Trabalhadores franceses dizem ‘NON’ para a constituição européia e para o establishment

“Nós votamos não. É uma constituição para a burguesia, para as multinacionais, para os patrões. Só trata de economia, competição, lucros, mercado e capitalismo. Somos contra tudo isso; somos comunistas. Não há nenhum progresso para os trabalhadores. A maioria dos trabalhadores querem dizer ‘merde‘, levantar os dois dedos para eles. Nós estamos cheios de dizer sim para os políticos.“

Thomas Meunier, professor de história de 32 anos e simpatizante do Partido Comunista Francês (citado do jornal ‘the Guardian‘, Sábado 28 de maio de 2005)

A França votou a constituição européia no domingo, 29 de maio, e, apesar da vitória do ‘não‘ ter sido prevista, o resultado provocou um choque ao poder estabelecido na França e na Europa. 42 milhões de pessoas estavam aptas a votar e, com a presença de 70%, massivos 55% votaram pelo ‘não‘, contra 45% pelo ‘sim‘. Comentaristas estão lutando para explicar a razão pela qual uma clara maioria dos franceses decidiu repudiar todos os principais partidos, ignorando o clima de medo passado pela mídia e pelos políticos tradicionais. O presidente francês Jacques Chirac e Jean-Pierre Raffarin, o Primeiro Ministro, tentaram todos os truques para persuadir o eleitorado a votar sim. Chirac declarou que a França só estaria apta a defender seus interesses na Europa se votasse sim, caso contrário “deixaria de existir politicamente, ao menos por um tempo“. Raffarin alertou sobre o “espectro do caos sob a França“ e anunciou “longos meses de crise econômica“ após a derrota e adicionou, “eu conheço americanos, chineses e indianos que não ficarão zangados em ver a Europa quebrar e ficar parada na estrada“.

Políticas de classe

Agora, na manhã seguinte, a mídia na Inglaterra tentou mostrar que o voto contra a constituição como uma vitória do nacionalismo francês ou mesmo uma vitória da extrema-direita e fascista Frente Nacional e de seu líder Jean-Marie Le Pen.

Porém, enquanto aqueles que votaram na Frente Nacional nas últimas eleições estão entre os que votaram contra a constituição, é enganoso declarar que o ‘não‘ é uma vitória do nacionalismo e da extrema direita.

A campanha contra a União Européia, e seus defensores da centro-esquera e da centro-direita, ficou marcada pela expressão política da divisão de classe na sociedade francesa. No início de 2005, as pesquisas de opinião mostravam 65% de apoio ao tratado. Mas durante fevereiro o apoio ao sim começou a diminuir após uma série de mobilizações e greves contra os planos do governo de abolir as 35 horas de trabalho semanais. Quando a CGT, a segunda maior central sindical, votou em sua direção, e contra os desejos de seus próprios dirigentes, pela chamada do voto ‘não‘ à constituição, isso colocou o debate sobre a constituição européia em um outro nível. Foi posto como uma questão social, uma batalha política contra as políticas neoliberais, central para a mobilização da classe trabalhadora contra o governo de Raffarin. Isso eletrizou os ativistas, polarizou o debate e unificou os trabalhadores do setor privado e público; pensionistas e jovens; desempregados e subempregados. Em 5 de fevereiro, mais de 500 mil trabalhadores do setor público e privado participaram em manifestações para defender a semana de 35 horas, muitos carregando cartazes contra a constituição européia. No dia 10 de março mais de um milhão de pessoas foram às ruas na França reivindicando melhores salários e lutando contra um aumento da semana de trabalho. Essa demonstração impressionante da força da classe trabalhadora, o quinto dia nacional de ação desde o início de 2005 foi o mais importante mobilização desde as batalhas contra a reforma de previdência na primavera de 2003. Ao mesmo tempo a França foi atingida por uma importante mobilização de estudantes e num dia 160 mil estudantes secundaristas participaram em 150 manifestações por toda a França.

O aumento da consciência de classe, vinda à tona através das lutas da classe trabalhadora, achou expressão no voto contra a constituição européia. A maioria dos trabalhadores que ganha menos de 3 mil euros por mês votou contra a constituição, daqueles que ganham menos de 1.500 euros por mês, 66% votaram contra. O diário francês Le Monde (30/05/05) escreveu que 79% dos operários votaram contra a constituição (18 pontos a mais do que o referendo do tratado de Maastricht em 1992) e entre os trabalhadores “não manuais” a oposição atingiu 67%. Para o establishment, um sinal de alerta da profunda crise social é que, pela primeira vez, a maioria dos profissionais de classe média (53%) votaram contra a União Européia que foi acusada de não ter feito o suficiente para proteger seus salários num mundo globalizado.

Um presidente e um governo dos patrões

O governo de Raffarin e a presidência de Chirac chegaram ao poder com uma ampla maioria como resultado das eleições presidenciais de 21 de abril de 2002 quando Jean-Marie Le Pen, o candidato da extrema-direita, deixou o social-democrata e então primeiro-ministro Jospin no terceiro lugar. Chirac recebeu menos de 20% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais. Duas semanas depois, Chirac foi reeleito presidente com 82% pois a mobilização de massas contra Le Pen, o candidato da extrema-direita, foi canalizada para a campanha de voto para Chirac. Jospin deixou o governo e a centro-direita tomou controle do parlamento e do novo governo. Os três anos que se seguiram viram uma ofensiva da burguesia francesa contra os serviços públicos, segurança social, a classe trabalhadoras e os pobres. Chirac e Raffarin ganharam capital político e, a despeito de todo o discurso de representarem toda a França, eles usaram isso para atacar a classe trabalhadora. A federação de empresários Medef, sob a direção do barão Ernest-Antoine Seilière, vê as coisas andaram em sua direção. A reforma da previdência em 2003, a privatização total ou parcial dos serviços públicos incluindo a La Poste (Correios), EDF-GDF (compania de eletricidade e gás) e a diminuição dos gastos públicos. De acordo com a CGT os salários do setor público caiu em termos reais de 5 a 6% nos últimos 3 anos. Ernest-Antoine Selière, que se denominou um ‘matador‘ quando tomou a direção do Medef em 1997, desprezou o primeiro-ministro como o “pobre senhor Raffarin“ por render-se ao poder dos sindicatos. Porém os acionistas nunca estiveram tão bem como quando as companhias francesas publicaram seus lucros por 2004. A Total, companhia de petróleo, teve lucros que estão acima dos 24%, 9,04 bilhões de euros. A L‘Oreal, grupo de cosmético, teve um aumento nos lucros de 143%, e fez 3,351 bilhões de euros. A Societé Générale teve um crescimento de 25,4% dos lucros e atingiu o total de 3,125 bilhões.

A polarização de classe na sociedade francesa atingiu tamanha proporção que é correto apontar para elementos do Maio de 68 reaparecendo. A ojeriza à elite corrupta e inútil, a frustação pela incapacidade do capitalismo desenvolver a sociedade e a raiva aos lucros enormes são certamente reminiscências de 68. A confiança pública nos empregadores nunca foi tão baixa de acordo com pesquisas de opinião. Em 1985, 56% dos questionados disseram que confiavam nos empresários. Mas hoje apenas 45% dos ouvidos acreditam no patronato e, mais assustador para o establishment, apenas 21% confiam em seu próprio patrão.

Ramificações políticas

“Os partidos de centro-direita e de centro-esquerda são como as torres gêmeas. Nós sabemos que eles irão colapsar mas nós não sabemos, ainda, qual irá primeiro“. Esse trecho é atribuído pela agência Reuters a um dirigente do partido de centro-direita UMP (partido de Chirac) e uma indicação da instabilidade política na sociedade francesa agravada pela campanha em torno da constituição européia. A autoridade política dos partidos de centro-direita e centro-esquerda está se despedaçando. Raffarin, que irá renunciar nos próximos dias, está liderando o governo mais impopular da história da quinta república e a aprovação pessoal do presidente caiu para 40%, a menor em 8 anos.

A mais fraca das torres gêmeas francesas é o social-democrata Parti Socialiste (PS). O atual dirigente François Hollande organizou um referendo interno no PS para determinar a posição que o partido tomaria no debate sobre o referendo. O voto favorável à constituição ganhou com 59% dos militantes. Sob a pressão das mobilizações da classe trabalhadora, e como uma tentativa de segurar o apoio ao PS em geral e suas próprias carreiras em particular, uma bancada de dirigentes de “segundo grau” do PS começou a chamar voto no não. Henri Emmanueli, ex-dirigente do PS, avançou com intervenções agressivas comparando os militantes do PS que apoiaram a constituição européia com os socialistas que votaram os plenos poderes do regime nazi-colaboracionista de Vichy de Marshal Henri Petain em 1940. Semana passada Henri Emmanueli convidou para o parlamento francês alguns trabalhadores de 25 locais de trabalho que foram atingidos pela terceirização. Ele atacou os defensores da constituição no PS: “Eles estão cometendo um erro histórico“. “Temos aqueles que votam com Theirry Desmaret – executivo da Total [multinaciona francesa de petróleo] – e a CAC 40 [index na bolsa de valores que reuni as maiores empresas francesas] e aqueles que votam junto com os empregados. Ache a diferença e você perceberá a decepção“.

A forma do debate no Parti Socialiste não reflete necessariamente uma virada à esquerda ou um crescimento da popularidade do partido entre os ativistas da classe trabalhadora. Apesar do PS poder ganhar apoio eleitoral e derrotar a direita nas próximas eleições, o PS não oferece uma alternativa às políticas da atual maioria de centro-direita, não foram esquecidas as políticas do governo de Jospin que iniciou o caminho para mais flexibilidade e privatizações e levou a um resultado eleitoral catastrófico em 2002.

É significativo que o líder do voto não dentro do PS é Laurent Fabius, o número 2 do partido e primeiro ministro de Mitterand em 1983, e que é da direita do PS. Não faz muito tempo que ele dizia ter sido um Blair antes do Blair mas agora ele se reiventou na esperança de conquistar a candidatura pelo partido para as eleições presidenciais em 2007. Porém é muito cedo para prever o que irar acontecer, além de que o PS não é mais uma força estável e mesmo um racha não pode ser discartada.

Um novo partido dos trabalhadores para lutar pelo socialismo

A rejeição à constituição européia na França é uma rejeição ao capitalismo ‘globalizado‘. É uma rejeição às reformas neoliberais, uma rejeição à privatização e uma negação aos pregadores do mercado livre. A classe trabalhadora francesa, tendo lutado contra o neoliberalismo do governo Raffarin nas ruas; tendo mobilizado milhares no setor público e – a despeito do vácuo de uma direção com política genuinamente revolucionária – tendo resistido às reformas da classe dirigente, colocou hoje a luta num estágio mais alto. Agora é necessário contruir uma força política de massas com base num programa de luta socialista. De imediato, os representantes da classe trabalhadora na campanha pelo ‘não‘ devem lançar um apelo aos trabalhadores, sindicatos e ativistas em outros países europeus para se unirem, construirem um programa de demandas combativas – incluindo a nacionalização sob o controle e gestão dos trabalhadores das indústrias falidas – e agir como centros organizados para coordenar as lutas contra o neoliberalismo. O voto ‘não‘ na França deu a classe trabalhadora uma vantagem – nós devemos usar isso.

A burguesia francesa e européia está chamando para um período de ‘reflexão‘. É muito provável que a constituição européia seja declarada oficialmente morta quando o ‘não‘ ganhar na Holanda na quarta. Isso pode ser um abalo significativo na confiança da burguesia européia e pode incentivar mais batalhas da classe trabalhadora contra as medidas neoliberais nos países da União Européia, porém não irá alterar a direção fundamental do capitalismo europeu.

Blair e Brown já anunciaram que quando a Inglaterra pegar a presidência da UE eles irão avançar na agenda neoliberal para fazer do resto da Europa um paraíso para os capitalistas como é na Inglaterra. Apoiadores do senhor Barroso, o presidente da Comissão Eureopéia, já avisaram que ele irá relançar a iniciativa ‘emprego e crescimento‘. Nelli Kroes, o comissário de Competição da UE, pediu regras mais restritas e subsídios dos governos. Daqui a poucas semanas a diretiva frankenstein de liberalizar os setores de serviço da Europa voltará à tona.

Os socialistas devem, enquanto lutam para defender os direitos dos trabalhadores e participam de todas as batalhas por reformas em favor da classe trabalhadora, apontar para as falhas do capitalismo no desenvolvimento da sociedade. Os socialistas e os trabalhadores devem se opor a todas as tentativas de garantir e legitimar o projeto da UE dos grandes empresários e dos ricos. A UE não pode ser democratizada, nem por uma constituição nem por uma assembléia constituiente. Apenas quando todo o edifício dessa união neoliberal se despedaçar poderemos iniciar uma sociedade baseada na real solidariedade entre os trabalhadores e pobres da Europa. Essa solidariedade e unidade serão baseadas na cooperação voluntária entre os povos da Europa, sobre a construção de uma sociedade em que os setores chaves da economia serão tirados das mãos dos banqueiros, magnatas e acionistas majoritários. Uma sociedade na qual a economia é planificada, administrada e controlada pela classe trabalhadora, uma sociedade socialista.

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