deputados foram eleitos no Rio de Janeiro.

 SR – E luta pela nacionalização do petróleo?

Manoel Martins: Participei da campanha com meus companheiros, corríamos a cidade espalhando as famosas torres de petróleo pela cidade numa alusão a nacionalização do nosso petróleo. Esta luta só foi finalizada após uma adesão de massas na década de 50.

SR – Como foi voltar à ilegalidade com Dutra?

Manoel Martins: Foi muito difícil para nós. O governo Dutra começou uma ação contra a legalidade do PCB. Eu sempre achei que era uma esperança da direção do partido muito exagerada neste período de legalidade. Depois alimentaram outra esperança burra, que colocava tudo nos meios legais de reverter este ataque. O que fez com que se fizessem poucas lutas de massas na defesa da legalidade do PCB. No entanto, a revelia da direção organizamos um comício na Praça Martins Afonso contra a ação de ilegalidade que era movida contra o nós. Pensando hoje no assunto, vejo o quanto foi interessante para os stalinistas a ilegalidade, pois me pareceu um meio de restabelecer o controle sobre as bases do partido que estavam tocando as lutas à revelia das decisões da direção. Nós perdemos muitos companheiros neste processo, caímos de 200 mil filiados para 20 mil.

SR – Foram muitas prisões a partir daí?

Sem dúvida. Recordo-me que enviaram Lincoln Cordeiro do Comitê Estadual do PCB, em 1948, para organizar uma reunião clandestina para “afinar” a política em Niterói de acordo com os desejos da direção. O local era próximo ao Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói. Ele era o que a gente chamava de “Lampião”, o cara da direção do partido que era responsável por acompanhar as reuniões como representante da direção. Ele havia escolhido muito mal o local. Nos levou para uma casa vazia numa área residencial, o que causou muita suspeita da população local, que acabou nos denunciando não como comunista, mas como vagabundos. Foi um fiasco. Acabamos na prisão do DPPS, onde fui duramente espancado, quando tentei impedir que um companheiro que sofria de tuberculose fosse espancado.

Lá tive contato com as mais variadas pessoas. Um rapaz viciado em entorpecentes avisou ao meu pai, por telefone, que eu estava preso e ele foi lá me soltar.

SR – Como foi a sua participação no movimento estudantil durante a virada do famoso 10º Congresso da UNE?

Manoel Martins: Foi em 1947. Estávamos diante da árdua tarefa de tirar a direção da entidade da UDN. Lembro-me que no período haviam prendido um soviético bêbado aqui no Brasil, e o acusaram de vadiagem. O que serviu de pretexto para o Dutra romper relações com a URSS. A UDN tentou fazer uma manobra para nos desestabilizar no Congresso, tentando aprovar uma moção de apoio à decisão de Dutra. Isto seria uma forma de implodir o Congresso e manterem a UDN na direção da entidade por mais um período.

Lincoln Cordeiro, o “lampião” (agente da direção que dava ordens para a base do partido), deu ordens expressas para nós estudantes atacarmos tal decisão e levarmos às últimas conseqüências, mesmo que levasse ao fim do Congresso. Achamos tal idéia um disparate, pois tínhamos grande numero de delegados e iríamos ganhar. Não acatamos a decisão de Lincoln e elegemos a maior bancada do Congresso, dois terços. Deixamos a moção passar, mas ganhamos o Congresso, o que permitiu que tirássemos a moção da pauta da UNE e aplicássemos uma política de esquerda para a entidade. Sem dúvida foi uma luta contra a direita, mas também contra o autoritarismo stalinista.

SR – Você atuou combativamente na UNE. Como vê a UNE atualmente?

Manoel Martins: A UNE sempre foi autônoma perante os governos, mesmo quando a entidade foi dirigida pela UDN! Hoje a UNE, dirigida pelo PC do B há mais de 16 anos, se alinha ao governo como chapa branca. Lembro que quando participei da UNE, encabeçamos a luta do “Petróleo é Nosso” e fomos duramente perseguidos. Usávamos bolinhas de gude contra os cavalos da polícia e parávamos os bondes com banha de porco nos trilhos. A UNE parece bem longe de qualquer posição mais crítica atualmente.

Lembro-me que em 1979, o Congresso da UNE sofreu um ataque dos militares. Ás pressas, enviei por telex um mandato de segurança para garantir o evento. A UNE de hoje está bem protegida pelo governo e distante das lutas.

SR – Você chegou a ter a oportunidade de ocupar o cargo de vereador em Niterói nos 40, já que era 2º suplente. O que aconteceu para que não tomasse posse?

Manoel Martins: As coisas estavam muito tensas com as perseguições políticas. O companheiro Theodorico Vieira tinha tentado o suicídio por causa da perseguição política. João Monteiro era o 1º suplente, mas estava mal de saúde também. Isso significaria que eu deveria assumir o cargo com apenas 23 anos. Mas de forma inesperada, um membro do PCB um dia me abordou na loja de meu pai, alegando que eu não era “confiável” para o partido. Isso me causou grande ódio do rapaz e avancei sobre ele exigindo respeito, pois eu tinha sido torturado pela polícia, defendendo, justamente, o partido e não seria a direção que diria se eu era confiável ou não. Fiquei muito magoado com isso… Me marcou muito.

SR – Como foi a sua atuação de advogado trabalhista em um período tão conturbado para os trabalhadores?

Manoel Martins: Na década de 50, eu advogava para o sindicato dos trabalhadores de cerâmica em Itaboraí e atuava num leprosário como defensor público no mesmo município. Advoguei para os vidreiros, rodoviários, bancários e metalúrgicos e muitas outras categorias. Aprendi muito neste período.

SR – Como foi a sua trajetória de advogado trabalhista?

Manoel Martins: Minha forma de advogar é um pouco própria, sempre tive o costume de ir às assembléias dos companheiros para apresentar de forma clara as negociações para que não houvesse dúvidas ou manipulações. O fato de advogar para tantos sindicatos acabou me protegendo da perseguição ideológica que os stalinistas faziam, afinal, eu era um dos únicos que poderia livrar os companheiros da cadeia.

Já na década de 70, participei junto a muitos companheiros pela luta do direito de greve, que foi tomando força desde as mobilizações de trabalhadores nos anos de 1979 e 1980.

SR – Como era a sua relação com os stalinistas do PCB?

Manoel Martins: Fui membro do PCB e do PS como parte do diretório municipal e estadual. Muitas vezes éramos acusados de trotskistas, ou pequeno burgueses pela direção do partido, quando não acatávamos as ordens.

SR – Como foi o seu contato com os trotskistas?

Manoel Martins: Tive contato com um grupo de Israel de Trotskistas que lutavam por uma Palestina laica, enquanto víamos a URSS apoiar o sionismo. Nós da “fração” de juventude apoiávamos este grupo e acabamos perseguidos por isto. Cheguei, inclusive, a participar de um Congresso Trotskista (1947), que pelo me lembro tinha a presença de Mario Pedrosa e José de Oiticica, este último um renomado anarquista. Tive a oportunidade de conhecer um argentino trotskista chamado “Estrada” e Rubem Fiúza, que fez um curso de formação política marxista na célula que eu participava.

SR – E o PSOL? Como foi a sua entrada?

Manoel Martins: Em 2007, formalizei a minha entrada no PSOL no período do primeiro Encontro Municipal de Niterói do PSOL. Já com a disposição de ter que reconstruir uma nova referência partidária para os trabalhadores, que apresentasse um programa socialista para a sociedade.

SR – Atualmente há uma disputa de rumos do PSOL. Como vê este processo?

Manoel Martins: Precisamos ter mais fraternidade no partido. Muita discussão para termos uma atuação conjunta que faça jus as nossas tarefas. Em certos momentos a direção majoritária parece querer reviver o stalinismo que tanto combati na minha juventude. Um exemplo desta atitude foi sobre a questão do tempo de TV, em que se definiram os puxadores de campanha apenas pela direção, o que é injusto com os outros candidatos. Além disso, a aliança com partidos burgueses de aluguel em alguns municípios mostra o quanto estão tentando descaracterizar o PSOL. Temos que ser a favor de uma relação mais democrática entre os militantes e um arco de alianças que represente de fato a classe trabalhadora. Não podemos cair num retorno ao PT, em que se prioriza as eleições e não as lutas.

SR – O que você acha da postura da corrente do PSOL, chamada MES (Movimento Esquerda Socialista), ter aceitado 100 mil reais da multinacional Gerdau para fazer a campanha da Luciana Genro no Rio Grande do Sul?

Manoel Martins: Acho que foi um grande equívoco. Isto é uma marca muito perigosa que confunde a nossa identidade para as massas e autonomia de classe. Um partido não pode nascer assim. Não há aquele que possa ser considerado meio honesto. Temos que ser claros. Pode haver erros, mas não podemos deixar que erros desta magnitude maculem nossa independência de classe. Isso são migalhas oferecidas pela burguesia para nos confundir, não podemos aceitar.

SR – Como advogado, como vê os ataques sobre os trabalhadores no neoliberalismo?

Manoel Martins: Com o neoliberalismo está havendo uma flexibilização do fundo de garantia, em que a relação de desemprego seria regulada pelo código civil. Um contrato diferente. O empregado passa a ser pessoa jurídica, sem contracheque, mas sim como mero portador de nota fiscal sem direitos de amparo ao trabalhador. O contrato temporário, o banco de horas, medidas implementadas no governo do Fernando Henrique, que atentam contra a vida do trabalhador. Se pararmos pra pensar, deveríamos instituir horas extras extremamente caras, pois elas além de sacrificarem o trabalhador, inviabilizam possibilidades de emprego.

O artigo 468 é outro elemento de suma importância para entender este desmonte da legislação trabalhista. Esta lei garante que toda a cláusula prejudicial deve ser anulada caso seja comprovada que é prejudicial ao trabalhador, mesmo que tenha sido acordada com o trabalhador via contrato. Anulando este artigo teremos um avanço brutal contra a vida dos trabalhadores, já que os trabalhadores estarão sujeitos a formas de negociação criminosas. Aliás, já estão desmontando o artigo 468 com o Super Simples.

SR – Como é atuar num mundo onde cresce absurdamente o emprego informal?

Manoel Martins: O trabalho informal foi uma invenção para mascarar o desemprego. Ou é emprego, ou é desemprego. Temos que ficar atentos as novas formas de exploração do trabalho. Como por exemplo, a inserção da mulher no trabalhado, pois se paga salários menores para as mulheres. Hoje as máquinas estão a serviço do massacre dos trabalhadores. Querem acabar com as férias e a reposição semanal remunerada, desta forma os trabalhadores são considerados máquinas.

Temos que lutar, pois só assim conquistaremos direitos. A OIT (Organização Internacional do Trabalho), por exemplo, fundada em 1918 foi fundada para fazer frente ao socialismo que já mostrava a sua força após a Revolução de Outubro de 1917. O resultado foi que conquistamos a redução da jornada de trabalho.

SR – Quais são as suas perspectivas para as eleições?

Manoel Martins: Para mim a grande luta do vereador, além de ser legislador, tem que ser transformador para canalizar as lutas do povo. A praça pública deve estar ligada ao mandato, ultrapassando os limites da institucionalidade. Se o cara fica restrito ao gabinete acaba perdendo a ligação com os trabalhadores. Temos que mostrar as contradições, e colocar a legislação do opressor contra o opressor. A nossa luta em Niterói vai ser contra os ataques da burguesia na cidade como a especulação imobiliária e a máfia dos transportes.

SR – Quais são as suas perspectivas para a luta socialista?

Manoel Martins: A minha grande aposta é na juventude. Estamos passando por um período difícil, em que o desânimo está se espalhando por aí, mas eu sei que vamos conseguir romper com a banalização da subserviência. A Internet, por exemplo, é um instrumento que muito me inspira quando vejo como os jovens a utilizam. É um poderosíssimo meio de mobilização que poderia estar aliado às nossas lutas. Sinto que hoje a juventude tem força suficiente para se postar como protagonista das lutas sociais, bem diferente da minha época, quando éramos tratados como meros coadjuvantes.

A juventude deve se estruturar numa perspectiva de transformação da sociedade. Acabar com a exploração do homem sobre o homem, do capital. Sem medo de errar.

Você pode gostar...