Com o povo nicaraguense, contra o governo e o imperialismo
Desde abril, a Nicarágua transformou-se no cenário de um banho de sangue que já levou à morte mais de 400 pessoas, além de milhares de feridos, detidos e desaparecidos.
O estopim desse processo foi a legítima mobilização popular contra a tentativa do governo de Daniel Ortega, em acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), de implementar por decreto uma reforma do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS). A contrarreforma implicaria em redução no valor das pensões e aumento da contribuição previdenciária.
A mobilização popular foi selvagemente reprimida pelo governo, que utilizou-se do aparato repressivo do Estado e também de forças paramilitares, com métodos comparáveis aos da ditadura de Somoza.
A violência governamental radicalizou a resistência popular, que assumiu a forma de uma verdadeira rebelião contra o governo envolvendo estudantes, camponeses, indígenas, trabalhadores e a população urbana. As mobilizações tiveram fortes características de espontaneidade e auto-organização, sem uma direção centralizada e estabelecida.
Em poucos dias, o governo teve que recuar em relação à contrarreforma da previdência, mas era tarde demais. A explosão popular foi uma expressão do acúmulo de tensões sociais e insatisfação com as políticas neoliberais e pró-capitalistas do governo de Daniel Ortega.
Degeneração da FSLN
A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), encabeçada por Ortega e que governa o país desde 2007, degenerou a ponto de transformar-se em instrumento a serviço do grande capital e dos interesses particulares de Ortega, sua vice-presidente e esposa Rosario Murillo e os novos-ricos e oligarcas pseudo-sandinistas.
Não sobrou praticamente nada da organização que dirigiu a revolução que derrubou Somoza em 1979 e que inspirou multidões de jovens, trabalhadores e camponeses por toda a América Latina. O destino trágico da revolução sandinista traz inúmeras lições para a esquerda latinoamericana e mundial.
Uma vez derrubada a ditadura de Somoza, o governo encabeçado por Ortega e a FSLN acabou por ficar no meio do caminho das tarefas revolucionárias. Ao contrário do que aconteceu em Cuba, evitou expropriar o conjunto do grande capital e estabelecer uma economia planificada. As ilusões numa “economia mista”, abriram espaço para a sabotagem interna por parte dos capitalistas, que se deu junto com as ações contrarrevolucionárias sustentadas pelo imperialismo estadunidense, incluindo a formação do exército dos “contras”.
A ofensiva imperialista e os erros de Ortega e dos sandinistas, incluindo a adoção crescente de um pragmatismo econômico cada vez mais distante dos ideais da revolução, levou à derrota da FSLN e o retorno da direita ao poder através das eleições de 1990.
Desde então, Ortega e a FSLN giraram cada vez mais à direita em suas políticas e práticas. Construíram alianças com as velhas oligarquias e setores da direita, como o corrupto presidente Arnoldo Alemán. Ortega chegou a buscar aproximação com a Igreja católica mais reacionária, reconciliando-se com o cardeal Miguel Obando y Bravo (inimigo da revolução sandinista) e defendendo uma nova legislação proibindo totalmente o aborto no país.
Derrota de 1990
Depois da derrota de 1990, Ortega também perdeu as eleições de 1996 e 2001. Quando vence as eleições de 2006, Ortega e a direção da FSLN já haviam consolidado seu profundo giro à direita e alianças com as velhas e carcomidas oligarquias nicaraguenses.
O modelo econômico promovido por Ortega baseou-se em políticas neoliberais, como privatizações, e abertura aos interesses de empresas estrangeiras nos setores do agronegócio, mineração, pesca, etc. Tudo isso aprofundou o caráter dependente e subserviente da Nicarágua ao imperialismo, sem deixar de garantir lucros e riquezas às oligarquias locais e aos novos-ricos oriundos do sandinismo.
Um exemplo dessas políticas foi o projeto de construção do Canal Interoceânico, ligando Atlântico e Pacífico, concedido a um consórcio chinês. Se concluída, essa obra representaria um desastre ecológico monumental e um duro ataque às populações das regiões afetadas. Entre outras consequências, provocaria a contaminação do lago da Nicarágua e o deslocamento de mais de 25 mil pessoas.
Desde 2014, esse projeto tem desencadeado protestos de camponeses e indígenas e movimentos em defesa do meio ambiente, acirrando o ambiente político e social. A construção do Canal começou em 2015, mas teve que ser suspensa em razão da falência da empresa chinesa responsável.
Assim como em outros países latinoamericanos, o crescimento econômico baseado no modelo primário-exportador não eliminou a desigualdade social e a pobreza, serviu apenas para gerar mais contradições e volatilidade política.
A Nicarágua continua sendo o segundo país mais pobre da América Latina, com metade da população vivendo em situação de pobreza, sendo que nas comunidades rurais esse índice chega a 68%.
Uma luta legítima
Nesse cenário, a resistência popular diante da contrarreforma da previdência, as políticas neoliberais e o caráter autoritário e ultrarepressivo do governo é legítima e merece o apoio de toda a esquerda consequente na América Latina e no mundo.
Apesar de ainda utilizar alguma retórica de esquerda ou anti-imperialista e manipular a memória da heróica revolução sandinista de 1979, o governo Ortega faz o jogo da direita e do imperialismo. Inúmeros antigos dirigentes autênticos do velho sandinismo se colocam claramente numa posição de denúncia de Ortega.
Porém, há setores que se colocam no campo da esquerda e que reproduzem as mistificações de Ortega. Recentemente a secretária de relações internacionais do PT brasileiro, Mônica Valente, comparou os conflitos na Nicarágua com as manifestações de junho de 2013 no Brasil, dizendo que se tratava da ação de “pequenos grupos de estudantes, em especial de instituições privadas, financiados pelos Estados Unidos” (Carta Capital, 27/07/18).
Essa afirmação só deixa claro que a direção do PT não entendeu nada sobre as jornadas de junho de 2013 no Brasil e menos ainda sobre o que acontece na Nicarágua hoje. Junho de 2013 não foi um movimento de direita, foi uma explosão popular com enorme potencial transformador que acabou desperdiçada pela traição da esquerda tradicional brasileira (leia-se, o Lulismo) e a fragilidade da nova esquerda socialista em construção.
No caso nicaraguense, não há como colocar-se do lado de Ortega diante do massacre. É preciso combatê-lo e construir uma alternativa popular, de esquerda e dos trabalhadores.
É evidente que, diante da gravidade da situação, setores da direita e do imperialismo tentam disputar os rumos dos acontecimentos. Empresários, burocratas e agentes do imperialismo que antes ganharam muito com o governo de Ortega e sua capacidade de conter as lutas sociais pela repressão ou cooptação, percebem agora que o governo não tem mais condições de serví-los. Pulam fora do barco e tentam um desfecho que lhes seja favorável.
Mas, isso é apenas a dinâmica natural dos acontecimentos. De modo algum significa que a esquerda deve defender Ortega como resposta às intenções reacionárias de setores da direita e do imperialismo.
Luta independente dos trabalhadores
O papel da esquerda é fomentar a organização e luta independente dos trabalhadores e do povo por seus direitos e interesses. O movimento deve rechaçar qualquer aliança com o empresariado, a direita, o imperialismo e a Igreja reacionária. A classe trabalhadora, os estudantes, camponeses, indígenas, mulheres só devem confiar em sua própria força organizada e independente. A luta deve ser organizada de forma democrática e pela base, com comitês de luta com representantes eleitos democraticamente para se coordenarem em nível nacional.
Somente sobre essas bases se poderá construir uma alternativa ao governo de Ortega, à direita tradicional e ao imperialismo. Fora dela, com ou sem Ortega, haverá derrotas.