130 anos da abolição inacabada

“Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”
(samba-enredo da Paraíso do Tuiuti)

Desde a resistência dos negros brasileiros que lutaram contra a escravidão formando seus quilombos e mocambos, erguendo semi-Estados como no Quilombo de Palmares, a classe dominante portuguesa, e posteriormente a brasileira, nunca deixaram de reprimir violentamente a população negra e suas revoltas. A escravidão como forma de exclusão e opressão não acabou com a abolição de 1888, mas tomou outras formas. A rica história de resistência da população negra trabalhadora trás lições importantes para a luta contra o racismo hoje e mostra como a libertação negra plena está vinculada à derrubada do sistema capitalista.

Depois que o comércio de escravos deixou de ser interessante para a classe dominante britânica – a principal potência na época – uma série de movimentos abolicionistas se desenvolveram nas colônias americanas.

No Brasil, como nos lembra Clóvis Moura na denúncia do escravagismo tardio, os liberais e republicanos abolicionistas defenderam o fim da escravidão de forma gradual, evitando que os negros conquistassem sua liberdade por suas próprias mãos como nos EUA depois da guerra civil-americana [1861-1865] ou da ainda vibrante revolução haitiana [1804].

Abolição sem integração ou reparação

O movimento abolicionista brasileiro foi dominado por uma burguesia liberal racista, que não lutou pela integração da população negra ex-escravizada. Sem nenhuma reparação, a população negra foi excluída sistematicamente dos trabalhos nas cidades por conta da ideologia do embranquecimento que pregava e incentivava a contratação de trabalhadores imigrantes no lugar dos ex-escravos.

Essa situação fez com que a integração dos negros no mercado de trabalho capitalista passasse principalmente pela ocupação de cargos de trabalho manual nos campos, nas profissões liberais, cargos operários de baixa qualificação de grande precarização e na informalidade.

Na primeira metade do século XX o movimento negro foi marcado por uma série de experiências organizativas (como os jornais, confrarias, sociedades de pretos ou a Frente Negra Brasileira, por exemplo) que denunciavam a discriminação racial. Esses setores buscaram promover a integração completa do negro na sociedade brasileira, chegando a se aproximar de setores integralistas e de Getúlio Vargas.

Depois dos ciclos de industrialização nos anos do governo de Getúlio Vargas e posteriormente durante a ditadura, a entrada dos trabalhadores negros nas ocupações operárias levou a transformações profundas nos métodos de luta e organização do movimento negro.

Influência revolucionária

Com a influência da revolução russa, URSS e sua relação com os movimentos revolucionários nos países sob poder imperialista na África e na Ásia cresceram mundialmente as influências dos movimentos revolucionários e em especial pan-africanistas, também expressos na organização do TEN (Teatro Experimental do Negro) e da UHC (União dos Homens de Cor),

Durante a ditadura o movimento negro entra em descenso e se pulveriza em uma série de lutas fragmentadas, superando essa fase apenas com o levante dos trabalhadores e operários nos anos 70, fundando o MNU (Movimento Negro Unificado) com um programa radicalmente classista, antirracista, internacionalista e com base social de massas. Até o final dos anos 80, o MNU jogou um papel fundamental na conquista da criminalização do racismo na constituição e da titulação das terras quilombolas.

Após o colapso do stalinismo, o avanço da ideologia neoliberal e adaptação do PT à institucionalidade, passou a ter a grande maioria de seus quadros absorvidos pelos limites de uma visão de avanço gradual da resolução da questão racial pela via institucional nos marcos das ações afirmativas (como cotas e programas sociais).

Durante os governos do PT, se aproveitando de um período de crescimento, o lulismo promoveu uma série de programas sociais que beneficiaram parcela da população negra confinada no setor da classe trabalhadora extremamente pobre do Brasil, como a Luz para Todos, Fome Zero, REUNI/PROUNI/FIES, Estatuto da Igualdade Racial, Minha Casa, Minha Vida, cotas nas universidades federais, etc. Temos que ver isso como um resultado de um acúmulo e luta do movimento negro das décadas anteriores.

Porém, essas medidas foram implementadas sem nenhuma ruptura com o sistema ou reformas mais profundas, com reformas agrária/urbana, tributárias, etc. Por isso se mantém índices alarmantes de exclusão social, discriminação e violência policial. Além disso, essas medidas serviram para manter a ala reformista do movimento negro sob controle.

No último período crítico da crise mundial e seus efeitos no Brasil, novamente a situação dos negros no Brasil se aproximam a sua condição dos anos 90 com falta de acesso a direitos básicos, de extrema informalidade trabalhista, níveis gritantes de desemprego e aumento da violência em índices somente comparáveis a contexto de guerra.

Mesmo nos momentos de maior crescimento, um grande contingente de trabalhadores negros continuaram excluídos do mercado formal de trabalho, com altos índices de desemprego com forte presença na informalidade em empregos precários e também na criminalidade.

“Negro drama
Cabelo crespo
E a pele escura
A ferida, a chaga
À procura da cura”
(Racionais MC’s)

Essas condições foram fundamentais para que desde a abolição o Estado brasileiro direcionasse uma série de instituições para reprimir esse exército de reserva de desempregados e excluídos.

Manicômios, casas de detenção de menores e prisões principalmente com grande maioria de negros e negras, proibição e perseguição de expressões culturais negras, como capoeira, samba, funk somadas a uma polícia extremamente militarizada e assassina são práticas que continuaram mostrando como o estado subserviente a classe dominante que mantém a lógica racista histórica.

A guerra às drogas é a ideologia oficial das forças de repressão (policias militares e tribunais de justiça) do Estado. Depois que ruiu a ditadura militar diante da força do movimento operário e da crise dos anos 70 – o Estado brasileiro e a burguesia nacional moveram a máquina de guerra contra o povo pobre e negro das periferias para manter seu corpo e consciência presos a lógica capitalista.

Luta da mulher negra

As mulheres negras passaram por um processo de integração, principalmente ao trabalho doméstico terceirizado nas casas das classes ricas e médias, constituindo assim um sustento fundamental das comunidades negras.

A luta pela legalização do aborto, contra a violência obstétrica e pela saúde das mulheres negras é fundamental para superar o controle do Estado sobre os corpos das mulheres negras. A ideologia da autonomia do corpo das mulheres negras está diretamente relacionada com as práticas sociais de violência doméstica e hipersexualização que afetam as mulheres periféricas e pobres.

A repressão sobre os trabalhadores pobres e negros serve para manter a aceitação das piores condições de trabalho na base racista da violência e terrorismo estatal, assim puxando pra baixo a condição de todos trabalhadores.

Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor
(trecho do samba enredo da Paraíso do Tuiuti)

Atualmente dentro dos espaços do movimento negro há uma enorme efervescência de análises e balanço histórico. Isso incluiu um balanço crítico dos limites dos governos do PT, que não conseguiram abalar os fundamentos do sistema capitalista racista.

Nesse contexto, no PSOL tem se desenvolvido aos poucos uma série de lutas que o conectam com o movimento negro através da defesa da garantia de direitos para a população excluída. Devemos avançar na capacidade de capilarizar nossas bandeiras através de uma conexão programática e orgânica com o movimento negro.

A eleição de vereadoras negras, com votações expressivas nas últimas eleições municipais (como Marielle Franco no Rio de Janeiro, Taliria Petrone em Niterói, Áurea Carolina em Belo Horizonte, etc.) é um exemplo que mostra esse potencial. Desafiar esse sistema racista tem um preço, que pagamos altamente com a execução de Marielle, e nos coloca a tarefa de avançar na defesa de nossas vidas e na unidade de luta contra esse sistema.

Combater o racismo para unir a classe

Superar as armadilhas do racismo é uma das principais tarefas para que possamos fortalecer o poder da nossa classe e na construção de um novo movimento de trabalhadores que estabelecerá as bases de uma nova organização de sociedade.

O racismo não acabará de uma hora para a outra depois de uma revolução de trabalhadores que derrube o capitalismo, mas a libertação negra só será possível com a transformação socialista de toda sociedade. Ao outro lado, a revolução socialista só será possível se a unidade da classe trabalhadora for forjada com base numa luta conjunta contra as opressões, contra racismo, machismo e lgbt-fobia. Aprender com a história da luta da população negra é por isso uma tarefa de todos e todas que lutam por um mundo novo.