Os desafios da esquerda no cenário de crise e instabilidade

Lições da greve dos caminhoneiros para as lutas • Construção de alternativa de esquerda nas eleições • Preparar para novos confrontos pós-eleições

A volatilidade e a polarização social e política continuam sendo marcas fundamentais da situação brasileira. A greve dos caminhoneiros, com toda sua força, ambiguidades e contradições, deixou isso ainda mais evidente.

A crise econômica, social e política não foi superada ainda que tome contornos diferenciados no decorrer do período. A piora dramática das condições de vida é um fato para a imensa maioria do povo.

O cenário eleitoral mantém-se incerto, angustiando as forças populares, mas também preocupando os donos do capital. Os ataques, a repressão, a violência contra os pobres e os que lutam, permanecem em ascensão.

Por outro lado, a resistência existe, indica a força de nossa classe e a tensão social é potencialmente explosiva. Há espaço para uma nova esquerda socialista intervir e fortalecer-se para os grandes embates que virão.

As dificuldades, equívocos e contradições para a construção dessa nova esquerda acabam transformando-se em um fator de estabilização da situação do ponto de vista da classe dominante. As velhas estruturas políticas se mantém e posição de protagonistas, apesar de sua própria crise.

A greve dos caminhoneiros colocou o conjunto da esquerda brasileira diante de mais um teste político. O período histórico que vivemos está marcado pela crise das alternativas políticas tradicionais, incluindo a esquerda tradicional. Isso se dá ao mesmo tempo em que lutas sociais explodem sem grande antecipação, preparação prévia ou controle de quem quer que seja. A referência para a época atual ainda é a explosão de junho de 2013, embora muita coisa – incluindo a correlação geral de forças sociais e políticas – tenha se modificado desde então.

Nessas lutas, a crise ou ausência de uma alternativa de esquerda capaz de oferecer programa, estratégia e organização consequentes para o movimento pode levar a derrotas e até mesmo a canalização dos efeitos do movimento para saídas reacionárias. Nesse contexto, a tendência da esquerda tradicional, totalmente burocratizada, institucionalizada e adaptada à ordem, é assumir uma posição conservadora, desconfiar e temer as lutas.

Foi assim em junho de 2013, no caso do PT. Não foi muito diferente, ainda que em outra escala e outro contexto, no caso da greve dos caminhoneiros. Mesmo tendo sido apeados do governo em 2016, setores importantes do campo lulo-petista variaram de uma posição de denúncia do movimento dos caminhoneiros, como sendo uma articulação golpista, a uma posição de espectadores torcendo para que o movimento acabasse rapidamente. Quando a greve dos caminhoneiros assumiu um papel central na conjuntura e ganhou expressivo apoio popular, uma parcela importante das direções lulistas declarou apoio e tomou algumas iniciativas.

A greve dos petroleiros convocada pela FUP (CUT) e FNP (minoritária e mais à esquerda) foi uma política correta, ainda que tardia. A poderosa intimidação e repressão sobre os petroleiros, no entanto, fez com que o único caminho possível seria um apelo geral aos conjunto dos trabalhadores e ao povo para tomar as ruas; mobilizar-se contra o aumento dos combustíveis e pelo Fora Temer. Desse apelo e mobilização organizada poderiam resultar as condições para a convocação de uma greve geral de 24 horas.

Enfrentar a repressão ampliando as lutas

Nos marcos de um movimento mais amplo, uma greve dos petroleiros encontraria mais força para enfrentar a repressão e intimidação do judiciário e governo.

Mas, esse chamado não veio e a razão fundamental para isso é o receio de que pudesse desestabilizar ainda mais a situação política do país. A linha majoritária no PT e no campo lulista sempre foi a linha de resistir dentro da institucionalidade, apostando no diálogo e nas negociações.

Nesse cenário, um setor organizado da direita ou mesmo extrema-direita simpatizante de Bolsonaro passou a atuar sobre a greve dos caminhoneiros. Eles interviram com um programa e palavras de ordem relativamente consequentes do seu ponto de vista e encontraram certo eco. Em primeiro lugar, assumiram com força o “Fora Temer”, bandeira deixada de lado por boa parte da esquerda tradicional lulo-petista. Mas, além disso, eles também apresentaram uma política transitória para a questão do poder político através da palavra-de-ordem de intervenção militar.

A ideia de intervenção militar para limpar a política e recomeçar do zero encontrou eco entre caminhoneiros, que ganhou mais apoio em outros setores da população. Ela não veio associada à ideia de ditadura, embora essa fosse sua consequência lógica, mas sim a um apelo por mudanças profundas. Mesmo sendo comprovadamente minoritária entre os caminhoneiros e entre a população, a bandeira de intervenção militar ganhou espaço.

Essa política da ultradireita contrasta com o conservadorismo da esquerda tradicional lulo-petista que incorporou até a alma a lógica do mal menor. Além de abandonar ou secundarizar a demanda de “Fora Temer”, a esquerda lulo-petista e parte do campo mais à esquerda acabam limitando-se a defender o status quo, a esperar as eleições de outubro para votar no menos pior (uma vez que a candidatura Lula não deve vingar do ponto de vista institucional).

Bolsonaro se colocou no campo simpático ao movimento, mas apelou aos caminhoneiros que abandonassem a greve. Foi a primeira vez que a extrema-direita ligada a Bolsonaro significativamente apoiou um movimento de luta, de ação direta extra-institucional. Isso é muito perigoso e merece atenção.

Mesmo assim, Bolsonaro sabe o perigo que uma greve como essa representa e mesmo ele recusou-se a apoiar a manutenção da paralisação estimulada por setores de base quando as cúpulas burocráticas, pró-patronais e reacionárias das entidades de caminhoneiros já tinha feito acordo com o governo. Bolsonaro e seus apoiadores têm na contestação do status quo seu maior trunfo, mas ao mesmo tempo precisam credenciar-se como confiáveis para a classe dominante.

Contradições e ambiguidades no movimento

A greve dos caminhoneiros foi marcada pela ambiguidades e contradições típicas desse setor.

O movimento envolveu setores patronais das grandes empresas transportadoras, mas também uma ampla camada de caminhoneiros autônomos e assalariados que vivem com uma renda baixa e péssimas condições de trabalho e de vida.

O setor patronal rapidamente entrou em acordo com o governo e tentou segurar o movimento, não conseguindo em um primeiro momento. Os setores mais precarizados, principalmente os autônomos, tentaram manter a mobilização e até radicaliza-la. Conseguiram parcialmente e, mesmo depois do fim da greve, mantém uma força potencial que pode vir a tona a qualquer momento.

A greve cumpriu de forma geral um papel positivo na conjuntura. Sua demanda principal, a redução do preço dos combustíveis, era legítima, contava com ampla simpatia popular e jogava um papel progressivo ao questionar a política da direção da Petrobras e do governo Temer. A derrubada de Pedro Parente da presidência da Petrobras como consequência direta da greve representou uma grande derrota para o governo e um tropeço sério da ofensiva neoliberal organizada, estimulada e apoiada pela classe dominante.

O caminho para reduzir o preço dos combustíveis baseado na redução de impostos refletiu a visão patronal na tentativa de usar o movimento. Por isso, foi correto que o movimento sindical organizado e os petroleiros em particular levantassem a bandeira de fim da política de preços da Petrobras e fim do processo de privatização da empresa. A política de preços da Petrobras é um pilar das políticas neoliberais privatizantes e atende aos interesses do grande capital nacional e internacional.

Em que pese as ambiguidades de classe do movimento, a ideia que se transmitiu com a greve dos caminhoneiros é a de que os trabalhadores têm o poder de parar o país. Embora essa ideia contenha um elemento corporativo, ela pode perfeitamente ser generalizada no sentido classista: sem os trabalhadores nada funciona e o país para.

A esquerda não pode temer a luta direta. Pelo contrário, deve investir suas principais forças na organização do movimento pela base capaz de enfrentar a classe dominante no campo em que somos mais fortes. Se a disputa institucional tornar-se o único palco, não há como vencer. A disputa eleitoral representa um campo importantíssimo de combate, mas deve ser entendida como instrumento complementar à luta direta.

Avanços e retrocessos

Depois da greve dos caminhoneiros tivemos algumas lutas importantes, incluindo alguns reveses. Ao contrário da vitória expressiva obtida pelos trabalhadores do setor público do município de São Paulo contra o Sampaprev (uma minirreforma da previdência promovida por João Dória) em março, os educadores do Rio de Janeiro sofreram uma derrota em torno do mesmo tema em junho.

Seguindo uma dinâmica de crescimento da mobilização de mulheres que vem desde o início de 2017 pelo menos – quando as mobilizações do 8 de março esquentaram o clima da mobilização que veio a resultar na greve geral de 28 de abril – dessa vez o foco da luta é o direito ao aborto (veja artigo na pág. 4).

Mesmo que o movimento não tenha ainda adquirido a base de massas de outros países, ele tem potencial de crescimento além de estimular um ambiente geral de mobilização como aconteceu antes.

Mesmo que as atenções gerais voltem-se para a disputa eleitoral nos próximos meses, não podemos descartar mobilizações importantes e repentinas diante da grave crise social no país e o ambiente de extrema volatilidade.

O cenário eleitoral

Nossas avaliações apontavam que o Plano A da burguesia nessas eleições seria encontrar um candidato com perfil de “centro-direita”, inquestionavelmente neoliberal, com laços orgânicos com a classe capitalista, confiável e capaz de ganhar as eleições e adquirir alguma legitimidade para continuar aplicando as contrarreformas que Temer já não é mais capaz de aplicar.

Essa política prioritária da burguesia mostrou-se incerta por meses em razão do pífio resultado de Alckmin nas pesquisas e o insucesso de possíveis alternativas (João Doria, Luciano Huck, Joaquim Barbosa, etc). O cenário começa a se tornar mais definido com as coligações eleitorais acertadas depois das convenções partidárias. O PSDB conseguiu atrair para si todo o espectro político da direita tradicional e fisiológica, os partidos do chamado Centrão (a base de Cunha na Câmara).

Com isso, Alckmin poderá garantir tempo de TV, capilaridade para os esquemas clientelistas e uso da máquina pública para tentar reverter seus baixos níveis de intenção de voto. As chances de que consiga crescer são bastante razoáveis.

Os dois principais obstáculos para Alckmin ainda são a vinculação do PSDB com o governo Temer e a perda de parte de sua base social para a candidatura de Bolsonaro. A manutenção de Henrique Meirelles como o candidato de Temer e do MDB pode permitir que Alckmin amenize o estigma de candidato da situação usando o argumento de que Temer já tem seu próprio candidato e não é ele.

Sem coligações, Bolsonaro terá poucos segundos na TV e pouca capilaridade. Isso não é suficiente para eliminar Bolsonaro do páreo, uma vez que sua força está nas redes sociais e no apoio difuso exatamente por ser um suposto “outsider”. Mas, para vencer uma eleição, no sistema político brasileiro, Bolsonaro teria que apoiar-se em uma estrutura que não tem e não terá.

O avanço de Alckmin em relação aos partidos do Centrão prejudicou fortemente também a estratégia de Ciro Gomes (PDT). Ciro buscava credenciar-se com setores do grande capital e obter estrutura para tornar sua candidatura realmente competitiva. Todo o discurso crítico em relação ao sistema político caiu por terra quando buscou alianças com o DEM e os partidos que sempre deram sustentação a Eduardo Cunha e representam o que há de pior na prática política brasileira.

PT fecha a porta para Ciro

Ainda assim, Ciro é visto por um amplo setor como um crítico de Temer, da direita tradicional e fisiológica e do golpe. Setores do próprio PT não fechavam as portas para Ciro. Isso foi um fator por trás do acordo entre da Executiva Nacional do PT e a direção do PSB. O PT interviu em sua regional de Pernambuco para cassar a candidatura de Arraes (favorita nas eleições) em favor do candidato do PSB em troca de uma “neutralidade” desse partido na eleição presidencial – leia-se: não apoiar Ciro Gomes ou Alckmin (ambos cogitados pelo PSB), além de alguns acordos regionais, como no caso de Minas Gerais. Isso deve provocar muito tumulto interno no PT, mas apenas demonstra o caráter burocrático e inescrupuloso desse partido.

A linha prioritária do PT é manter a candidatura Lula até o limite máximo do processo. Diante da impossibilidade da candidatura Lula, o PT indicaria seu vice, Fernando Haddad, com o “representante de Lula”. Esse plano incluiu um acordo com PCdoB que a Manuela d’Ávila assumirá a vaga de vice de Haddad.

Marina Silva (Rede Sustentabilidade) é um fator que não pode ser completamente descartado. Ela consegue carregar parte importante dos votos órfãos de Lula, principalmente das mulheres (setor mais refratário a Ciro), além dos críticos do sistema político que buscam alguém “de fora”.

Mas, o isolamento e falta de estrutura da Rede, a falta de tempo de TV, as ambiguidades de Marina e as crises internas na Rede, são fatores que enfraquecem muito seu potencial. Como vimos, porém, o plano A da grande burguesia hoje tende a ser Alckmin. Marina seria um plano B ou C do grande capital.

Na medida em que a burguesia vem conseguindo emplacar seu Plano A, representado por Alckmin, as hipóteses de medidas de exceção mais drásticas e extremas tornam-se menos prováveis. Isso, porém, não significa que deixarão de existir sucessivas manobras autoritárias e de exceção. Até mesmo para emplacar Alckmin nas eleições terão que seguir adotando medidas autoritárias e ilegítimas, manobras de todo tipo, na esteira do golpe de 2016.

Segundo turno e o pós-eleições

O mais provável é que, apesar de todas as mudanças na situação política do país, tenhamos novamente uma disputa do campo lulista contra o PSDB. Se isso acontecer, o cenário mais provável é a vitória de Alckmin, embora não se possa descartar nenhuma situação.

Nesse cenário, haverá um reforço da polarização entre PT e PSDB e mesmo na hipótese de derrota do PT, o campo lulista estará reforçado para ser a direção da oposição ao governo tucano. Isso dará uma sobrevida ao PT e ao Lulismo (mesmo sem Lula). Porém, sem Lula e derrotado nas eleições, o mais provável é que o PT perca coesão interna, enfrente muitos conflitos e suas próprias vacilações na oposição a um governo tucano podem abrir espaço para uma esquerda combativa não lulista.

No caso de uma vitória do PT, o futuro governo seria marcado pela crise. De um lado, a polarização social e política se aprofundaria, com o crescimento de uma oposição de ultra-direita inclusive. De outro lado, apesar de uma retórica mais “à esquerda” na campanha atual, um governo do PT teria que aplicar o ajuste na economia, o que o desgastaria e geraria inúmeras contradições. Isso abriria um espaço ainda maior para uma alternativa de esquerda socialista enraizada nas lutas sociais e com um programa alternativo.

Existem, porém, outros cenários possíveis e não devemos subestimar a volatilidade da situação. Na hipótese de Bolsonaro garantir presença no segundo turno, ele dificilmente vencerá seja quem for seu adversário. Ainda assim, esse setor de ultra-direita estará credenciado como força política relevante e um fator central no período seguinte.

O dramático cenário de um segundo turno exclusivo da direita, Bolsonaro contra Alckmin, embora improvável e inédito na história do país, levaria a uma profunda desmoralização de setores amplos da vanguarda e dos trabalhadores e juventude. Também aceleraria a crise do PT e sua desmoralização.

De qualquer forma, o futuro governo que sairá das urnas de 2018 será um governo de crise e com legitimidade questionada. O melhor cenário para a burguesia – uma vitória de Alckmin – não lhes garante estabilidade e legitimidade para aplicar suas políticas de ataques e contrarreformas. Passaremos inevitavelmente por um período de cansaço e certa desmoralização no movimento de massas, mas, como a Argentina nos mostrou, a resistência popular e dos trabalhadores ressurgirá e as dificuldades de um novo governo de direita são o cenário mais provável.

As eleições de 2018 não fecharão a situação de polarização, instabilidade, ataques e retrocessos, resistência e reorganização da esquerda. Pelo contrário, aprofundarão esse processo. Como já discutimos, precisamos nos preparar para um período conturbado, difícil, mas decisivo para o futuro da classe trabalhadora e do povo brasileiro.

O espaço para uma frente de esquerda

A aliança entre o PSOL, PCB, MTST, APIB e demais movimentos sociais que dão sustentação à candidatura de Boulos e Guajajara cumpre um papel fundamental nessa conjuntura.

Independentemente do número de votos conquistados, trata-se de uma aposta para além desse processo eleitoral. Trata-se de um investimento na reconstrução de uma esquerda socialista com base de massas e que tenha condições de superar o lulismo na política, programa e prática, e com isso, futuramente se torne majoritária no movimento dos trabalhadores, juventude, povo oprimido e explorado.

A campanha do PSOL cumpre um papel vital: mostrar que existe uma alternativa de esquerda no cenário político. Devemos intervir nela com força nesse processo e ajudar a campanha a adotar um perfil, política e programa adequados. Mais do que isso, devemos usar todo o potencial combativo dessa campanha, todos os seus pontos fortes do ponto de vista político e programático para levá-los até às últimas consequências e assim apresentar um programa anticapitalista e socialista.

04 de agosto de 2018