Chile: O que é a Frente Ampla e o que ela representa?
O enorme “movimento dos pinguins” (estudantes secundaristas), marcou uma profunda mudança na situação política chilena. Pela primeira vez desde a ditadura, um governo da “Concertación” (aliança oposicionista de “esquerda”) e sua continuação das políticas neoliberais da ditadura foram expostas às massas, apesar de suas promessas de “mudança”.
O ano de 2006 também viu o início da luta dos terceirizados por melhores condições de trabalho e salários, especialmente nos setores mineiros e florestais. Em 3 de maio de 2007, um trabalhador florestal, Rodrigo Cisterna, foi assassinado pela polícia durante um protesto.
No mesmo período, também vimos um ativo movimento mapuche lutando para reclamar sua terra. Sob o primeiro governo Bachelet, ocorreram três assassinatos emblemáticos de jovens mapuche, que desde então se tornaram símbolos da luta mapuche (José Huenante, MatíasCatrileo e Jaime Mendoza Collio).
Esse descontentamento popular fez com que a Concertación perdesse para o multimilionário Sebastian Piñera em 2009. Devemos deixar claro que, mais do que uma vitória de Piñera, esse foi um voto contra a Concertación e a continuidade das políticas econômicas da ditadura que ela tem implementado desde então.
Paradoxalmente, o governo Piñera, sem querer, favoreceu a mobilização social. Fora do governo, o aparato da Concertación não jogava mais o papel de freio aos movimentos sociais, e o governo Piñera se enfraqueceu rapidamente. Sob Piñera, em 2011, vimos as históricas mobilizações de massas do movimento estudantil, que ainda é lembrado em todo o mundo.
Junto com as lutas estudantis, também vimos vários protestos regionais. Em janeiro de 2011, começaram protestos em Magalhães (extremo sul do Chile), com ampla participação da população. A cidade de Aysén também se destacou nesse período, com toda a cidade mobilizada em defesa de uma série de demandas locais, entre elas o fim do aumento dos combustíveis, saúde de qualidade, salário mínimo regional e universidade pública local. O movimento ambientalista também se fortaleceu em nível nacional neste período, contra a construção de uma represa em Aysén (HidroAysen), com marchas de milhares de pessoas por todo o país.
Nascimento da “Nova Maioria”
Assim que deixou o poder, a Concertación, em seus esforços de voltar a ele, integrou o Partido Comunista, que nunca teve permissão de entrar nesta formação, e se rebatizou como “Nova Maioria”. Ela tentou gerar grandes expectativas de “reformas”, como uma Assembleia Constituinte, educação gratuita, reforma política e promessa de defender os direitos de trabalhadores.
No Chile, o sistema eleitoral foi perfeitamente desenhado para garantir que apenas duas forças políticas – a direita e a Concertación – poderiam ser eleitas, ambas com um programa neoliberal muito similar. A grande diferença entre esses dois blocos foi sua relação com a antiga ditadura, com setores da direita pinochetista ainda tentando se livrar desse legado.
O caráter da Frente Ampla
Antes de tudo, deve ser enfatizado que a Frente Ampla (FA) é extremamente heterogênea. A FA teve grande sucesso eleitoral por causa de seu programa de centro-esquerda associado com a radicalização que ocorre na sociedade chilena, que ainda está em suas etapas iniciais.
A maioria dos líderes da FA tem confusas simpatias de esquerda, com muitos se declarando antineoliberais e alguns dos 14 grupos que a constituem se declarando até mesmo anticapitalistas.
A direção da FA é constituída em sua maioria por ex-líderes estudantis que vieram de universidades de elite. Eles tentaram impedir que a esquerda entrasse na coalizão ou ter candidatos, mas não tiveram sucesso completo nisso.
A esquerda conseguiu entrar na FA “pela janela”, apesar das constantes manobras para impedi-la. Em torno do desafio nas primárias para a candidatura à presidência de Alberto Mayol, um jovem sociólogo e acadêmico, se construiu um polo de esquerda que depois iria formar o Movimento Democrático Popular (MDP). O Socialismo Revolucionário (CIT no Chile) tem sido parte integral deste processo desde o início, com nossos membros fazendo parte da direção da campanha primária de Mayol. Nas eleições primárias, Mayol ganhou 100 mil votos contra mais de 200 mil de Beatriz Sanchez, que foi apoiada pela direção da FA.
O renascimento do movimento popular e operário até agora tem sido expressado nas mobilizações e programa da NO + AFP (Não mais fundos de pensão privados). Após algumas vacilações, esse programa foi encampado pela FA. A votação muito maior do que esperada para Beatriz Sanchez nas eleições presidenciais, que chegou perto de vencer o principal candidato da “Nova Maioria”, Guiller, deve-se em grande medida ao apoio dado ao NO + AFP.
O que representa a Frente Ampla?
A FA é o produto de mais de uma década de movimentos estudantis, que se iniciou com o movimento dos “pinguins”, e teve seu auge em 2011, com milhões nas ruas, incluindo trabalhadores.
Esse movimento foi o mais importante desde a ditadura. O tamanho das mobilizações, e a profundidade do apoio público, mostrou que o descontentamento na sociedade vai muito além da educação.
Em 2013, dois anos após as grandes mobilizações de 2011 e sete anos após os protestos de 2006, a ideia de participar nas eleições começou a cristalizar-se em alguns coletivos políticos que se formaram a partir do movimento estudantil. Entre eles, estava a Esquerda Autónoma (IA) que nasceu na Universidade de Chile em 2008; a Revolução Democrática (RD) que começou na Universidade Católica, uma das universidades mais conservadoras; e da Frente Estudantil Libertária (FEL), tendência anarquista, surge a Esquerda Libertária.
Num momento em que a denúncia pública da corrupção da casta política se generaliza em todas as instituições, esses grupos políticos nascidos do movimento estudantil lançaram seus próprios candidatos para competir com o sistema bipartidário neoliberal que governa há quase 30 anos.
Neste processo houve similaridades com o desenvolvimento do Podemos no Estado Espanhol, que surgiu da luta em torno dos “indignados” de 15 de maio (15M). Os dois processos representaram um passo adiante na consciência da necessidade de se organizar política e eleitoralmente a fim de lutar pelo poder político.
Os estudantes e jovens em geral estão cansados da política dos partidos tradicionais e da crise da representação política, já que viram esses partidos não darem nenhuma resposta às suas preocupações, no governo ou no congresso. Esses novos candidatos, em suas próprias palavras, buscam diminuir o espaço do mercado e retroceder as políticas neoliberais. Nas eleições de 2013, conseguiram eleger 2 parlamentares: Gabriel Boric da IA, que ganhou defendendo o rompimento com o bipartidarismo e foi eleito por seu próprio mérito; e Giorgio Jackson da RD, eleito via pacto com a “Nova Maioria”, o que lhe permitiu ser eleito em parte com seus votos. Essas eleições também viram duas líderes estudantis serem eleitas pelo Partido Comunista, mas como parte da “Nova Maioria”, que governaria por 4 anos sob Bachelet.
Evidentemente, há diferenças entre esses grupos políticos. Por exemplo, Gabriel Boric e a IA mantiveram sua independência da Nova Maioria, diferente do deputado Giorgio Jackson da RD, que se tornou parte do governo (extraoficialmente)e do Ministério da Educação. Da RD, Miguel Crespi tornou-se conselheiro direto do Ministério da Educação e Gonzalo Muñoz, chefe da divisão geral de educação. Pouco mais de um ano antes das últimas eleições, eles abandonaram seus postos e distanciaram-se do governo do qual tinham sido parte.
Frente Ampla um ano depois
Em meados de janeiro de 2018 a FA teve seu primeiro aniversário. Ela é constituída não só de partidos ou movimentos que vieram do movimento estudantil. Ela também esteve aberta para outras forças políticas fora do sistema bipartidário, como a RD, Partido Humanista, IA, Esquerda Libertária, Partido Ecologista Verde, Partido da Igualdade, o MDP (do qual participa o SR-CIT), o Partido Pirata, entre outros. O mais estranho componente da FA é o Partido Liberal, claramente vinculado à direita chilena e que teve 2 parlamentares eleitos dentro da FA. O mais conhecido é VladoMirosevic, muito próximo de Piñera e que até trabalhou para ele quando foi eleito presidente em 2011!
Líderes da FA – filhos e filhas de…
Outro detalhe interessante da FA é que muitos de seus líderes mais conhecidos, vindos do movimento estudantil, são filhos de figuras famosas da “Nova Maioria” e ministro dos atual governo. Até a filha de Bachelet está na FA. Uma vez, quando perguntaram a Bachelet o que ela pensava dos líderes da FA, ela disse “embora seja verdade que houve uma erupção de novos partidos, se você perguntar quem são esses novos jovens, eles são filhos de membros dos partidos tradicionais”.
FA – a terceira força política
Apesar de ter menos de um ano, a FA teve um crescimento espetacular nas eleições parlamentares de 2017, elegendo 20 congressistas, 13 dos quais são ex-líderes estudantis, e 1 senador. Em 2016, também ganharam a prefeitura em Valparaiso, a mais importante cidade portuária do Chile, com um candidato chamado Jorge Sharp, de apenas 31 anos. Nas eleições gerais de 2017, a FA e Beatriz Sanchez estiveram a apenas 2% de irem para o segundo turno das eleições presidenciais, ganhando 20% dos votos quando as pesquisas lhes davam apenas 8% – isso revela o quanto tais pesquisas são manipuladas no país.
Qual é a política da FA?
É claro que a FA tem várias “almas” dentro dela. O Partido Liberal é o setor mais à direita da aliança, mas também temos a RD, que está à direita do resto dos grupos que vieram do movimento estudantil. Não podemos esquecer a participação da RD no governo neoliberal da Nova Maioria, que os ajudou a eleger seu primeiro parlamentar.
O fato que muitos líderes da FA são filhos e filhas da elite política e da classe média alta também os deixa mais reticentes em assumir uma posição mais radical de ruptura com o sistema. Eles claramente estão descontentes com a desigualdade enorme que existe no Chile, mas pensam que o sistema pode ser humanizado introduzindo algumas reformas a partir dos interesses dos mais pobres.
Entretanto, considerando a situação do Chile hoje, imerso na crise do capitalismo mundial que está abalando toda a América Latina, apenas a uma perspectiva que vá além da lógica do capitalismo pode tornar viáveis as demandas dos movimentos sociais e dos/as trabalhadores/as. Portanto, o SR, dentro do MDP, defende um programa socialista revolucionário para a FA como a única garantia de seu sucesso.
O governo Piñera – um desafio à FA
A partir de março teremos um novo governo da direita mais reacionária, que aparentemente realizará uma contraofensiva neoliberal. Essa situação apresenta grandes desafios para a FA. Qual a melhor estratégia para defender as demandas do movimento estudantil e incorporar as demandas de outros setores? Com quem devemos fazer acordos para tornar essas demandas realidade? A FA está bem posicionada para se desenvolver como a voz política desses movimentos se adotar uma abordagem e política corretas.
O Partido Comunista propôs um processo de “unidade sem exclusões, da DC (Democracia Cristã) à FA”, um tipo de Concertación 3.0 (a Nova Maioria sendo a Concertación 2.0). Uma aliança desse tipo seria difícil de aceitar para vários setores da FA, embora haja outros que não se oporiam a tal proposta.
Uma aliança política estável, como defendida pelo PC, é difícil de imaginar. É mais provável que sejam feitos acordos caso a caso em favor de leis para melhorar, mesmo de forma muito limitada, as condições da maioria que sofre sob as políticas neoliberais. Por exemplo, uma educação verdadeiramente gratuita, um sistema de saúde decente, o fim da AFP (sistema previdenciário privado) que está forçando a maioria das pessoas aposentadas a viver em total miséria.
Não podemos esquecer que a FA surgiu como expressão política do movimento estudantil e das camadas médias da sociedade, mas claramente ainda não representa a maioria da classe trabalhadora e suas demandas. Por exemplo, nenhum dos congressistas eleitos da FA veio do movimento sindical ou é um genuíno representante da classe trabalhadora. Está claro que os trabalhadores ainda não têm uma voz de peso dentro da FA que fale por eles e suas demandas.
A construção de um verdadeiro instrumento político da classe trabalhadora ainda é uma tarefa premente, para que ela, assim como o movimento estudantil, passe da luta social para a luta política construindo sua própria força classista. A SR (CIT no Chile) dentro do MDP e da FA toma essa tarefa como sua absoluta prioridade. Armadas com um programa socialista revolucionário, para pôr a enorme riqueza do país a serviço de seus povos, como parte de uma transformação socialista de toda a América Latina, as forças do marxismo revolucionário no Chile podem dar importantes passos à frente no próximo período.